Conversas com Toshiro, Rodrigo Campos

a escrita de rodrigo campos sobre suas próprias canções alarga a experiência da escuta e compreensão da obra para espaços que frequentemente são mais nebulosos ou mesmo íntimos, reclusos no lugar em que habita o processo de criação do artista, ou mesmo dos outros músicos que dialogam com ele. esse movimento reflexivo desdobra numa outra linguagem (a escrita) o ímpeto pela criação. lugares-comuns são quebrados por essa ação. sim, criação e crítica podem andar juntas. a crítica do artista não quer “avaliar” a obra, “qualificá-la”, “julgá-la”, mas abrir outras vias para a leitura. o crítico pode colocar-se em diálogo com o artista, já que entre-eles, entrecríticas, não há hierarquias. o texto do crítico pode desenvolver narrativas e também desdobrar a obra em várias outras criações. o texto reflexivo, ele próprio, pode se abrir a ser uma dessas outras criações. com esses movimentos, cada vez mais comuns, a crítica pode abrir fissuras cada vez mais largas para  que uma escrita reflexiva sem dedos em riste possa se atravessar entre-lugares. (c.g.)

 

“Escrevi essa música e todas as outras do meu terceiro disco, como tentativa de metaforizar o inconsciente, tentando desenhar através dessas canções uma mitologia, espécie de “Olimpo oriental inconsciente”, onde os personagens pudessem transitar, amorais, personificando nossas loucuras, nosso esquecimento, nossa inquietação existencial. São questões importantes pra mim, pois acho que definem nossa capacidade de viver a vida, simplesmente: o quanto da loucura expressamos, o quanto da loucura recalcamos. É o primitivo que nos habita dizendo onde estão os limites do humano, da existência. Pois bem, Katsumi emerge desse “Olimpo do inconsciente” como expressão inexorável da sedução, característica humana (muitas vezes inconsciente) mais atribuída historicamente à mulher. Katsumi é dona de si, não é vítima, é inviolável. Katsumi inspira desejo, mas também inspira respeito, talvez até medo. Outro dado importante nessa pretensa busca por uma “mitologia do inconsciente” são as matérias-primas vindas do Japão, lugar escolhido pra ambientar a metáfora, onde os mangás eróticos criam também seu próprio imaginário, reconhecível, absoluto, e que servem também de alicerce na construção da personagem: os mangás, como as mitologias, também possuem amoralidade, e flertam também com o primitivo, deflagrando assim a geografia final de Katsumi. Dito isso, aí vai meu poema erótico sobre umas das entidades do inconsciente dessa história.”

 

““Wong Kar-Wai” tem seu lugar na mencionada busca por uma “mitologia do inconsciente” como representação do sonho. Com uma sobreposição de símbolos, formando algo como uma espiral, a letra anseia tragar o ouvinte cada vez mais fundo, como num sono de vários estágios. O sentido parece se anunciar à medida que seguimos a espiral, mas o que acontece, de fato, é que a espiral só traz mais falta de sentido, revela-se, na verdade, um labirinto. É a sensação angustiante de quase tocar o sentido das coisas. A canção faz alusão ao nonsense não só pela sobreposição de signos, mas também pela repetição incansável do nome do cineasta chinês (Wong Kar-Wai), que começa carregado de significado e vai se esvaziando a cada nova repetição, se transfigurando quase numa onomatopeia. Sobre a estranha árvore genealógica traçada, que é, realmente, toda a letra, e que coloca Wong Kar-Wai, cineasta chinês, contemporâneo, como “filho do pai de Jonas”, aquele da história bíblica: já seria um grande problema cronológico apenas juntar esses dois nomes e atribuir a eles qualquer parentesco, não obstante, temos uma quebra ainda maior na cronologia com a referência indireta do parentesco. Ao invés de simplesmente dizer “irmão de Jonas”, Wong Kar-Wai era, na história, “filho do pai de Jonas”, acrescentando mais vertigem. Por fim, sedimentando o último tijolo do suposto labirinto, por onde poderia entrar o derradeiro facho de luz, temos um “Jonas antes da baleia”, e não apenas o Jonas da famosa história bíblica. Trata-se de um Jonas anterior. Que Jonas seria esse? Ninguém pode dizer. E como ser irmão apenas antes da baleia e não depois também? Anula-se assim qualquer possibilidade de compreensão. Mas não a ilusão de que o entendimento está perto. Muito perto.”

