A cidade, esta musa rebelde

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por Matheus Torreão.

Falar sobre o disco novo de Wander Wildner é um negócio meio cabeludo para mim por algumas razões. A primeira por ter nele um camarada, com quem já dividiram o palco algumas vezes minhas mal-traçadas linhas de contrabaixo. A segunda por ter lido há pouco tempo a seguinte frase sua, comentando um post onde haters lazarentos e fãs nefelibatas estapeavam-se intrepidamente por um pedaço de carne mal passada do mais novo destaque da cena indie pop nacional a ser vítima do azedume dos nossos blogueiros: “acho melhor criar qualquer coisa, que alguns não vão gostar, ou entender, do que falar sobre o que alguém fez”. Diante de um preâmbulo desta sorte, não conseguiria pensar numa pior decisão seguinte que escrever sobre seu trabalho recém-lançado para um site chamado Outros Críticos.

Vou tentar, de certa forma, justificar minha má ideia: Existe alguém aí? é o seu primeiro disco conceitual, o que não faz dele especial apenas por ser o único álbum conceitual dentre seus outros sete álbuns não conceituais, mas também por conservar vivo o temerário ímpeto de pôr o próprio talento à prova que carrega todo artista digno da carapuça da autenticidade. Considerando ainda o agravo de que, há não muito tempo, Wander chegou a aniversariar cinco anos felizes demais pra compor, uma obra conceitual com dez autênticos Wildners não haveria de passar incólume pelo escrutínio do secto mais punk e mais brega de ouvintes do subterrâneo porto-alegrense, dos quais me considero modesta parte. Por fim, o golpe de misericórdia veio mesmo depois das primeiras resenhas anunciarem que o disco refletia a “visão crítica da sociedade” de um cara que sempre esteve – e não digo isso em tom demeritório, muito pelo contrário – frito de novas ideias sobre todas as coisas e convencendo de pronto minha personalidade parcamente convicta de como essas eram muito melhores e faziam muito mais sentido que as passadas todas as ocasiões em que o encontrei (parar de usar meias esteve dentre elas por um tempo).

Na última dessas ocasiões, uns dois anos atrás, ouvi ao lado de um taxista atordoado seu falatório niilista de bardo selvagem decretar: “Rá! Eles que vivam a vida que eles querem. Se eles querem carros, fabriquem carros, se querem prédios, construam prédios, que sigam esse caminho que escolheram. Eu sigo outro, sigo o meu, e não tenho nada a ver com essa @$#%&”. Eis que surge, rasgando a densa noite da urbe moderna, desafiando seus obscenos e ostensivos arranha-céus, clamando às suas inóspitas rugas de concreto, a peremptória e estuporante indagação: Existe alguém aí?

Não vou negar, portanto, que um grande mas óia praílson ecoou no meu âmago à visão daquela capa, junto com uma avidez lariquenta de ouvir o disco que ela vestia. E já nas primeiras lágrimas de chuva que abrem Réquiem para uma cidade resolve-se o enigma: aquela por quem nosso eu-lírico meio Wando e meio wild se entorpece bebendo vinho, a quem clama um motivo para não cheirar cola, junto a quem não consegue ser alegre o tempo inteiro é, senhoras e senhores, a metrópole dos nossos tempos. Na primeira faixa, é feito o anúncio fúnebre: Porto Alegre está morta. Infartada pelo entupimento dos seus vasos sanitários, condenada ao destino fatal pela soberba kamikaze de seus líderes políticos e corporativos, carcomida pelas necrófagas empreiteiras imobiliárias e concessionárias automobilísticas. Resta, diante do dilúvio bíblico patrocinado pela Fifa, a lânguida e desmilinguida figura do trovador batráquio: “Tô me sentindo um sapo na beira do rio / Quando o sapo canta menina, é porque tá com frio”.

Naquela noite ela chorou só corrobora a tese da cidade como musa conceitual das canções de Existe Alguém Aí?, representada pelas recorrentes personagens femininas. A protagonista que chora aqui não é Wynona, nem Dani, nem Candy, nem Clô. Não representa um martírio individual, mas coletivo: “Ela não estava sozinha naquela noite / outras pessoas também choravam a mesma dor / todos viram a democracia acontecer / mas com um resultado devastador”. Quem debulha-se aqui pelos sufrágios derramados em urnas erradas é a própria Porto Alegre, e agora chegam a parecer nostálgicos e pueris os imbróglios afetivos daquele punkbrega cujas dores resumiam-se ao tesão frustrado pela empregada. Também aqui o papo do táxi revela, enfim, sua angústia recalcada: se a personagem da canção desolou-se quando “percebeu que a maioria / não queria o que ela queria”, é difícil imaginar que Wander, por mais autossuficiente que pareça um homem capaz de viver uma vida inteira migrando de um albergue pro outro com três mudas de roupa, estivesse tão resignado a ponto de assistir imperturbável a maioria seguir sua trilha extasiada rumo ao à distopia urbanística.

