
por Bruno Vitorino.
Uma das lendas vivas do jazz e figura central do movimento nascido em Chicago nos anos 1960 que ampliou as fronteiras sonoras (e políticas) do gênero, naquilo que ficou imortalizado como Association for the Advancement of Creative Musicians; Muhal Richard Abrams afirma que “quando você toca música com outras pessoas, forma-se um laço que nunca se quebra”. O que parece ser à primeira vista uma afirmação tanto óbvia, quando investigada mais a fundo revela um alcance assombroso. De fato, a gama de vínculos emocionais que surge do exercício coletivo da autoexpressão no mundo abstrato dos sons, ou seja, da performance, proporciona à música focada no improviso enquanto fio condutor da plenitude artística o tão necessário movimento que a torna dinâmica, profunda, imperfeita, transitória; enfim, humana. O pensamento e o instinto, o acerto e o erro, o sentido e o represado, a inspiração e a transpiração, o sentimento e a técnica; enfim, a conjunção dessa série de opostos que se manifesta de modo único em cada músico envolvido nesse processo contribui para que uma composição seja reformatada e reimaginada a cada execução, já que a comunhão dessas perspectivas individuais, que se ligam fortemente numa espécie de sinergia emotiva, proporciona a manipulação espontânea de uma estrutura predefinida, a construção de outra inteiramente nova a partir desta e o compartilhamento da liberdade desse ato de criar na incerteza. É justamente dessa teia de relações que se alimentam os pernambucanos do Mojav Duo na organização de suas intricadas estruturas sonoras.
Formado em 2009 por Fred Lyra (guitarra e violão) e Hugo Medeiros (bateria), o Mojav Duo traz em seu cerne a experimentação e um profundo comprometimento com o risco. A começar pela formação: um dueto improvável entre um instrumento percussivo que, indo muito além de sua função primordial de guardião do pulso, não se conforma em apenas marcar o tempo, mas expandi-lo, sublimá-lo; e outro harmônico, que mais atua como melodista do que como o provedor da massa de acordes organizados segundo as regras de um tonalismo tão decantado em nosso ouvido. Em sua busca por novas possibilidades composicionais, mais do que propor um incomum direcionamento harmônico vinculado a uma melodia que o determina, as composições do Mojav Duo se voltam para o ritmo enquanto força motriz do desenvolvimento temático, focando no ritmo liberto de si mesmo, isto é, das amarras e convenções estéticas da música ocidental que o condenaram a apenas alicerce na estruturação objetiva da forma, um coadjuvante ante o domínio da melodia/harmonia. Portanto, o que se encontra na música do dueto são trabalhos com ciclos rítmicos complexos que se combinam numa miríade desnorteante; o uso do pulso variável como elemento de dramaticidade na interpretação das músicas, o contraponto métrico promovido pela bateria em seu diálogo constante com a guitarra, a geometria assimétrica da sucessão de diferentes compassos e a tensão latente na sobreposição de padrões métricos conflitantes. Reminiscências dos conceitos estabelecidos por Steve Coleman, os quais assimilados pelas mentes inquietas de Fred e Hugo resultaram em peças de um brilhantismo ímpar, como atesta o primeiro disco da dupla.
Gravado ao vivo no Estúdio Casona com recursos do FUNCULTURA, o disco homônimo Mojav Duo traz oito composições autorais do dueto que equilibram o rigor da arquitetura sonora e a liberdade partilhada pelos músicos quando da improvisação sobre essas estruturas hostis. Nesse sentido, vale ressaltar a imensa responsabilidade que recai sobre os instrumentistas, porque a empreitada exige deles a árdua tarefa de, com apenas dois instrumentos e muito espaço para preencher, dar substância às composições: estabelecer e interpretar as formas para logo em seguida internalizá-las com todos os seus complexos modelos rítmicos e se lançar ao exercício incerto da improvisação sobre essas plataformas complicadas auxiliados tão somente pela intuição e pela memória. Um trabalho hercúleo que expõe bastante ambos os músicos, já que todo e qualquer erro ou hesitação, por menor que seja, é claramente perceptível. No entanto, apesar dessas adversidades imanentes à música, o nível técnico dos instrumentistas e a força do elo artístico que os une são tão altos que o resultado não é outro além do sublime. Destaque para a métrica sinuosa de “De Costas para Si”, a profusão rítmica de “Série 1” e a ambiência flutuante de “Vozes do Além”.
Altamente recomendado!
Publicado originalmente na revista Outros Críticos #7 – versão da revista on-line | versão da revista impressa
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