A beleza, essa coisa subversiva

A mais bela frase já pichada num muro é a seguinte: “Sous les pavés, la plage.”

É como dizer: o mais belo plano do cinema é aquele do varal de roupas balançando no vento em Ordet, de Dreyer. Ou que a coisa mais linda feita com tintas foi a tela Sobre a cidade (1924), de Marc Chagall. Ou que nada, nada mesmo, no rock, pode ser comparado à introdução de Sympathy For The Devil, algo que acontece ali, logo antes de Mick Jagger cantar: “Please allow me to introduce myself / I’m a man of wealth and taste / I’ve been around for a long, long years / Stole many a man’s soul and Faith.”

Mas, como dizia, a mais bela frase já pichada num muro é “sous les pavés, la plage.” A tradução estraga um pouco, como sempre: “Debaixo do calçamento, a praia”. Ela apareceu em maio de 1968, em Paris. Comparada com outras declarações daquela época, a pichação guardava uma diferença marcante com as que surgiram naquela convulsão da juventude, porque representava a revolta de uma forma que o pensamento político raramente atinge. Ela nasceu de uma observação trivial: como os manifestantes arrancavam os paralelepípedos das ruas para construir as barricadas – ou para jogá-los contra as tropas de choque da polícia -, perceberam que essas pedras eram colocadas sobre uma camada de fina areia.

Ao retirar as pedras do calçamento, uma espécie de praia aparecia no coração de Paris. Não foi um estudante (a maioria dos manifestantes) que notou a poesia que emergia do chão, mas um jovem operário grevista. O nome dele é Bernard Cousin. Ele viu a coisa e propôs o slogan numa assembleia do dia 22 de maio de 1968. O slogan/frase/verso não surgiu de uma vez. Cousin pensou primeiro em espalhar pela cidade “Il y a de l’herbe sous les pavés” – ou seja: “Tem erva sob o calçamento”. Erva era alusão à maconha, ao haxixe. A praia apareceu depois, e vingou. O achado de Cousin foi escrito pela primeira vez numa fachada da Praça do Panthéon, bem pertinho da Sorbonne.

Usualmente, as representações da política são pavorosas. Feias, nem um pouco atraentes. Grosseiras, sem harmonia, pautadas pela necessidade de convencer imediatamente. Para que elas escapem disso, é necessário que surja um indivíduo como Bernard Cousin, alguém que veja, sinta e sintetize. Antena da raça. Que assuste as pessoas por ter colocado a política no único patamar em que ela efetivamente subverte a ordem estabelecida. Exatamente ali onde o conflito refrata, ricocheteia, gera uma faísca, brilha. Era o que acontecia com a imagem da praia abaixo das pedras da cidade, da natureza que reaparecia repentinamente no meio dos prédios, da eclosão do novo no meio da tradição.

Foi no contexto contestador francês dos anos 1960 que se formou o pensamento de Jacques Rancière. Aluno de Louis Althusser, ele fez parte da elaboração do livro Ler o Capital (1965), mas depois se afastou do mestre. Cinéfilo, próximo dos Cahiers du Cinéma – numa fase mais séria da revista do que a atual -, Rancière passou a estudar as relações entre a imagem e ideologia. Para ele, aliás, a estética é uma dimensão necessariamente associada à política. Seu trabalho tem sido essencial para calar os boçais que pretenderam detonar com a autonomia do campo artístico. Sabem aqueles que não podem tomar um chopp sem dizer que a arte morreu? Pois bem, Rancière nos ajuda a compreender que não basta dizer, como Pierre Bourdieu, que o gosto é classista (cada classe social destila o seu) e que o gosto que se impõe é o dos que possuem “capital cultural” e que se acham “acima” das diferenças de classe.

Sabem qual é o outro nome disso? Relativismo. Achar que o slogan “Volta, querida” é tão incrível quanto o “Sous les pavés, la plage”. Não é. E não importa de que lado da disputa você esteja. É crucial entender esse tipo de diferença para saber que aquilo que chamamos de estética, como diz Racière, é uma “matriz de percepções e discursos que envolve um regime de pensamento”. Por isso não esqueça: estética é uma “forma de experiência”, é um “regime interpretativo”.

E toda vez que você estiver diante de um objeto, de um evento, de um gesto que lhe impulsiona à reflexão (não tenha medo de dizer: a teorizar) e que afeta a sua sensibilidade (não tenha medo de dizer: lhe emociona), você está diante de uma experiência que lhe abre a condição da transcendência, da arte propriamente dita. Do subversivo. Também não esqueça nunca que a eficácia da política e de suas representações são depositárias da estética – melhor dizendo: da beleza, que de fato é capaz de transformar o mundo por ser condição para transformar os indivíduos.

As coisas não se equivalem todas. A política não é sempre virtuosa – ou seja, nem sempre deriva do que em latim era virtus: uma força moral, um valor.

A beleza não está em tudo nem está sempre. Ela pode estar, é claro, nos lugares e nos tempos mais inusitados: nos contraluzes de Boi Neon, de Gabriel Mascaro; numa canção de Flaviola; no alvorecer numa ladeira do Alto José do Pinho; num super-8 de Geneton Moraes Neto; nas luzinhas coloridas da Rural de Roger e Niltinho; no poema de Joaquim Cardozo, quando ele evoca a “beleza católica” do Recife e os seus “longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos holandeses. / Que assistem agora ao mar, inerte das ruas tumultuosas, / Que assistirão mais tarde à passagem de aviões para as costas do Pacífico.”

E não há a menor chance da política e suas representações serem realmente subversivas se estiverem desconectadas de belezas assim.

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Paulo Cunha Escrito por:

Nasceu no Recife, em 1956. Ainda estudante secundarista, participou, a partir de 1973, do ciclo de cinema super-8 do Recife, realizando curtas experimentais. É graduado em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e foi repórter, crítico de cinema e editor, entre outros, no Jornal da Cidade, Jornal da Tarde [SP], O Estado de S. Paulo e Jornal do Commercio. Também foi editor de criação na Rede Globo de Televisão. Tem Doutorado em Artes na Universidade de Paris I – Panthéon-Sorbonne. Professor na Universidade Federal de Pernambuco, ensina no Bacharelado em Cinema e Audiovisual e no Programa de Pós-graduação em Design. Publicou “A Aventura do Baile Perfumado: vinte anos depois” (2016, com Amanda Mansur), “A Imagem e seus Labirintos: o cinema clandestino do Recife, 1930-1964” (2014) e “A Utopia Provinciana: Recife, Cinema, Melancolia” (2010).

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