A voz, a imagem e o transitório

por Fred Coelho.

Dedicado a Juçara Marçal.

I – Alguém cantando é bom de se ouvir

Há um corpo que canta e toca instrumentos. Há corpos em uma plateia. Todos, sedentos dos corpos no palco, observando seus mínimos movimentos. O músico é esse corpo múltiplo em produção constante de sons, gestos, olhares. Ele ativa sensações coletivas e aguça subjetividades singulares. Ele se move pela arena, atuando em um teatro cuja dramaturgia são suas canções, seus espasmos sonoros. Ele é o dono da cena.

Som é ocupação de espaços. A música é uma das rotas possíveis para exercer essa ocupação. Nela, o corpo daquele que a executa torna-se transmidiático, atravessado por criações que articulam sentidos. No palco, o músico torna-se corpo estético em movimento, interface presencial entre a máquina (aparato técnico) e a nossa fruição. No disco, o músico torna-se abstração, puro som para ser desvendado através de uma assinatura que demarca sua audição. Em ambos os formatos, uma imagem ressoa.

 

II – A voz do vivo

Em poucas décadas de cultura de massas entre nós, a experiência abstrata e aberta da voz no rádio (pensemos na década de 1940 no Brasil) foi sobreposta pela experiência imagética da voz na televisão. Essa presença de uma imagem atrelada a uma voz faz com que a interpretação musical adquira múltiplas camadas que se manifestam no corpo do intérprete. De certa forma, é possível pensar uma narrativa sobre a música brasileira apenas pelo prisma dessa voz-imagem que se desdobrou em capas de discos, cenários, figurinos, programas de televisão etc. Durante os anos 1970 alguns artistas levaram isso longe ao utilizarem o princípio da mutação como motor de suas apresentações. Mesmo uma artista inserida no mainstream do seu tempo como Elis Regina utilizou de recursos cênicos fundamentais em seus espetáculos. Mudava de cortes de cabelo e guarda-roupas de acordo com discos, pensava repertórios de acordo com os momentos de sua vida. Músicos como Elis e muitos outros entenderam que mais do que ser representada por uma imagem, deve-se assumir a própria condição precária e transitória de uma imagem em circulação no mercado das formas culturais de consumo.

Muitos músicos entenderam plenamente esse espaço cênico-imagético da música e investiram suas carreiras na criação dessas múltiplas camadas sensoriais propostos ao público. Não desperdiçaram nenhum elemento na ampliação de suas performances. Assumiram personas fugazes, reinventaram rostos, refundaram sonoridades, criaram personagens fictícios. Ao contrário de heterônimos literários, porém, eles precisaram fazer isso também em seus próprios corpos. Essas são marcas de grandes artistas cuja ideia de trânsito marcaram suas trajetórias. São aqueles que entenderam desde cedo que cabe à arte e ao artista propor enredos de vida. Na música, porém, não basta assumir outro nome para rasurar assinaturas. Pois seu nome não assina nada. Quem assina são timbres, vozes, elementos sonoros que o ouvinte reconhece em uma audição interessada. De certa forma, se entre 1972 e 1979 David Bowie mudou ao menos quatro vezes de visual em função de personagens que conduziam a narrativa de seus discos, a sua voz permaneceu sempre a mesma. Se as máscaras são trocadas, a voz trai o deslocamento do sujeito autoral? A voz como máscara da canção (situada entre o compositor, o intérprete e o ouvinte) ou a voz como limite da máscara (uma constante que denuncia a assinatura de um nome)?

Mas afinal, que instância “assina” uma composição: quem escreve, quem interpreta ou quem a escuta? Que autoria pode ser reivindicada em um jogo tão intrincado de vozes quando a música é ativada em uma fruição? O consumo descentrado e sem hierarquias prévias da música nos dias de hoje aprofunda essa reflexão. O ouvinte contemporâneo de música assume o termo de Nicolas Bourriaud e torna-se um pós-produtor frenético: monta playlists, compartilha remix, refaz discos, escuta apenas faixas no Youtube, enfim, cria táticas criativas e subversivas de consumo. Em um ambiente em que a troca, o saque e a posse organizam um regime hegemônico de fruição (mas não o único), a canção – principalmente a popular, matriz e tradição moderna brasileira – torna-se uma obra transitória, pois nunca se fecha. Repertórios são permanentemente revisitados pelo ouvinte descontextualizado das novas gerações.

