A maldição do samba
Ouvindo alguns álbuns dos últimos cinco anos, passa a ser mais perceptível uma abordagem pouco usual no que se refere à estrutura musical no Brasil, à polifonia incrustada na harmonia da canção. A polifonia não é nenhuma novidade na música brasileira diante do leque rítmico que a música tradicional nos traz. O samba, símbolo mor da música nacional, começou cem por cento polifônico. Os instrumentos percussivos, os instrumentos de corda, a voz. Cada elemento figurava uma peça essencial para a sua engrenagem sincopada. Isso ainda é visível no samba do recôncavo baiano (samba-de-roda, chula, samba duro). Ouvindo a gravação do samba de Donga, João da Baiana e Pixinguinha, “Patrão Prenda Seu Gado”, gravado em 1955 por Almirante e Conjunto Velha Guarda, notamos uma forte influência do samba da Bahia. Na gravação, Almirante se dirige a Donga: “- Dá-lhe, Donga… Olha esse ponteado, Donga… Vamos ouvir a viola, Donga… Nesse ponteado gostoso”.
Donga parece tocar um violão de aço, muito parecido com a viola do samba baiano. Apesar de a gravação ser da década de 1950, podemos chegar à conclusão de que o samba carioca feito da Casa da Tia Ciata pode ter sido muito parecido com o som dessa gravação. Além da proximidade com a música baiana, o violão de Donga se assemelha aos violões da música africana dos anos 1950, pela maneira com que corta o ritmo e suspende a música em poucos acordes com pedais no quinto grau da tônica. Donga se mantém basicamente na tônica (dó maior) e seu quarto grau (fá maior). Já pude testemunhar essa música sendo executada em diversas rodas de sambas, e em todos os casos essa canção foi tocada como partido alto e utilizava outra cadência harmônica: segundo grau (ré menor), quinto grau (sol maior) e tônica (dó maior). Comparando as duas maneiras distintas de cadência harmônica, podemos supor que algo mudou no samba a partir de sua popularização pela rádio na primeira metade do século XX.
Talvez por imposição do mercado, o samba adequou a sua estrutura harmônica aos modelos europeus que a rádio valorizava. A gravação de 1928 de “A Malandragem”, samba de Alcibíades Barcellos, o Bide, cantada por Francisco Alves, traz a cadência harmônica que se convencionou chamar de II – V – I (sobretônica, dominante e tônica) e utiliza a sequência IV – III – VI – II – V – I para se resolver, modelo que se repetiu em inúmeros sambas e se repete até hoje. Embora esses sambas de rádio do início do século XX contassem com orquestras, a banda base (a regional), seguia modelos de cadência harmônica mais adequadas à música europeia, e instrumentos como violão e cavaquinho seguiam juntos a mesma harmonia; a polifonia das cordas se resumiu nesse caso nas marcações sincopadas do cavaquinho tocando acordes e nos bordões cheios de semicolcheias nas cordas graves do violão.
Casos isolados como Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro fizeram a seu modo abordagens polifônicas mais imprevisíveis com os seus instrumentos. Ambos vieram de um universo musical contrário aos vícios das rádios cariocas. Caymmi baseado no samba de roda baiano, Gonzaga nas frases e bordões de sua sanfona e Jackson na maneira com que dividia as células rítmicas ao cantar. Os três artistas ao chegarem ao Rio de Janeiro tiveram que adequar a sua música aos modelos radiofônicos. Caymmi começa a cantar com arranjos orquestrados acariocados, Gonzaga grava uma série de choros e Jackson passa a inúmeras vezes ser acompanhado por regionais de samba e choro. O mesmo já havia ocorrido anos antes com o embolador Manezinho Araújo, que foi obrigado a trocar a síncope do coco pela marcação do choro. Notamos tanto nesses casos dos três artistas como no próprio desenvolvimento do samba carioca, que a rádio e o mercado determinaram caminhos estéticos para a música brasileira a partir de modelos que adequavam os artistas às tendências.
