Não boia a carniça na superfície do mar,
em cujo fundo permanecem as pérolas?
Excerto do “Livro das Mil e Uma Noites”1.
10:38. O sol perfazia sua inexorável jornada em direção ao zênite num céu do mais puro azul. Lá do alto, o astro-rei despejava implacavelmente sobre Olinda todo seu esplendor luminoso e parecia zombar da agonia daquelas risíveis criaturas que lá embaixo enfrentavam o calor de sua força no vai e vem das ladeiras. Do meu ponto de vista, subir lentamente a rua de São Francisco, sentindo nos ossos a quentura que irradiava dos paralelepípedos e o suor do esforço que pingava do meu rosto, acabou sendo uma espécie de provação. Provação essa que logo se desdobrou em algo de certa forma mais elevado e metafísico, feito uma procissão, já que eu não era o único a marchar sob o sol escaldante e me ajuntava a tantas outras pessoas que, como eu, rumavam ao Convento de São Francisco com o mesmíssimo propósito: testemunhar a efêmera e transcendental manifestação da música. Era o retorno da MIMO à sua cidade-mãe após o hiato de 2015 que voltava a encher de vida o sítio histórico, propondo outras possibilidades de vivência e de fruição da Cidade Alta, e que na ocasião apresentava ao público a nova promessa da música instrumental pernambucana: Amaro Freitas.
O jovem pianista recifense não é exatamente um neófito no cenário instrumental local. Ao contrário, Amaro, aos 25 anos, vem paulatinamente ganhando destaque e despontando como um dos mais interessantes nomes de uma nova geração de instrumentistas pernambucanos que se dedica à música improvisada. Dono de uma técnica pianística espantosa que beira as fronteiras do virtuosismo – e não do malabarismo de picadeiro, vale ressaltar –, fruto de uma sólida educação formal e de muita prática do instrumento, Amaro apresenta em sua música um sincretismo muito bem resolvido, orgânico e pessoal no qual a matriz jazzística se destaca sem, contudo, sufocar a identidade brasileira que, por sua vez, não se impõe como ornamento kitsch. Preferindo as sutilezas da seção rítmica e a comunicação telepática exigida pelo formato, fez do piano trio o veículo para suas incursões exploratórias no etéreo do som em composições autorais que vão do frevo a sessões abertas do mais abstrato improviso livre.
Com o combo formado por Jean Elton (contrabaixo) e Hugo Medeiros (bateria), apresentou-se nos (raros) espaços da cidade que acolhem a música instrumental, como o Paço do Frevo, além de circular por palcos importantes do Rio de Janeiro, chegando a tocar num dos poucos redutos desse tipo de música no Brasil, o Savassi Festival, em Belo Horizonte. O que não é pouca coisa, diga-se. Portanto, conquistar o Prêmio Artista MIMO Instrumental, ganhar a chance de se apresentar no maior festival de música da América Latina e de quebra aproveitar a ocasião para lançar Sangue Negro, seu disco de estreia, ao que parece, seria o natural passo adiante de sua promissora carreira. E foi exatamente o que aconteceu.

O concerto estava marcado para 11h. Dois ventiladores lutavam inutilmente contra um calor tão denso que oprimia. O suor que me escorria às têmporas evocava um lampejo de estoicismo neste mundo da pós-verdade e impunha não só a mim, imagino, mas a todos os presentes, encarar as coisas e os fenômenos da realidade material tal como são e se manifestam, sem subterfúgios interpretativos ou fantasias ideológicas; capacidade que as redes sociais aparentemente retiraram da humanidade. Assim, numa artimanha do acaso, o desconforto do mormaço jogava as consciências violentamente na urgência do agora e, sem querer, preparava o espírito das pessoas, com esse exercício ascético, para o fugaz evento que em breve iria suceder. Ato contínuo, no frêmito do público que lotava as cadeiras num misto de ansiedade e incômodo, a igreja se iluminava. Revelava-se o palco mais adequado para a apresentação, pois conferia à arte de organizar sons um patamar solene que resgatava o ideal romântico da música enquanto religião, única possibilidade de o homem imerso na fé no progresso da ciência e na aridez do racionalismo reencantar o mundo. Tudo estava conectado.
Na comunhão destas circunstâncias, o Amaro Freitas Trio iniciou seu concerto com o tema “Abertura”, um ligeiro 7/8 que apostava nos movimentos cromáticos descendentes do piano sobre o norte harmônico oferecido pelo ostinato do baixo e no conflito métrico das células rítmicas criadas pela bateria. Numa simplificação jornalisticamente cretina – como é toda simplificação –, eu poderia afirmar que esteticamente era como se Andrew Hill encontrasse Tom Jobim para uma jam session. No entanto, indo além da superfície dessa afirmação, o grupo evidenciava uma coesão absurda e uma tendência a se lançar para fora das cercanias do material temático, assumindo riscos a todo instante e buscando o sublime da descoberta nos eventos espontâneos da improvisação individual e coletiva, o que conferia à música muita força e substância artística. Na sequência, um acorde dissonante na região aguda do piano atiçava os ouvidos, e logo uma delicada melodia era construída mediante o jogo de espelhos do paralelismo, moldando-se a cada acorde que se apresentava num andamento lento e assimétrico (5/4) que conferia à primeira parte do tema uma intrigante arquitetura. Era “Norte”, composição de Amaro onde se escancaravam as influências do toque impressionista de Debussy e o mais pleno domínio da forma e das convenções pelos instrumentistas durante a execução. Houve ainda espaço para a engenharia polimétrica de Hugo Medeiros no tema “Música para Gaveta n.º 5”, o qual se baseava na alternância entre uma intrincada série rítmica e um território aberto nos improvisos. Contudo, o ponto alto do concerto ficou por conta de “Subindo o Morro” e da composição espontânea entabulada pelo trio no ato.
