Não boia a carniça na superfície do mar, em cujo fundo permanecem as pérolas? Excerto do “Livro das Mil e Uma Noites”1. 10:38. O sol perfazia sua inexorável jornada em direção ao zênite num céu do mais puro azul. Lá do alto, o astro-rei despejava implacavelmente sobre Olinda todo seu esplendor luminoso e parecia zombar da agonia daquelas risíveis criaturas que lá embaixo enfrentavam o calor de sua força no vai e vem das ladeiras. Do meu ponto de vista,…
Autor: Bruno Vitorino
Compositor, baixista e colunista do blog Variações para 4.
Brazilian Jazz. Duas palavras amalgamadas numa expressão que traduz, antes de mais nada, uma brilhante jogada de marketing da indústria fonográfica norte americana. O termo foi inventado nos Estados Unidos nos anos 1960 para, a grosso modo, rotular o encontro da bossa nova com o jazz e registra no continuum da História como a música brasileira oxigenou a produção artística de toda uma cena que, apesar de vivenciar as inovações estéticas trazidas pelos instrumentistas ligados ao New Thing, perdia o…
Kitsch. Clement Greenberg preconizava que esta pequena palavra imbuída de significados desastrosos para a sensibilidade humana se alastraria pela Cultura com o aprofundamento da sociedade de consumo de massa. De fato. O domínio do tacanho com aparência de sublime, do eterno deslocamento ante a autenticidade e o conteúdo, alimentado pela sistemática industrial da produção em série de objetos padronizados, amparado pela democratização consumista do prazer estético e potencializado pela explosão do mundo em infinitas constelações de apreensão do real, contaminou…
Há no mundo de hoje inúmeros elementos de distração. No seu enfrentamento diário da realidade, o sujeito contemporâneo encontra-se imerso num oceano de estímulos sensoriais que se justapõem proporcionando-lhe uma gama interminável de pequenos sequestros de consciência que diluem a individualidade daquele Eu uno, centrado, cartesiano em um Outro, multifacetado e eternamente disperso. O celular está sempre a alarmar uma nova mensagem de um grupo de Whatsapp; as notificações da timeline do Facebook demandam um reiterado e compulsivo passar de…
.Há quem defenda que a música é a mais difícil das manifestações artísticas. Manuel Bandeira, por exemplo, afirma categoricamente que “a técnica musical funda-se em muito mais ciência que a das outras artes.” Faz sentido. Se pararmos para olhar à distância e desnaturalizarmos a relação socialmente construída entre nós e os gêneros da arte, perceberemos que a música trabalha muito mais o abstrato do que as outras vertentes da criação artística. Afinal de contas, a pintura se realiza na imagem,…
por Bruno Vitorino. Pode parecer um reducionismo simplista retirar a música de seu altar consagrado à elevação do espírito humano e lançar-lhe um olhar mais enraizado em seu processo social. Vê-la como o fruto exclusivo do compositor que, isolado da humanidade, atormentado pelo peso do gênio e movido por uma força incontrolável, entrega ao mundo uma obra sublime para ser apreciada com um fervor religioso pelo público é uma doce ilusão que o ideal romântico de Wagner incutiu no imaginário…
por Bruno Vitorino. Uma das lendas vivas do jazz e figura central do movimento nascido em Chicago nos anos 1960 que ampliou as fronteiras sonoras (e políticas) do gênero, naquilo que ficou imortalizado como Association for the Advancement of Creative Musicians; Muhal Richard Abrams afirma que “quando você toca música com outras pessoas, forma-se um laço que nunca se quebra”. O que parece ser à primeira vista uma afirmação tanto óbvia, quando investigada mais a fundo revela um alcance assombroso.…
por Bruno Vitorino. De lados diametralmente opostos no painel da Cultura, estão a tradição e a vanguarda. A primeira foca na repetição de um arcabouço simbólico sedimentado nas práticas sociais, encontrando no passado o sentido ratificador e estruturador de toda a prática cultural do coletivo em detrimento da liberdade do indivíduo, reduzindo-o ao ente que exercita e preserva o legado ancestral que lhe fora transmitido. A tradição busca a continuidade e não a ruptura. Já a segunda propõe a quebra…
por Bruno Vitorino. A primeira audição de qualquer trabalho musical costuma ser marcada por uma espécie de mescla entre a curiosidade latente ante o ineditismo da obra e a expectativa de se reconhecer de alguma forma no emaranhando de notas, imagens sonoras, sinestesias e arcabouço de palavras (no caso específico da canção) que a composição traz de modo imanente em si. Nesse recorte temporal do processo de apreciação estética, que adquire contornos de eternidade enquanto acontece, a música vai sendo…
por Bruno Vitorino. Comunicar é compartilhar sentido. Para instrumentalizar essa condição primordial de sua existência particular e coletiva, o Homem inventou para si a linguagem. Estabelecendo os símbolos, valores e significados e definindo as regras de sua organização, formatou um sistema de representação cultural que o permitiu não apenas significar a estranha realidade que se desnudava diante de si, mas também estabelecê-lo como indivíduo inserido numa coletividade que se reconhece através desses signos. Nesse sentido, o idioma, as palavras, as…
por Bruno Vitorino. O Recife nunca foi tão frenético. Saturação, eis a palavra que melhor poderia definir a cidade nos tempos atuais. Como em todo grande centro urbano da atualidade, a capital pernambucana sucumbe às consequências da correria desenfreada dos tempos de liquidez que oprime o indivíduo contra uma muralha de esgotamento moral e físico: vias públicas infartadas, coros de sonoridades ruidosas, gente e mais gente a se esbarrar, bombardeio de estímulos sensitivos fugazes, eternos compromissos, irrevogáveis atrasos; o caos.…
por Bruno Vitorino. Vivenciamos na produção musical contemporânea um estranho fenômeno que se alastra com velocidade crescente: a substituição da obra de arte enquanto acontecimento único pelo fluxo contínuo dos estímulos sensoriais e efêmeros. Nesse sentido, testemunhamos os desdobramentos de uma indústria cultural voltada para a massificação extrema da produção artística, contornando os agora desnecessários requisitos da técnica, do talento e da experiência individual da arte, para fornecer ícones embusteiros, servidos na bandeja midiática do “novidadismo” e da transgressão estética…
A princípio, uma pauta em branco é um obstáculo quase intransponível. O silêncio altivo que emana de seus pentagramas intocados parece lançar ao compositor o desafio da transgressão do vazio. Pôr a primeira nota no papel exige de quem escreve um impulso capaz de quebrar a pausa inicial e estruturar, assim, suas urgências internas. Justamente devido a esse caráter personalíssimo da música, o compositor, ao olhar para dentro, vai buscar a centelha que desencadeia o processo da criação em duas…