 

III – A voz do morto

O que proponho como tema, em suma, é pensar de forma mais livre a relação entre a música, seus dispositivos interpretativos (técnica, corpo, imagem) e seus circuitos de fruição e consumo. Partindo do mote das máscaras, vale aprofundarmos o lugar de quem usa seu corpo e sua voz como espaço de criação sonora – seja de seus trabalhos, seja do trabalho de terceiros. O intérprete tem como uma de suas etimologias o papel do medianeiro, daquele que faz a mediação entre coisas. No caso da música, ele se instala na brecha entre a obra criada e o público que a recebe. Sua máscara, porém, não é apenas uma vestimenta ou uma maquiagem. Sua máscara precisa da força física de uma voz para dar sentido ao músico como imagem. Pois é a voz que separa o corpo mudo e sem imagem do compositor do corpo vivo e sonoro da voz. Ela marca o espaço do intérprete como algo singular, encarnado por um ser que a emana, sugerida por um espaço que a conforta, legitimada por um público que a deseja. Na canção, a voz carrega a letra e cola nela sua marca. A eternidade de Noel Rosa é a voz de Aracy de Almeida, a de Humberto Teixeira é a voz de Luiz Gonzaga.

Às vezes, vozes musicais engolem quem as possui. Lembramos das vozes e apagamos vidas que fenecem por trás delas. Corpos morrem, mas suas vozes permanecem no dia a dia do mundo, como luzes de estrelas mortas que iluminam o céu. Silenciar uma voz é impossível quando ela atinge o imaginário coletivo. No caso brasileiro, a canção popular tornou-se esse “bloco de sensações” que se entranhou na fala cotidiana, que incorporou em práticas modernas tradições milenares, que inventou uma narrativa para nossas diferenças, que destrinchou uma gramática dos afetos das nossas formas de vida. E foram as vozes dos grandes intérpretes que deram presença física a esses elementos poéticos e sonoros.

Quando Carmem Miranda morreu em 1955, centenas de milhares de populares estavam enterrando uma voz, não um corpo. No dia de seu velório, um fato noticiado na edição especial da Revista da Música Popular toda dedicada ao falecimento da cantora (edição julho/agosto de 1955) torna essa perspectiva da morte da voz mais intenso. Cito a matéria: “Na saída do enterro, na Cinelândia, a banda da Polícia Municipal deu os acordes iniciais do ‘Taí’, a mais famosa criação de Carmem. Mas o povo que deveria cantar, em côro, a marchinha, ficou em silêncio”. O silencio ao redor do corpo (e da ausência da voz) de Carmem era o luto pelo fim da máscara de suas próprias emoções? Era o choro pelo fim daquela voz que era voz de todos e de cada um? A intérprete que literalmente incorporou na sua persona uma cultura musical – a carioca por princípio e a brasileira por consequência – ganhara status de voz coletiva e, ao mesmo tempo, singular. O intérprete canta no seu ouvido, apaga a voz de quem escreveu a música e a transforma em dado orgânico de sua vida no palco e no pensamento. No mesmo número especial da Revista, o compositor Fernando Lobo define isso na frase final: “Morre o samba na voz de Carmem Miranda”. O fim de uma voz, o fim de uma máscara, o fim de um mundo.