“Ninguém sobe o morro correndo”, disse Amaro ao apresentar o que ele chama de frevo balada. De fato, o sotaque e as articulações presentes na melodia de “Subindo o Morro” vinham do mais tradicional frevo de rua. Acelerando o andamento, dava até para ouvir uma orquestra imaginária subindo as ladeiras de Olinda em pleno carnaval. Porém, os voicings, a harmonia e especialmente o ambiente poco rubato que ditavam os rumos da música punham as raízes pernambucanas em contato com o distanciamento contemplativo do cool jazz. Reminiscências de Capiba e Bill Evans que conduziam o frevo a um universo abstrato e introspectivo e transfiguravam alegoricamente uma penosa subida no morro numa jornada para o autoconhecimento nos meandros da individualidade. Já na composição espontânea, foi surpreendente constatar a naturalidade com que os músicos podiam transitar de temas previamente estruturados, com sistema de regras fixos e preestabelecidos, para a pauta em branco onde a sistematização da música não era introduzida de fora pelo compositor, mas negociada pelos instrumentistas no ato da execução, nela encontrando seu fundamento2. Assim, estabelecendo o pulso, o trio atirou-se sem paraquedas no abismo do desconhecido, construindo do nada um mundo objetivo com bastante coerência e sentido interno, não obstante sua aparente fachada caótica. Nele, o ouvinte que pôs de lado suas preconcepções sobre música e se abriu ao novo pôde ver a imaginação sem limites de Amaro plasmada na profusão de melodias e contramelodias, o amor de Jean pelas quartas consecutivas e a flexibilidade rítmica de Hugo a desafiar o metro e tornar todo o chão instável. Três espíritos livres que levavam a improvisação ao paroxismo da expressividade, escancarando o poder que só a música tem de traduzir o inefável.
Terminado o concerto, restou a apoteose da merecida aclamação do público, o qual, com a alma lavada pela experiência artística, aplaudia efusivamente – e de pé! – o trio. Na minha cabeça, todavia, entre o extático e o racional, pairava a dúvida se o disco conseguiria captar toda a força e a espontaneidade da música que eu acabava de escutar. Via de regra, o formalismo das sessões de gravação e a ambiência um tanto laboratorial do estúdio acabam por inibir uma música que exige fenômenos imprevistos. E, em certa medida, isso aconteceu com Sangue Negro. Uma inflexão estética do trio nas veredas do som.
Bancado com recursos próprios e o apoio do Mingus Restaurante e do Café São Braz da Madalena, Sangue Negro traz seis composições autorais gravadas pelo combo no Estúdio Carranca. No entanto, ao contrário da experiência do palco, onde o trio privilegia os eventos espontâneos da improvisação e as explorações sonoras a partir dos temas, a produção musical de Rafael Vernet direcionou o trabalho para uma perspectiva mais convencional e palatável de música instrumental, voltada para um conceito bem definido de produto cultural que valoriza Amaro Freitas enquanto prodígio e bandleader. De tal sorte, o foco está nas questões formais da execução: na exposição minuciosa da complexa estrutura das composições, no modo como as seções de cada tema se articulam, na precisão das convenções, no andamento mais regular, pé no chão, e no esquema chorus de improvisação. O que não compromete a qualidade da música aqui registrada, é bem verdade, mas delimita claramente um horizonte estético para que o grupo não alce voos demasiado altos. Isto posto, Sangue Negro é um feito notável e um começo bastante promissor. Verdadeira pérola artística escondida em meio ao monturo de irrelevância simbólica de nossa sociedade pós-industrial que guarda, porém, todo seu brilho fulgurante para o calor do ao vivo.
Altamente recomendado!
1
JAROUCHE, Mamede Mustafá (tradutor). Livro das Mil e Uma Noites: Volume 4 – Ramo Egípcio + Aladim & Ali Babá. São Paulo: Editora Globo, 2012, pág. 153.
2 BERENDT, Joachim-Ernst e HUESMANN, Günther. O Livro do Jazz: De Nova Orleans ao Século XXI. São Paulo: Editora Perspectiva, Edições SESC, 2014, pág. 51.
Bruno, texto muito bem escrito, quase poético! Ainda não conheço o trabalho de Amaro Freitas, mas depois de ler seu comentário sobre a apresentação do Trio, fiquei ansiosa por conhecer e tenho certeza que gostaria. Parabéns pelo seu belo comentário!
Gostaria de complementar dizendo que a medida que lia o seu texto, eu me projetava nas suas palavras como se estivesse lá naquele momento, sentindo o calor alucinante da temperatura, mas em contrapartida me deleitando com a música de Amaro Freitas e Trio. Muito bom sentir isso!