A partir da década de 1950, a música brasileira incorporou a obsessão pela harmonia. Convencionou-se a direcionar qualquer possibilidade de modernidade ou evolução exclusivamente à harmonia. A busca por refinamento, sofisticação e complexidade dos acordes acabaram levando as melodias para outros caminhos também, muito por influência do jazz. De Garoto a João Gilberto, os acordes deram novas direções, paralelas ao Brasil pós-industrial.
De certa maneira, a Bossa Nova é uma quebra com os modelos brasileiros da rádio dos anos 1950, apesar de suas dissonâncias, também pode ser encarada como adaptação a modelos norte-americanos como o cool jazz unido à necessidade de juntar a música brasileira à ideia de modernidade, do Brasil que deixa de ser matéria-prima para ser também um arrojado produto de ponta. E justamente esse corpo, que começa estranho no fim dos anos 1950 aos brasileiros, acaba determinando esteticamente quase que por completo o que viria a ser chamado de MPB.
Polifonia nos anos 1960/70/80
A Tropicália no seu flerte com o rock (via Mutantes) e a música erudita contemporânea (via Duprat) se desprendeu desse modelo à época. Mas apesar da revolução estética, os tropicalistas mexeram muito pouco na forma. A harmonia, as células rítmicas ainda estavam presas ora à Bossa Nova, Jovem Guarda ou à cultura pop internacional.
Nos anos 70, poucos casos isolados se opuseram ao pensamento mais comum da forma musical. Com os discos Todos os Olhos (1973) e Estudando o Samba (1976), Tom Zé, muito influenciado pela música erudita contemporânea e pelo pensamento de estudo e aprofundamento da estrutura do samba, desenvolve uma espécie de desmonte e reconstrução do gênero. Ele passa a incorporar de maneira radical melodias em contraponto no lugar da harmonia vigente da MPB e retorna de certa maneira à polifonia do samba baiano de Irará e adjacências.
Walter Franco em canções como “Eternamente” e “Bumbo do Mundo” – ambas do disco Revolver (1975) – experimenta a substituição de harmonia ou riffs convencionais por estranhas melodias em paralelos; as estruturas musicais propostas por Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé nos final dos anos 70 se assemelham muito com essas duas canções de Walter. Na canção “Muito tudo”, Walter faz com que a melodia siga fielmente os riffs assimétricos; parece uma ideia simples, mas pouca gente utiliza esse recurso.
Gilberto Gil nos discos Expresso 2222 (1972), Refazenda (1975) e Refavela (1977) une a sofisticação harmônica à polifonia africana. Na canção “Expresso 2222”, flerta com a viola polifônica ancestral do samba baiano e acaba traduzindo para as cordas algumas células percussivas. Em “Refavela”, se utiliza de acordes parados com cordas ora soltas, ora digitadas para criar melodias enigmáticas. Na canção “Essa é pra tocar no rádio”, trabalha com um estranho riff repetido e canta em paralelo. Não por acaso, outros discos tocados por músicos baianos também flertaram com arranjos mais polifônicos, muito influenciados pelo rock psicodélico progressivo dos anos 70, como é o caso do primeiro disco de Moraes Moreira (Moraes Moreira, 1975) ou a versão de Maria Bethânia para “Volta Por Cima”, de Paulo Vanzolini no disco Drama (1972). Esses artistas acabaram promovendo o reencontro da canção brasileira com a polifonia via Bahia, assim como fez o Conjunto Velha Guarda em 1955. Esse retorno necessário à polifonia baiana acontece também nos tempos atuais, via Letieres Leite e Baiana System. A Bahia é polifônica por natureza.
Influenciado por Dorival Caymmi e expressões culturais baianas como candomblé, samba e capoeira, o violão de Baden Powell também propôs outras maneiras de trabalhar em vários momentos, um deles está escancarado no samba instrumental “Candomblé” (do disco À Vontade, de 1963). Baden experimenta a polifonia dos tambores Le, Rumpi e Rum (os três tambores do candomblé) nas cordas. Os bordões das cordas graves sugerem uma nova abordagem, as cordas mi (afinada em ré), lá e ré definem a melodia ao invés de simplesmente marcar o baixo. No decorrer da música, joga as melodias para as cordas mais agudas e os baixos assumem marcações sincopadas pouco usuais. Tudo isso mantido no mesmo acorde, ré menor. Essa estrutura se intensificou nos discos que Baden gravou no exterior e apareceu em músicas como “Pai” (do disco Lotus, 1970).