 

IV – O dono da voz

Pensemos agora no polo oposto dessa máscara escorregadia. Falo do compositor, aquele sem voz, sem performance, sem máscaras para inventar mundos sonoros. Quando em 2014 a jornalista Mariana Filgueiras divulgou uma entrevista com Torquato Neto feita pelo radialista gaúcho Vanderlei Malta da Cunha em 1968, foi a primeira vez que sua voz pôde ser ouvida pelo público – quase meio século depois. De certa forma, essa gravação que nos revela um Torquato eloquente e extremamente articulado completou um corpo mutilado em nossa memória da cultura – um corpo que não tinha permanência sonora, apesar de conhecermos o que ele escrevia, como ele se movia, o que ele pensava. É porque, talvez, faltasse justamente uma voz. Voz essa que Torquato Neto não usara na sua época para cantar. Sua participação no tropicalismo musical e nos debates da música durante os anos de 1967 e 1968 foram fundamentais, mas só textos e vozes de terceiros nos dizem isso. Sem uma voz que carregasse suas composições (gravadas quase todas por Gil, Caetano, Edu Lobo, Maria Bethânia ou Jards Macalé), sua máscara era incompleta. Vale citar aqui as palavras precisas de Tom Zé sobre o compositor piauiense em Tropicalista Lenta Luta (Publifolha, 2003): “Não cantar apagava a visualidade de Torquato, na fase em que se instaurava com mais força o cantor-imagem”. Cantor-imagem, cantor da “máscara da máscara”, aquele que se torna uma dobra posto que é intérprete de si mesmo e de uma imagem sobre si mesmo. O cantor-imagem surge como um dispositivo que esvazia ainda mais o espaço do compositor como criador de letras. Ele agora é um corpo sem imagem e sem uma voz que lhe dê vida ou que lhe deixe viver para sempre depois da morte desse corpo.

 

V – A voz sem dono

Hoje, 2015, vemos que o ocaso da indústria fonográfica também provocou o mesmo fenômeno com o modelo do cantor-imagem sugerido por Tom Zé. O consumidor da pós-produção e a condição transitória da canção possibilitaram outros modelos dessa relação música-imagem. Os tradicionais espaços assinados como o disco, o clipe, o single ou a campanha de lançamento, mesmo que não apaguem o traço singular de uma voz, não apostam mais obrigatoriamente em uma imagem como parte de sua constituição. A televisão deu lugar a mídias móveis e clipadas e hoje vemos-ouvimos apresentações musicais em recortes precários através de vídeos privados despejados na rede. Compartilhamos registros desfocados e abafados pelo prazer de apresentar um testemunho e não uma canção. Assim como o som, a imagem, mesmo que na sua força contemporânea, é porosa a uma baixa qualidade de resolução, ficando livre da obrigação de ser tão boa quanto a voz que representava. Assim, voz e corpo se libertam, esvaziando a máscara do cantor-imagem. Nossa produção mais recente demonstra os usos abertos e inventivos das vozes e dos instrumentos, se afastando da imagem como representação de algo no lugar de alguém (o intérprete no lugar do compositor) e se aproximando do SOM como espaço de atuação e assinatura. Gravadoras, grandes estúdios ou redes de televisão não dão mais as cartas no que diz respeito à técnica vocal que precisa estar atrelada a obrigação de uma performance cênica bombástica desse corpo que canta e toca.

A voz se libertou do mascaramento epidérmico do sujeito (maquiagens e figurinos) para poder assumir o lugar pleno de uma máscara em trânsito, vestindo diferentes rostos sonoros de acordo com a experimentação proposta.

Juçara Marçal é o exemplo mais contundente desse ponto de vista proposto. Uma cantora cujos trabalhos transitaram dos grupos vocais e bandas semiacústicas até experimentações com máquinas e improvisos, como nos recentes Abismu (com Kiko Dinnuci e Thomas Harres) e Anganga (com Cadu Tenório). Seu canto é máscara pois assume a imagem de uma voz em trânsito e em transe. Nada se fixa na imagem pré-concebida, cada projeto é a construção de uma nova imagem em que a voz, sem precisar salvar a nação, vender milhões de discos ou elevar o ibope televisivo, é o centro nervoso dessa inquietação. Máscaras que, ao invés de iludirem ou sequestrarem corpos de compositores em silêncios, os transfiguram em novos corpos terceiros.

Publicado originalmente na revista Outros Críticos #9 – versão da revista on-line | versão da revista impressa

Arte: Manu Maltez

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Fred Coelho Escrito por:

Escritor, ensaísta, pesquisador, mestre em história pela UFRJ e doutor em literatura pela PUC-RJ, onde é professor.

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