As encantações de Renata Rosa

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Conta com bases e arranjos assinados Hugo Linns e Caçapa, participação dos metais da Jazz Sinfônica Nahor Gomes e Sidney Borgani e da família Suíra, que participa dos coros e arranjos vocais. O disco foi mixado por Gustavo Lenza no Estúdio La Nave e masterizado por Carlinhos Freitas no Estúdio Classic Master. A finalização e lançamento foram viabilizados através de financiamento coletivo no site Catarse.

Há no mundo de hoje inúmeros elementos de distração. No seu enfrentamento diário da realidade, o sujeito contemporâneo encontra-se imerso num oceano de estímulos sensoriais que se justapõem proporcionando-lhe uma gama interminável de pequenos sequestros de consciência que diluem a individualidade daquele Eu uno, centrado, cartesiano em um Outro, multifacetado e eternamente disperso. O celular está sempre a alarmar uma nova mensagem de um grupo de Whatsapp; as notificações da timeline do Facebook demandam um reiterado e compulsivo passar de olhos; o feed de notícias traz a todo instante as últimas informações e novidades; e os sites de streaming fornecem, à distância de uns poucos cliques, um fluxo ininterrupto de música do mundo inteiro. Não sem razão, Eric Hobsbawm fala com algum espanto do inédito “desenvolvimento de sociedades nas quais uma economia tecnoindustrializada imerge nossa vida em experiências universais, constantes e onipresentes de informação e produção cultural – de som, imagem, palavra, memória e símbolos”¹. Saturação, transitoriedade e deslocamento; tríade balizadora dos tempos hipermodernos que lança o indivíduo no paradoxo do “aqui, lá e em lugar algum”. Assim, perdido nas marés do novidadismo, desatachado de uma perspectiva histórica do tempo, alternando entre modos de vida que endossam padrões de consumo estetizados, o sujeito flutua.

No entanto, existem sempre interessantes movimentos no contrafluxo da Cultura, e dentre esses está o novo trabalho da cantora/compositora/instrumentista paulista, radicada em Pernambuco, Renata Rosa. Com seu Encantações, a artista se apropria de maneira bastante pessoal e orgânica de manifestações folclóricas encontradas no interior do estado – como a ciranda e o coco – em composições que reverenciam a tradição e ao mesmo tempo celebram sua vivacidade e força criativa. De quebra, em seu disco, Renata ainda consegue resgatar à música seu preceito mais elementar: a escuta. Preceito este, diga-se, perdido ante o excesso e a banalização da arte de organizar os sons os quais a transfiguraram mero pano de fundo de uma realidade que se experimenta na superfície.

Dessa forma, a artista convida o ouvinte a, mais do que provar descargas epidérmicas de sensações frívolas, juntar os pedaços espalhados do Eu para fruir da experiência estética proporcionada pelos efeitos de presença da música. Propõe suspender no fugaz território do êxtase a liquidez das identidades, devolver ao sujeito a sensação de estar no mundo e restituir à Arte “o poder de fazer conhecer e contemplar a própria essência do mundo”². Não à toa, Renata canta que “como cirandeiro eu sei ir à curva do Encantado”: seu objetivo é a revelação desses campos finitos de sensibilização e plenitude que se inserem na tessitura do real como universos paralelos. Nesse sentido, suas “Encantações” podem facilmente ser lidas como epifanias, rupturas na banalidade frenética do dia a dia para desvelar possibilidades mais profundas e viscerais. Por isso, seu álbum se apresenta tão necessário.

Destaque para “Encantações”, a camerística faixa que abre e dá nome ao disco, com sua melodia intuitiva enriquecida por uma firme trama de vozes e amparada por uma inesperada base de sopros – arranjada por Caçapa – que equilibra as fortes cores sertanejas evocadas pelo ré mixolídio com um delicado si menor; a poesia da ciranda “Saudade do Futuro”; o som claro e límpido da rabeca tocada pela cantora na instrumental “Roda do Vento”, o qual evidencia uma artista que sabe exatamente o que faz e conhece os mananciais da tradição em que bebe; e a interpretação de Renata no quasi choro “Amei Demais” que, utilizando-se de notas de passagem as quais parecem (só parecem!) desafinadas, cria uma tensão na melodia que condiz com a dramaticidade da canção e denuncia um total controle técnico e expressivo de sua voz por parte da cantora.

Recomendado!

Foto: Michele Souza em Condado

[1] HOBSBAWM, Eric; “Tempos Fraturados: Cultura e Sociedade no Século XX”, Companhia das Letras, São Paulo, 2013, pág. 14.

[2] LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean; “A Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo Artista”, Companhia das Levras, São Paulo, 2015, pág. 22.

Publicado originalmente na revista Outros Críticos #10 – versão da revista on-line | versão da revista impressa

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Bruno Vitorino Escrito por:

Compositor, baixista e colunista do blog Variações para 4.

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