
por AD Luna.
“(…) A ideia de que o artista não pensa de maneira tão atenta e penetrante quanto o investigador científico é absurda. O pintor tem de vivenciar conscientemente o efeito de cada pincelada que dá ou não saberá o que está fazendo nem para onde vai seu trabalho”. O trecho é do livro Arte como experiência, do filósofo norte-americano John Dewey, publicado originalmente em 1934. Ainda que o pedaço de reflexão cite a pintura, ela se encaixa bem no universo do fazer musical. Em Pernambuco, por exemplo, tivemos um grande artífice dos sons que incorporou o Science ao nome.
Seja com pouca ou grande consciência do processo de causas, efeitos e sensações que geram, músicos trabalham de forma semelhante a cientistas. Os primeiros materiais usados na tecnologia dos sons surgem, muitas vezes e misteriosamente, em suas próprias mentes. Batidas, melodias, harmonias, letras aparecem quando e onde menos se espera. Até do fantástico mundo dos sonhos podem emergir matérias-primas para futuras obras musicais. É na própria consciência onde ocorrem os primeiros experimentos. Ao cantar para si mesmo uma melodia que a princípio julgou atraente, o compositor testa a possibilidade de ela gerar sensações em outros seres. Às vezes dá muito, muito certo; em outras, mais ou menos; também acontece do experimento vir a ser um fracasso completo.
Além do “laboratório de si mesmo”, músicos-cientistas dispõem de inúmeros equipamentos para formatar e compartilhar seus experimentos. Pode-se diminuir ou aumentar o andamento de uma música ao se pretender gerar certas reações nas pessoas. Guitarristas, baixistas, bateristas, tecladistas etc. podem trocar de instrumentos e afinações em cada uma das gravações a fim de provocar diferentes reações em quem as ouve. “Se eu usar essa caixa de madeira o som vai ficar mais grave”, pensa o homem das baquetas e tambores. A escolha de determinado amplificador e pedal pode fazer toda a diferença num riff de guitarra. Nos estúdios caseiros ou profissionais, também temos computadores, samplers, softwares, mesas de gravação. Não à toa, há quem se sinta dentro de uma espaçonave ao visitar e/ou trabalhar nesses templos do som.
Sobre noites e dias, novo disco de Lucas Santtana, é um bom exemplo da ciência da música aplicada deliberadamente. Junto com outros “cientistas”, a exemplo do rapper De Leve, do baixista Bi Ribeiro, do produtor alemão Daniel Haaskman, do maestro Letieris Leite, do Oslo String Quartetentre, Bruno Marques e até das atrizes Camila Pitanga e Fanny Ardant, o baiano concebeu um conjunto de 10 certeiras e estimulantes construções sonoras. Misturar elementos de samba, rap, funk (incluindo aí o do batidão carioca), bossa nova, carimbó, africanidades, música eletrônica e caribenha não é lá muita novidade. Mas há grande mérito quando se faz isso com a intenção de fazer o ouvinte sentir novos sabores ao tomar contato com a junção dos ingredientes.
O disco é repleto de boas sacadas. O empolgante frevo-marcha “Mariazinha morena clara” está alicerçado sob batidas eletrônicas e prova que há inúmeros caminhos para se “modernizar” tais estilos. Cantada em inglês, “Human time” é deliciosamente densa, atmosférica. É como se o Air agregasse tons tropicais a seu trabalho. Poderia estar facilmente na trilha de algum filme de ficção científica. “Funk dos bromânticos” é um divertido chega pra lá na homofobia. “Ele beija ela, ela beija ele/ mas se rolar um clima/ ele beija ele/ ela beija ela/ para ele o amor é livre/ ela não é gay/ ele não é viado/ não são mais classificados”, diz a letra. Há outros ótimos momentos no Sobre noites e dias. Aqui, sugiro ao leitor ouvir por si mesmo e por completo essa boa surpresa da “ciência da música”. O disco está disponível para audição na página do Soundcloud do músico.
Publicado originalmente em agosto de 2014, na 5ª edição da revista Outros Críticos.
Foto de capa do site: Laurent Antonelli
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