Era o interior friorento de São Paulo, durante o mestrado, e eu costumava desenhar lugares da cidade. Utilizava papéis avulsos, em geral. Esbocei o terminal rodoviário, esperando um ônibus para casa, perto da meia-noite; um semáforo no meio-fio, domigo à tarde, sentado na calçada de uma floricultura fechada; um orelhão na calçada; uma velha adiposa de mini-saia num shopping center observando uma vitrine fechada, com bijuteria esotérica nas prateleiras, destinada a consolar, espiritualmente, o público alvo das meio-idosas na menopausa, deficitárias em fé cristã. Havia o esboço de uma alameda do bairro, margeada por um centro hospitalar, cercado por uma rede, bufonescamente, sob as janelas, para desacelerar a queda de médicos, internos e estagiários. Bosques, um posto de gasolina; coisas do tipo. É uma atividade plenamente satisfatória, substituindo uma vida amorosa, ou solitária, conquanto penhe em desafios, como a dos indie folkers não-caucasianos, clubbers agoráfobos, psicopedagogas sexualmente ativas, feministas ovulantes e tv hosts intuicionistas browerianos. Insto-o, enfaticamente, a experimentar por si, leitor divorciado.
Os traços eram quadrinescos; simplistas. Talvez o estilo me interessasse – conjeturo, agora que alguns anos transcorreram, implacáveis, somando, ao todo, um ou dois dias ordinários da vida de alguém – porque as linhas elementares e iconográficas nos comic books representem o mundo mais ordenado e, ipso facto, mais acolhedor; como o abraço de um ex-colega de trabalho, quando jazemos numa cama de hospital, contemplando a marcha da velhice, ou o gracejo paternal de um urólogo. Nesse sentido, e tal como os álbuns de fotografia, graphic novels são um rolé fundamentalmente mórbido: pois que não ensejam reagir, futilmente, ao devir; ao consumir-se das coisas, para ourivesá-las num presente imóvel – aquele da imagem? De modo ostensivo, não é esta a ambição mais resfolegante da arte: talhar; incrustar, no diamante inconstante do tempo, uma chuva imóvel?
Claro; só uma espécie obsedada com morte e degeneração poderia produzir beleza; por mera auto-negação. Os anjos tocam musak e escrevem guias de turismo. Falta-lhes a motivação candente e imperiosa; o desconforto do macaco senciente, corrupto. Falta-lhes, enfim, um cu na extremidade dos intestinos.
Havia, eu dizia, uma qualidade distinta, reconfortante no estilo quadrinesco, como a suspensão estática nos cenários de Edward Hopper, que me impelia a transpor para tal registro fragmentos desoladores da cidade. Diversamente, para a maioria (estimo), é o minimalismo que condena à vulgaridade a “nona arte”. Seria a isto que se referia Chris Ware, ao imputá-la como rasteira, a mídia quadrinística? Com efeito, imagens esmeradas demais represam o fluxo da narrativa. Em “Marvels” de Alex Ross, por instância, vemos não uma graphic novel, senão uma galeria de imagens super-trabalhadas, retratando fisioculturistas de cueca, consoante à tradição homoerótica, glandular dos gibis para adolescetes celibatários, hoje assimilada por Hollywood, conforme reclama o triste, seboso zeitgeist dos 00 e 10. Em contraponto, o minimalismo congenial inclina o comic book à caricatura; quanto o atesta a eterna popularidade dos cartuns. Mas não é, justamente, a simplicidade ockhamiana, e assim a elegância, a gramática universal da arte? A um turno, sua alma e o seu corpo?
Similarmente, anseiam os machos que o corpo da fêmea desenhe, e renda tangível, o simples, o suave, o ordenado; em última instância, ausentes na textura e estrutura assimétricas da vida e, em particular, na aridez masculina. Somos consumidores insaciáveis da ficção da ordem, o bem em torno do qual orbitam os sistemas econômicos, as angústias e as picas. Tornando ao berço de seios femininos, protegem-se, os pobres chimpanzés, da verdade e do devir; da indiferença das leis do mundo à presença do homem – um arranjo dispensável, em quanto os concerne. De modo análogo, e leva após leva, penduram-se às tetas briosas da arte; leitões famintos por estética. Quando estofados os estômagos; a febre reduzida aos 37 graus; quando, enfim, a atrocidade cessa de nos entreter, o mundo se torna banal, e algo deve rendê-lo habitável.
Há mais darwinistas em Beberibe que comics artisticamente relevantes no mundo, é notório; de resto, ainda é um formato menos viciado e autoconsciente, quando não usado para escoamento do subconsciente testicular da puberdade (Alan Moore continua meio chibata). Me interessa mais que cinema, embora não tanto pelo ineditismo de possibilidades expressivas: polarmente distante do internalismo da literatura, que nega o mundo, o cinema é sensualista e passivo; não escapa fácil ao realismo; o comic book, meio literário e meio cinematográfico, guarda genes dos dois mundos. É um formato um melancólico, afinal; pense em todos esses gibis esperançosos de super-heróis durante a guerra. Redesenhar a vida é um propósito meio deprimente. E é isso, meu rei.
por Daniel Liberalino.
Imagem de capa: “Angel” in: Marvels, de Alex Ross. Imagem interna: Nighthawks, de Edward Hopper.
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