João Bosco aparece também como uma nova possibilidade para o violão. Influenciado por Caymmi e Baden, se aprofunda em detalhes rítmicos que promovem uma interseção entre violão e voz, desde seus primeiros trabalhos e radicalizados depois em músicas com “Gagabirô” (de Gagabirô, 1984).
Nos anos 80, Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção trabalharam cada qual à sua maneira a polifonia em suas canções. Arrigo se influenciou pela música erudita, dodecafônica, serial e atonal misturada ao rock, às histórias em quadrinhos e música popular. Itamar, influenciado pelo batuque-de-umbigada de sua cidade natal, Tietê (SP) e pelo próprio amigo Arrigo e seu irmão Paulo Barnabé, aplicou a polifonia à canção de maneira um pouco mais popular. Itamar inventou uma maneira muito particular de mesclar o samba, reggae, funk, rock, jovem guarda e atonalismo.
Polifonia contemporânea
Em 2009, ouvi o disco de Alessandra Leão, Brinquedo de Tambor (2006). Fiquei intrigado com as violas do disco, elas pareciam me tirar do lugar confortável. A pessoa por trás desses arranjos era Rodrigo Caçapa, que havia escrito para todos os instrumentos de cordas. Caçapa se apaixonou pelo contraponto no curso de música, descobriu em Tom Zé e Bach horizontes para novas possibilidades e se deslumbrou com o universo da música africana. Depois do segundo álbum de Alessandra (Dois Cordões, 2009), com arranjos escritos para guitarras, Caçapa lançou o seu primeiro trabalho Elefantes na Rua Nova (2011), todo feito com percussão, violas e baixolão. Tanto o trabalho de Alessandra quanto o de Caçapa se influenciava pela cultura tradicional; ambos acharam um fio condutor que trafegava por todas essas influências, das festas, do brinquedo aliados à musica pop africana e sua polifonia.
Em seus dois últimos discos, Avante (2012) e De Baile Solto (2015), Siba também têm se embrenhado no universo da polifonia. Fã incondicional da música pop africana, especificamente do período elétrico dos anos 60 e 70, uniu a sua bagagem de vivências com a música da Mata Norte com influências como o guitarrista congolês Franco. Ao se aprofundar na música tradicional e levá-la para os instrumentos elétricos, Siba revive de certa maneira o período de eletrificação da música africana e passa por um processo de decodificação do DNA da música pernambucana.
Oriundo do universo da guitarra paraense, Felipe Cordeiro traz atualmente a síntese da música amazônica em sua mescla de lambada, guitarrada, brega e música vinda das aparelhagens. Influenciado por seu pai, o guitarrista e produtor Manuel Cordeiro, Felipe passa, a partir do disco Kitsch Pop Cult (2012), a assumir a diversidade da música paraense. Ao reelaborar de uma maneira pop a música amazônica, busca paralelo com outras influências latinas como a cumbia colombiana e a chicha peruana, além da música africana. Em seus shows, Felipe e Manoel tocando juntos exibem um dos panoramas mais interessantes da guitarra brasileira, com frases paralelas carregadas de ritmos dançantes. Felipe também é muito influenciado pelo guitarrista Pio Lobato, que nos anos 90 se aprofundou nas guitarras paraenses e assim como Felipe, também as levou a novas possibilidades estéticas, sempre dialogando com o mundo contemporâneo e o pop como fez no álbum Tecnoguitarradas (2007).
Da polifonia à cacofonia
Desde a época em que eu tocava no bando Afromacarrônico, buscava tirar algum som diferente do violão. Em 2005 o violão parecia um instrumento morto, engessado, todo mundo tocava mais ou menos da mesma maneira. A partir das minhas limitações técnicas, comecei a inventar o meu jeito de tocar, mais baseado em frases de baixo e no ritmo, um jeito mais percussivo de tocar. Comecei a montar células que se sustentavam e seguiam mais um caminho modal ao invés de tortuosos caminhos harmônicos. Minha insatisfação com o samba e com a MPB era imensa, queria fugir das regras desses gêneros. A MPB parecia esgotada. Encontrei depois Thiago França e ele carregava também essa insatisfação. Quando montamos o Metá Metá com a Juçara Marçal queríamos (talvez de forma inconsciente) desconstruir os nossos instrumentos, o violão, o sax e a voz. Foi o que fizemos.