 

“Pra falar um pouquinho sobre “Abraço de Ozu”, é preciso, antes, relacioná-la a outras três canções de Conversas com Toshiro; “Toshiro Vingança”, “Toshiro Reverso” e “Chihiro”. Essas canções se encontram em outro ambiente do disco, mas também dialogam com a ideia de inconsciente. Elas fazem referência à ficção científica, um dos gêneros mais existencialistas da literatura e do cinema. Nessas canções o inconsciente se transforma em espaço sideral, terreno tão misterioso e desconhecido como o próprio inconsciente. Inaugura-se assim uma espécie de jornada em que os personagens seguem um caminho em busca de algo. “Toshiro Vingança” abre a sequência da jornada quando Toshiro é violentado por um “bicho-mulher-aranha” e segue para o trabalho com alguns efeitos colaterais do abuso, como o “olhar espantando os homens” e a “lembrança apagando a alma”. Vejo essa violência contra Toshiro como algo interno, a cena serve, na realidade, pra ilustrar, como diz Albert Camus (O Mito de Sísifo), o divórcio entre o indivíduo e sua própria vida. É o encontro com o “Absurdo”, de onde Toshiro é lançado aos recônditos do inconsciente (espaço sideral), para se reconectar, ou não, com o sentido da vida. Vale dizer que a sequência dessa “jornada” difere da ordem do disco, onde foram considerados também aspectos musicais, além, e às vezes acima, dos conceituais. Na canção seguinte, “Toshiro Reverso”, é anunciada a morte de Toshiro, que não é explicitada em “Toshiro Vingança”. Essa morte também pode ser interpretada como um estado de coma: Toshiro “foi alçado com violência à origem do universo”, pois “uma nebulosa engoliu Toshiro ontem”. Novamente a analogia com o inconsciente pode ser feita; sua morte ou estado de coma são como o retorno a algum lugar na origem, no inconsciente ou na não-existência, onde nebulosas expelem gases formando novos planetas. Seguindo com “Chihiro”, a personagem rompe com a epopeia de Toshiro e reivindica seu protagonismo. Chihiro já estava lá antes de Toshiro, conhece melhor do que ele a escuridão e a falta de sentido. Já navegou parte do universo, sabe que a luz não é fácil e é preciso ir mais fundo: “Estrela ali não vai brilhar/ Chihiro tem que procurar/ O céu perfeito, numa afronta/ Reverso do universo, a ponta”. Em “Abraço de Ozu”, a canção pretendida desde o começo, há a questão da esperança, que mesmo para o mais íntimo consigo próprio existe a possibilidade do deslize. É onde a falta de sentido mais nos desampara: a esperança de que haja, finalmente, um sentido. O abraço de Ozu não é o abraço da esperança, é o abraço da escuridão.”

 

“‘Paisagem na Neblina’ versa ainda sobre o inconsciente, como todo o álbum Conversas com Toshiro. O próprio título é outra imagem pra pensar o inconsciente: algo que quase se vê na penumbra, ou melhor, algo que não se tem certeza de querer ver. A neblina, ali, torna-se a obstrução criada pelo próprio observador, que pesca a silhueta de uma “menina de maiô” numa “estrada preta”. Mas esse observador não quer mesmo acessar a cena na íntegra. Ele remonta alguns detalhes, talvez tenha até chegado à verdade dos fatos, mas coloca ali essa espessa camada branca como defesa. O que sabemos sobre a história é o que o inconsciente ardiloso do observador nos mostra, pois é o que mostra ao próprio observador. Enquanto a intuição de que se trata de uma revelação trágica oculta a paisagem, temos insinuações eróticas, como a “bundinha rosa” e o “umbigo nu” da mesma menina, que teve o maiô “rasgadinho” exatamente por onde se entrevê seu umbigo. Também lidamos com “três ou quatro estrelas derradeiras” que sobrevoam o nariz da protagonista, rompendo, consequentemente, com os limites da narrativa, do real pro fantasioso – outro ardil do inconsciente.Teríamos elementos pra construir o enredo todo, mesmo com a sabotagem do inconsciente, mas também não teríamos a ousadia, tanto quanto o narrador/observador. Seria acessar nosso próprio inconsciente, evocar nossos próprios “bichos do além”. Permanecemos na noite, aquela que voltou, mas que nunca se foi completamente. Mantendo assim a paisagem na neblina, agora sabendo a razão da neblina.”