Frente a um presente de trevas, surgem as saídas escapistas: Numa ilha qualquer (“Ele se esquece dos sonhos quando acorda / e é por isso que ele sonha acordado”) e Sobrevoando as ruas da cidade (“Sempre altivo e garboso com alegria majestosa / ficando bem próximo dos amigos que já foram / momentos mágicos subvertem / a ordem estabelecida”) pintam desvarios dignos do funcionário público Sam Lowry, do Brazil de Terry Gilliam, que vivendo num futuro caótico tem uma reincidente visão quimérica na qual rebenta as gavetas abarrotadas de arquivos do seu emprego de burocrata no Ministério das Informações e alça voo ao lado de sua amada. Numa ilha qualquer, inclusive, não me deixa parar as associações cinematográficas por aí: há, no folclore europeu, uma ilha fantasma chamada Brasil cujas névoas místicas só a deixariam ser vista por um dia a cada sete anos. E se não é esta a razão para Brazil chamar-se assim, o episódio que inspirou Terry Gilliam a batizar seu clássico talvez sintetize os sentimentos mistos de depressão cívica e autossuficiência de doidão que numa cruza promíscua deram luz à Existe alguém aí?:

“Port Talbot é uma cidade industrial, onde tudo está coberto com poeira cinza. Até a praia é coberta de pó, é simplesmente preta. O sol estava se pondo, e estava uma beleza. O contraste era extraordinário, eu tinha a imagem desse cara sentando lá nessa praia imunda com um rádio portátil, sintonizando aquelas canções latinas escapistas como “Brazil”. Essa música transportava-o de alguma forma a fazia do seu mundo menos cinza” (Terry Gilliam apud Jack Matthews, The Battle of Brazil, 1987, trad. Livre).

É na emergência do cidadão desamparado, porém livre; desiludido, porém numa nice; que o Wander Wildner do táxi revela sua potência. Na faixa Sua própria companhia, na qual descreve um sujeito que passa todos os dias falando sozinho, alheio por completo à sobrecarga auditiva e visual de uma avenida babélica, vemos uma ilustração poderosa desta figura. Há, em conflito com a fascinação wildneriana de andarilho desgarrado pela misantropia do personagem, a frustração acachapante da impossibilidade de comunicar-se: “Ele fica o dia todo, todos os dias / sentado em frente aquele prédio na avenida / ele fala o tempo inteiro, todo dia / palavras que eu não compreendo mas queria”. Eis, pois, a busca pela alteridade impenetrável que caracteriza a jornada quixotesca de Existe alguém aí?: os quinze-de-marcianos com seu daltonismo verde e amarelo revelam-se tão capazes de dialogar congruentemente quanto o mendicante desvairado falando sozinho na calçada, enquanto nosso amigo punk testemunha a morte lenta e excruciante de sua metrópole natal – negócio feio de ver, mesmo.

“quando a cidade passa a ser um dispositivo separador, mude de nome. Pode chamar de qualquer coisa, até de Recife, mas não chame de cidade” – Luiz Amorim

Recordo as palavras do arquiteto Luiz Amorim no documentário Reconstrucife, de Bernardo Valença, sobre os efeitos da metástase global da especulação imobiliária na nossa manguetown: “quando a cidade passa a ser um dispositivo separador, mude de nome. Pode chamar de qualquer coisa, até de Recife, mas não chame de cidade”. Que resta, então, à metrópole de Wander Wildner? Admitir seu embaraçoso fracasso, renegar seu nome de batismo, registrar-se em cartório como Nova Gatorade, São Doritos, Grande Chilli Beans? Eis que, contrariando as expectativas do ouvinte apressado, o enredo de Existe Alguém Aí? vai revelando progressivamente em suas faixas um desenlace triunfante.

Em Uma angústia presa na garganta, a urgência inadiável de respirar algo além das emissões de carbono e do mijo dos postes faz a cidade sair da inércia para insubordinar-se diante da realidade opressora (“mas agora ela vai se rebelar / vai sair correndo pela redenção”); em Vivendo 100% cada momento, abandona enfim os velhos modos de vida falidos e encarquilhados para saltar na escuridão incerta dos novos caminhos, levando na mochila “alguns sonhos despedaçados / e muitas coisas que ela não sabia”. Mais adiante, embarca na onda homegrownista para perseguir o horizonte ecossustentável das utopias em Plantar, colher e depois dançar (“agora é a hora de fazer / pensar em coisas bem bacanas / se alimentar de comidas orgânicas”) e, finalmente, insurge flamejante das cinzas, liberta dos grilhões do status quo e da cegueira causada pelas telas de plasma, bradando palavras de ordem no clímax de Ela é uma Phoenix: “Gritem contra todas injustiças sociais / contra os abusos cometidos pela humanidade”.

Com ares de epílogo, a derradeira faixa Saudade solapa as audiências quadradonas com seu refrão que desmorona qualquer expectativa de uma narrativa linear: “o tempo vai, o tempo vem / e tudo volta pro começo”. Eis o paradoxo oroborístico de Existe alguém aí?: nascer com um réquiem, encerrar-se com um recomeço. Seria uma referência mística à Samsara budista? Uma atualização dançante do re-acontecimento prescrito pela História Cíclica? Uma alusão hippie-punk-rajnietzsche ao Eterno Retorno? Eu, que já fui longe demais no assanhamento interpretativo e esgotei toda a minha verborragia pseudo-analítica só pra maquiar o fato de que não saco mesmo bulhufas do que se passa na cabeça de Wander Wildner, vou mais é botar o disco de novo pra rodar.

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Matheus Torreão Escrito por:

Compositor e jornalista.

4 Comentários

  1. 27 de abril de 2015
    Responder

    Querido Mateus, chorei ao ler teu texto. Muito obrigado! Grande abraço.

    • 29 de fevereiro de 2016
      Responder

      <3 amei esse disco! vem pra sp porra!

  2. Neira Galvêz
    16 de maio de 2020
    Responder

    Matheus Torreão, eu não te conheço. Mas essa foi a melhor crítica de discos que eu já vi até hoje!

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