A sedição das cordas

Brazilian Jazz. Duas palavras amalgamadas numa expressão que traduz, antes de mais nada, uma brilhante jogada de marketing da indústria fonográfica norte americana. O termo foi inventado nos Estados Unidos nos anos 1960 para, a grosso modo, rotular o encontro da bossa nova com o jazz e registra no continuum da História como a música brasileira oxigenou a produção artística de toda uma cena que, apesar de vivenciar as inovações estéticas trazidas pelos instrumentistas ligados ao New Thing, perdia o contato com o grande público, cada vez mais interessado na retórica direta e crua do rock. O resultado foi um sucesso comercial estrondoso que até hoje ecoa, cristalizando-se lucrativa commodity simbólica que produz de bibelôs da sofisticação elitista a verdadeiras (embora, cada vez mais raras) explorações dessa confluência sonora.

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Walter Areia é contrabaixista, compositor e produtor e, por mais de 13 anos, foi integrante da banda mundo livre s/a. Também lançou discos como “Areia Projeto” e “Areia e Grupo de Música Aberta”. Rafael Marques é bandolinista e compositor. Iniciou sua carreira no conjunto de choro Arabiando. O músico também é integrante do trio instrumental Saracotia.

No entanto, gotejar alguma problematização sobre o termo expõe como ele traz imbuído em si algumas questões delicadas: a tensão político-cultural implícita à expressão, a visão caricata e reducionista da música brasileira e as intransponíveis e equivocadas fronteiras estéticas que o brazilian jazz impõe. Uma tag mercadológica que ignora a riqueza e a minúcia da produção musical destas terras e parece não reconhecer o elemento de improvisação e risco incutido em nossa matriz instrumental, como se apenas ao jazz coubesse o direito de ser música improvisada. Assim, insurgindo-se contra esse status quo do mercado de forma orgânica – e não, panfletária – e engrossando o coro dos muitos adeptos do instrumental brasileiro os quais rejeitam as generalizações do rótulo jazz1, está o primeiro disco do duo Rafael Marques e Walter Areia, Treze Cordas.

A simbiose dos músicos e a intenção de respirar como um só estão escancaradas no título do álbum, que faz menção ao somatório das cordas dos instrumentos utilizados pela dupla: o bandolim de 10 cordas de Rafael e o estranho baixo acústico de 3 cordas de Areia, numa expectativa, para além da estética e das implicações musicológicas, voltada talvez à mística do número 13 e certamente à busca da comunhão de espíritos livres no etéreo do som. A capa, com os instrumentistas sorrindo, olhando para o mesmo horizonte infinito que o ouvinte apenas infere, só reforça essa ideia de união na jornada expressiva em direção ao imponderável presente em cada uma das oito faixas do disco. Faixas que, por sinal, expõem não apenas o contraponto tímbrico do baixo e do bandolim, a complementaridade destes dois instrumentos da família das cordas que extrapolam suas funções harmônica, melódica e rítmica para manter a música ali sob seu escrutínio, mas a justaposição das identidades musicais absolutamente contrastantes dos dois músicos. E funciona! De um lado, o jovem virtuose, encarnado na figura de Rafael, que domina seu instrumento como se fosse uma extensão natural de seu corpo e apresenta temas marcados por melodias ricas e imaginativas, sagacidade no encadeamento dos acordes, modulações na dinâmica, um latente senso de humor e por vezes até certa autoironia (que no império do politicamente correto, transfigura-se em ato subversivo); e do outro, o minimalista experimentado, personificado em Areia, que pouco interfere no material temático, apresenta serenos contrapontos nos graves à fúria do bandolim de Rafael e oferece composições focadas no uso dos espaços, da harmonia modal e em sessões de improviso no território aberto do vamp.

Por tudo isso, Treze Cordas é mais do que um mero “novo disco” de artistas locais. É, isto sim, o registro contundente do não-conformismo estético de dois instrumentistas que buscam não somente expandir as fronteiras do regionalismo que os formou, mas derrubá-las. Sublevar-se contra o traiçoeiro conforto dos estilos e a catalogação arbitrária dos rótulos comerciais para conceber uma arte inteiramente humana no âmago. Promover a sedição das cordas.

Destaque para os matizes mouriscos e a minudente construção narrativa de “Armoriando Para Egildo”, faixa de abertura do disco escrita por Rafael em homenagem ao flautista Egildo Vieira, integrante do lendário Quinteto Armorial; a métrica irregular (e um tanto enigmática) de “Sem Paredes”, composição de Areia que traz seu característico esquema “tema – improviso – tema”; as reminiscências de latinidade presentes em “Sarará”, música do bandolinista que consegue a proeza de sublimar e intuir não apenas a orquestra de baile, mas todo o baile em si; o virtuosismo com propósito de “Fricote de Mulher”, composição de Rafael em parceria com Beto do Bandolim que além do humor debochado e ingênuo estabelece uma conversa silenciosa com “Desvairada”, choro-valsa de Garoto; o diálogo intenso e permanente estabelecido entre os músicos; a imaginação sem fim e o fraseado de Rafael nos solos; a capacidade de Areia em manter toda a estrutura sonora de pé e a consciência de saber exatamente onde se está na forma.

Altamente recomendado.

Publicado originalmente na ed. 12 da revista Outros Críticos.

Foto: Mery Lemos

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Bruno Vitorino Escrito por:

Compositor, baixista e colunista do blog Variações para 4.

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