 

“Conversando com Romulo Fróes uma manhã, na sala de casa (dividimos apartamento alguns meses), perguntei se poderia me mostrar umas canções inéditas. Encanei, na época, de gravar um disco só com músicas dele (não preciso explicar o porquê, a beleza de sua obra é conhecida). Enfim, abriu o computador e começou a reproduzir uma infinidade de coisas: aquela levada característica do Romulo onipresente, um tipo de samba-choro-acelerado, sem muita articulação na mão esquerda, o que faz o violão soar grande e reto, pois não abafa as notas quase nunca. Também seus encadeamentos harmônicos da primeira fase (muitas das canções eram antigas), o “Bresser 1” e o “Bresser 2”. Explico: há muitos anos, o ateliê do artista plástico, e parceiro do Romulo em inúmeras canções, Nuno Ramos, era na Mooca, estação Bresser do metrô (Romulo trabalhou como assistente do Nuno por 14 anos), então, duas das sequências harmônicas que conhecia até ali, e que originaram suas primeiras parcerias, foram batizadas assim: “Bresser 1” e “Bresser 2”. Mas voltando, em algum momento da audição, eis que se impõe aos meus ouvidos um samba dessa primeira fase. Era um “samba-Bresser-um”. Pedi que me encaminhasse outros sambas, inclusive, daquela leva, mas aquele ficou na cabeça. Passados alguns meses, com as canções de Conversas com Toshiro tomando conta, fui desencanando da ideia de gravar um disco só com músicas do Romulo. Nem por isso deixei de aprender a tocar aquele “samba-Bresser-um” que tinha gostado. E tocava sempre, a ponto de criar um arranjinho pra ele, eliminando, infelizmente, a pureza da sequência “Bresser 1” e da levada de samba-choro-acelerado-sem-articulação-na-mão-esquerda do Romulo. O samba, como alguns já perceberam, é “Dono da bateria”, uma parceria do Romulo com o Nuno, que gravei em Conversas com Toshiro. Pois vamos lá, penso nele, dentro do disco, como um ator, pois se estivesse em outro contexto desempenharia outro papel. Diferente das outras canções de Conversas com Toshiro, que são o que são em qualquer contexto, “Dono da bateria” desempenha o papel escolhido pra ela, o de entidade que abriga todas as outras entidades do disco; a noite, personificada, por onde passeiam Katsumi, Funatsu, Wong Kar-Wai, Takeshi, Asayo, Chihiro e outros. Como Gaia, na Mitologia Grega, é a Terra e abriga o próprio Olimpo, a noite é o chão do inconsciente. E os versos desse “samba-ator” atuam muito bem na metáfora: “Quem é você, quem é? Dono da bateria/ Sigo você até, até/ Quando nasce o dia/ É dia, é dia”. Criaturas mitológicas que saem das tocas seduzidas por esse mestre misterioso (que representa a própria noite), seguindo-o até o nascer do dia, quando se recolhem novamente.”

Foto: José de Holanda

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Outros Críticos Escrito por:

Desde 2008 atuam desenvolvendo projetos de crítica cultural na internet e em Pernambuco. Produziram livros e publicações, como a revista Outros Críticos, além de coletâneas musicais e debates, como os do festival Outros Críticos Convidam.

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