O corpo.
A familiaridade da expressão é tão palpável quanto o incômodo que sempre aparece quando me deparo com ela. Quer soar sólida, concreta, transparente. Mas me parece inadequada, enganosa e equivocada para além de qualquer solução possível.
Talvez eu esteja falando dos limites da própria linguagem. Talvez me incomodasse menos se não fosse algo tão básico. Toda vez que sai da minha boca, sinto a culpa de dizer uma mentira.
O corpo, assim único, existe apenas como instrumento de poder e opressão. O corpo, assim no singular, apaga diferenças, transformações e idiossincrasias. O corpo quer ser universal, mas sua natureza é ideológica. O corpo é normalizador e normativo. O corpo exclui uma quantidade e variedade enorme de existências. O corpo marca estas exclusões com violência.
O corpo não tem sexo nem gênero. O corpo não tem cor nem raça. O corpo não tem orientação sexual. O corpo não tem nacionalidade nem fala um idioma. O corpo não tem família nem ancestralidade. No entanto, cada uma destas marcas pode definir, sozinha ou em diferentes combinações, a permissão de viver ou a sentença de morte; a possibilidade de expressão ou a imposição do silenciamento; a atenção e o cuidado ou a invisibilidade forçada. O corpo é feito de hipocrisia.
Meu corpo.
Como se fosse algo separado. Mas separado de quê? O que sobra sem o corpo? A pergunta é antiga e permanece tão atual quanto o uso desta expressão.
Anos atrás, conduzo uma oficina de improvisação com movimento. Duas participantes me dizem que eu preciso prestar atenção ao fato de que elas “não trabalham com o corpo”. Imagino que a mensagem deva ser algo como “não somos artistas profissionais nem temos experiência com práticas de dança”. Presto muita atenção às palavras que escolhem para
dizer o que dizem. Como será que fazem para trabalhar? Deixam o corpo em casa, pendurado num cabide?
O corpo, batizado pelo latim. Monte de matéria que mereceu um nome. Massa individualizada. O corpo é coisa. O corpo concreto como uma pedra. O corpo, cria da
filosofia europeia. O corpo abstrato demais. O corpo platônico demais. O corpo não é
pessoa. O corpo não aprende nunca.
O corpo vive nos atlas de anatomia. O corpo vive nos manuais de desenho. O corpo vive na televisão e no cinema. O corpo vive nos palcos. O corpo vive nos desfiles de moda. O corpo vive nas fotos publicitárias. O corpo vive nos canais do youtube.
O corpo não é qualquer corpo.
O corpo tem muito a ver com dinheiro.
O corpo vende todo tipo de coisa. O corpo também é mercadoria. O corpo escravizado. Quem possui? Quem é posse?
Continuar perguntando me parece mais importante que chegar a respostas. Não busco outro termo, outro conceito, outra expressão que substitua o corpo. Trocar o nome não resolve a questão, mas trocar a questão talvez subverta o nome.
Questionar o corpo é resistir à colonização da linguagem e de tudo o que a linguagem reflete e revela sobre nós, pessoas humanas. Recusar o corpo como única maneira de traduzir o que sou na linguagem é uma forma de rebelião.
Expor a falsa universalidade do corpo mostrando tudo o que ele exclui. Enfiar no corpo todas as possibilidades, diferenças, transformações, idiossincrasias. Meter tudo lá dentro até que o corpo exploda em infinitos sentidos e significados.
Muitas pessoas, personas, máscaras. É sedutora essa ideia de que posso me reinventar por escolha. Também é verdadeira e trabalhosa: custa a vida.
Muitas encarnações, tribos, línguas, leis. Ser várias coisas de uma só vez e estar em muitos lugares ao mesmo tempo é estratégia de sobrevivência.
Muitas partes, facetas, direções. Totalidade incerta. Certezas fluidas. Formas dinâmicas. Desejo de respeitar minha natureza múltipla e impermanente.
Muitas portas, passagens, túneis. Aberturas para ser sem saber. Desconhecidamente, em múltiplas versões. Todas já desatualizadas e sempre renovadas.
Não caber.
Sair dos bueiros, dos guetos, das bolhas. Romper identidades e rótulos, amarras e bloqueios. Abrir brechas, frestas, frinchas. Forçar fechaduras, quebrar cadeados, entrar pelas janelas. Derramar, invadir, chover, brotar.
Abrir mão de conclusões duráveis para continuar em movimento. Continuar em movimento como estratégia para escapar aos sistemas de controle e vigilância. Quando me nomeiam e classificam, já não estou ali.
Dançar. Dançar o tempo, o tempo todo. Dança de guerrilha.
Mudança, sinônimo de morte. O corpo morre porque não dança.
Arte: Laíza Ferreira @laihza
Publicado originalmente na ed.13 da revista Outros Críticos.
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