
por Germano Rabello.
A cidade é muito mais do que um espaço físico. É uma concentração de zilhões de pessoas formando uma personalidade própria, sua cultura. Os grandes centros urbanos ditam as regras da cultura pop, e torna-se obsoleta a ideia de que a cultura deva emanar de um único ponto, de uma única fonte. Muitas vezes, quanto mais o artista está afastado dos centros, maior a sua disposição e originalidade.
Se a gente pensar na movimentação de Seattle e Recife durante os anos 90, vamos ver alguma coisa em comum. Era como visitar uma ilha que tivesse passado dez mil anos isolada e descobrisse, de repente, espécies peculiares da fauna, que se tornaram originais devido a esse isolamento biológico. Ambas as cidades passaram por um período de ostracismo, longe dos holofotes, mas sem jamais deixar de produzir música. As duas cenas representaram novos pensamentos, novos comportamentos, novos panteões de influências. Tipo, “se ninguém está nos olhando, vamos fazer do nosso jeito”. Certa liberdade causada, paradoxalmente, pelas limitações, se reverte em originalidade, na fuga dos parâmetros estabelecidos. Premeditado ou não, com manifesto ou não.
Isso é mais provável de acontecer em lugares distantes. Em Londres, se você der um espirro, algum jornalista te chama de genial e diz que você é “the next big thing”. Não há tempo de amadurecer. Essa procura pela “grande banda” é como numa daquelas escavações gigantescas: é 1% minério, e os outros 99% uma cratera aberta sem necessidade, um vazio. (Abaixo, linha do tempo comparando as cenas musicais de Pernambuco e Seattle).
Recife teve um passado fascinante desde sempre, em várias áreas culturais. Mas nos anos 80, a cidade parecia ofuscada, houve uma geração inteira que teve sérias dificuldades de gravar, inclusive pela extinção da fábrica de discos Rozenblit, na década de 80, após ter sofrido duas enchentes, além da forte concorrência com gravadoras multinacionais. Claro, havia os nomes já consagrados dos anos 70, como Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Sintomático que nosso maior fenômeno de sucesso oitentista tenha sido Michael Sullivan, genial compositor de babas radiofônicas da dupla Sullivan & Massadas. Mas Lenine, um dos novos talentos da época, fez Baque Solto com Lula Queiroga, em 1983, e só lançou Olho de Peixe dez anos depois. Paralelamente, os músicos iam tocando seus projetos, ensaiando. As coisas demoravam a acontecer.
Em certo momento, as coisas começam a mudar, e isso não acontece de graça. É o trabalho dos artistas mais uma mudança no comportamento do público, e em algum momento surge respaldo dos jornais locais, depois nacionais. É um trabalho de persistência. Mas precisava ser tão difícil? Não, não precisava. Seria lindo se todos trabalhassem a favor ou se houvessem políticas e mentalidades mais avançadas. Mas agora isso parece ainda utópico.
O “santo de casa” não faz milagre. Ainda precisamos de um olhar estrangeiro para nos reafirmar o óbvio, que temos talento. Isso aconteceu na época do Mangue, quando se atraiu a atenção da MTV para as primeiras edições do Abril pro Rock, ou quando as bandas assinaram com gravadoras multinacionais. Aconteceu em Seattle quando o primeiro jornalista britânico da NME fisgou a isca do marketing da Sub Pop. Hoje existem novas formas de validação, mas a estratégia do olhar estrangeiro ainda é importante. A foto no jornal ainda dá prestígio, conta para o currículo, ao enviar projeto para o Funcultura. Sistema de incentivo é o novo contrato de gravadora.

Conquistar o público à moda antiga, com shows, ainda não é fácil, no Recife. Poucas portas se abrem. Já tivemos um bar como a Soparia para fomentar a porra-louquice da cidade. New York teve o CBGB, Manchester teve o Hacienda. Não precisa ser muito, mas ajuda a criar o hábito.
Faltam peças para funcionar bem o mecanismo, mas é importante notar que existem várias cenas, milhares de universos na mesma cidade, e que se pode aprender com eles e juntar forças. A gente pode citar um mercado brega que produz constantemente novos hits e ídolos para o povão. Existe o forró, o samba, uma cena de música erudita, de orquestras de frevo, de bandas cover, de coquistas, de repentistas etc. Existe tanta música diferente sendo produzida em Pernambuco hoje. Talvez seja a hora de ir além e repensar a cena dentro das outras cenas.
Publicado originalmente na 1ª edição da revista Outros Críticos.
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