Encontramos Rodrigo Campos, Romulo Fróes e Marcelo Cabral com as mesmas crises perante a MPB e o samba. Em nenhum momento tramamos em fazer música polifônica, apenas tocamos e o processo espontâneo foi nos mostrando esse caminho. No caso do Passo Torto, a polifonia chegou de maneira mais radical. Fazíamos as músicas com acordes convencionais de MPB, como se fosse um samba e depois começávamos a desconstruir essa harmonia e a substituíamos por frases melódicas com forte acento rítmico. No nosso segundo álbum Passo Elétrico (2013), decidimos desconstruir ainda mais as canções, deixando que as frases causassem um efeito mais vertiginoso.
A partir do Passo Torto, Rodrigo e eu começamos a desenvolver um diálogo de guitarras que era resultado de diversos caminhos e influências. Eu estava voltando a tocar guitarra depois de um intervalo de 10 anos. Havia abandonado a guitarra com o esgotamento musical da cena punk de São Paulo dos anos 90. Passei um tempo aprendendo a tocar violão, me aprofundando no samba, participando de rodas. Rodrigo estava começando a tocar guitarra; o universo dos diversos timbres impulsionados pelos pedais de efeitos abriram para ele um leque de possibilidades musicais que o violão e o cavaquinho não conseguiam alcançar. Ao se tornar íntimo da guitarra, converteu o cavaquinho em instrumento elétrico, de timbre metálico e cortante. Além dos discos do Passo Torto, mostramos esse diálogo de guitarras, que Romulo Fróes chama de “guitarras siamesas”, em discos como Encarnado (2014), de Juçara Marçal, Mulher do Fim do Mundo (2015), de Elza Soares e de maneira mais radical no terceiro disco do Passo Torto (Thiago França, 2015).
A polifonia de São Paulo é cacofônica, desde Tom Zé a Arrigo, passando pelo Passo Torto. Talvez isso seja influência da própria cidade que não goza de uma paisagem privilegiada, reproduzimos de certa maneira os sons da rua, buzinas, gritos, pregões, sirenes, construções de prédios. Em São Paulo, o samba que deu errado, deu certo, como é o caso de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. Nos falta beleza e nos sobra defeitos e, consequentemente, temos que achar nesses defeitos a nossa beleza.
Publicado originalmente na revista Outros Críticos #10 – versão da revista on-line | versão da revista impressa
Imagem de capa do site: Camila van der Linden
Interessantísima essa análise, carregada de história e momentos de transição de nossa música. Uma das partes que me chamou atenção foi quanto tu tocou na questão da “decodificacão de DNA da musica pernambucana”, exemplificada com Siba. Sou de pernambuco e muito se vê por aqui, muitas tentativas de se seguir uma nova linha, um novo momento musical. Alguns pontuais festivais têm pensado dessa forma e alguma visibilidade é dada a esse pessoal, mas pesa nos ouvidos a “musica mercadológica”, que é o que o povo supostamente gosta e quer escutar. Na minha limitada visão, isso estimula a repetição, uma espécie de inércia criativa, das possibilidades de se fazer boa música, de estudar, pensar e trabalhar dentro das possibilidades da música. Adoraria ler uma análise dentro dessa questão, não pra julgar ou acusar, mas pra refletir, analisar as questões que originam esse fenômeno!
Por fim, falando de momentos da nossa música, aproveito pra recomendar um lindo disco, que discretamente abriu novas portas aqui em Pernambuco, do trio Saracotia, disco homônimo, de 2011.
Valeu, um abraço!
Ótima análise,merece ser relida várias vezes.
Bom.
Nossa que aula sobre música foi essa, muito bom seu post! muito legal mesmo.