
A arte é anterior á vida. Isto é uma convicção minha, perfeitamente serena. Eu não tenho escripto os meus versos á margem da minha vida: eu tenho escripto a minha vida á margem dos meus versos. Minha existência é um plagio da minha arte.
A vida de todos os artistas tem sido um commentario á sua arte. Um commentario explicativo. E isso pela razão muito simples de que um grande, verdadeiro artista colloca a sua arte acima da sua vida. Elle não vive um caso para exploral-o depois: elle faz arte primeiro, arte que elle inconscientemente vae viver mais tarde. Si para um homem qualquer o simples contacto com uma obra de arte é uma tentação irrisistivel de imital-a na vida, o que não será para o seu próprio autor?
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Assim, a arte é uma prophecia. Um lindo vaticinio. Realiza se ou não? — Só os artistas o sabem, mas bem intimamente.
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Quando se affirma uma cousa qualquer é preciso concluir qualquer cousa. Do que affirmei concluo isto: estou absolutamente revoltado contra esse preconceito geral de que só a obra de um artista pertence ao publico; a sua vida, não.
Mentira. A sua vida pertence também ao povo. O povo tem o direito de devassal-a â vontade. Que nenhum artista grite contra isto! Eu pensaria que elle se envergonha da sua vida, isto é, do resultado da sua arte.
Desde que um homem dá publicidade á sua arte, despe-se em publico de certos direitos. E’ o que se entende por “cahir no no domínio publico». Prostitue-se. Vende-se. A bôa gente que compra um livro, que compra um quadro, que compra uma estatua, compra também um pouco a alma do seu autor. Não é absolutamente negociável uma alma separada do corpo. A arte é a alma; a vida é o corpo. Um homem que paga uma mulher paga um só instante da sua alma, com direito, evidentemente, a todos os segredos do seu corpo.
E’ preciso não se ter vergonha do corpo, si não se teve vergonha da alma. Todos os corpos parecem-se com as almas.
Pudor? — Mas o pudor é a virtude dos imperfeitos.
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Não ha nada de inconfessável a traz de uma grande arte.
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Um artista é mais ou menos um Doutor Fausto. Vende a um gênio máo a sua alma, para ter perfeições moças para o seu corpo.
Questão de conforto: uma obra de arte vendida produz geralmente uma chevióte bem cortada num corpo tractado, um cigarro agradável num pedaço de âmbar fino e um perfume de grande estylo num Unho puro.
Isto parece querer insinuar que o publico é uma espécie de Mefistófeles. Eis um elogio extraordinário que elle nunca teve.
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Que bem pouca importância tem para o artista a obra de arte concluída! E’ por isso mesmo que elle a vende.
O artista é artista apenas emquanto crêa: tira do nada, è igual a Deus. Para elle, a obra de arte tem um valor ephemero, que vae do momento da concepção ao momento da conclusão. Depois… ella fica sendo uma pobre cousa desgraçada, bem morta e bem imprestável, na sua vida. Só representa uma utilidade toda sentimental: a de recordar aquelle instante divino e feliz da procreação.
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Todo artista dá sempre á luz um filho morto. E entrega-o bem simplesmente á terra deste mundo.
Elle precisa chorar sósinho, maternalmente. Elle dispensa as consolações impossíveis das comadres serviçaes da visinhança, que vêm clamar assim:
— «O menino é táo lindo! Elle poderia ser um bailarino russo!»
— «O menino é tão feio! Elle poderia ficar corcunda!»
Não. Elle não é nem poderia ser: elle foi, Eis tudo.
Ah! os críticos!
Guilherme de Almeida
Neste domingo, 1.° de Outubro, 1922.
A Brasiliana USP digitalizou a revista Klaxon: mensário de arte moderna (1922-1923). O texto acima foi retirado da 6ª edição fac-símile da revista. O site Monoskop fez uma postagem contendo as 09 edições da revista para download ou visualização do PDF. Preservamos a grafia original da edição fac-símile nessa postagem.
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