O comerciante, a esposa, o pintor e sua amante Enquanto guarda os seus pincéis, o pintor observa os gestos abruptos do casal. A pose que ostentaram há pouco parece ter se perdido numa espécie de lembrança mais nebulosa do que as suas pinceladas sobre o carvalho. Tem sede. O Sr. Giovanni faz menção a um criado que acaba de entrar, solenemente, nos aposentos. Embora não tenha dito uma palavra, o pintor imagina que o comerciante conseguiu comunicar ao servo o…
Autor: Fábio Andrade
Poeta e professor do curso de Letras da UFPE.
MOENDA Os dois homens se olham, o coração dos dois acelerados. São corações irmãos, de dor e de sangue. O som ao redor é feito de um silêncio atravessado de ruídos. O velho demora um pouco a entender. Talvez sua inteligência, que sempre foi matreira e perversa, tenha se tornado mais lenta. O olhar oscila entre um e outro dos homens jovens sentados à sua frente. Mas é o preço de um instante apenas que a memória cobra; e, de…
TRÊS DIAS Era simples o hábito. Todo dia, à meia-noite, acordava, levantava-se cuidadosamente e, em silêncio, deixava a esposa dormindo no quarto. Passava pela porta entreaberta dos filhos e seguia para a pequena biblioteca contígua à sala. Conseguira esticar parte da sala e transformá-la em biblioteca na última reforma, dois anos atrás. Os livros todos finalmente ganharam mais espaço, passaram a respirar melhor, menos sujeitos a polias, traças e cupins. Deixaram definitivamente o quarto dos fundos, que já havia sido…
O MESMO NOME O menino correu para ver o que juntava aquele povo todo. Teve que se esgueirar entre corpos maiores, como é costumeiro aos pequenos mordidos de curiosidade. Havia gente pra todo lado. Nas janelas, nas portas das casas. A maioria do povo nas pontas dos pés, as cabeças como alfinetes enfiados no fato recém acontecido. Ele conseguiu após vencer a barreira de uma senhora gorda e as pernas zambetas de um homem alto. Três ou quatro o arrastaram…
DEDICATÓRIA O calor louco atravessava paredes e se jogava sobre a pele, pegajoso. Ele pensou em sondá-la sobre o que exatamente a cabeça dela martelava. E martelava. Alguns meses juntos. Não significava nada. Ou melhor, significava muito. O avô dizia que, às vezes, se conhece alguém pra vida toda em poucos dias. Pena ter ignorado isso anos atrás, pena ter ignorado muitas outras coisas anos atrás. O destino derrapou, dizia a ela, aconteceu algum desvio, quando alguém mexe nos trilhos…
UM CHAMADO Pensou que a tinham chamado. Talvez fosse a sua tia idosa, instalada no quarto dos fundos. Desde que a doença metera a velha numa cadeira de rodas, ela a solicitava constantemente. Sabia que, na maioria das vezes, não era uma real urgência que motivava seus pedidos, mas a necessidade de conversar, simplesmente ouvir e ser ouvida. Sua paciência já se esgotara. Mas o nome soou de novo. Não, não era a decrépita zia Giovana. Não vinha dos fundos…
AS MANHÃS, OS INÍCIOS Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá. Achou natural que o grande réptil se esforçasse para manter o corpo enorme e escamoso dentro do cubículo que chamava de quarto. O grande pescoço dava quase uma volta inteira no cômodo, e a grande cabeça, quase do tamanho de uma cadeira, estava pousada sobre a escrivaninha velha que sua avó tinha lhe deixado de herança. Era uma boa escrivaninha, dessas que não se fabricam mais, toda no cedro.…