Este texto é uma tentativa de derivar através do livro Chants Populaires du Brésil, que apesar do título em francês e de pertencer à Biblioteca Musical do Museu da Palavra e do Museu Guimet, foi concebido por uma brasileira, Elsie Houston. Publicada em 1930, ainda não havendo versão em português, a obra está disponível na plataforma Gallica, da Biblioteca Nacional da França, e também conta com um exemplar na coleção do pesquisador José Ramos Tinhorão, no Instituto Moreira Salles, servindo de referência para o projeto Goma-Laca, um centro de pesquisa, criação e difusão da música popular brasileira registrada em discos de 78 rotações.
É partir dessa proposta que o projeto lançou, em 2019, a sua versão brasileira da obra de Elsie Houston: os Cantos Populares do Brasil – com direção geral, concepção e pesquisa de textos de Biancamaria Binazzi e Ronaldo Evangelista –, um disco compacto onde o encarte reserva 87 páginas sobre a importância de Elsie, cantora e percussionista que desenvolveu um impactante trabalho de pesquisa em um contexto histórico e social em que ela, enquanto mulher latino-americana, transformou o seu corpo e voz em um ato de derivar e se colocar no mundo: “Adquiri uma consciência da minha coragem, da minha resistência e da alta opinião que tenho de mim, que me sinto forte bastante para resistir a tudo”[1], revela em carta a Lívio Xavier, em 1935.
No encarte de Cantos, que também é um livro dedicado a condensar a vida e obra de Elsie, que contribuiu para a preservação de parte da memória brasileira, roubada em prol de um sistema civilizatório que ainda usurpa nossos afetos. A obra conta também com pequenos textos sobre as 20 canções que integram o disco compacto, reinterpretadas por artistas como Alessandra Leão, Alice Oliveira, Juçara Marçal, Lívia Mattos, André Mehmari, Marcelo Pretto, Beto Montag, Rodrigo Caçapa, Marcos Paiva, Felipe Massumi, Junior Kaboclo, Siba, as Pastoras do Rosário, dentre outros músicos. Todos corpos. São livros e discos, matérias sensíveis da existência humana que se negam em ser máquinas de produção. São corpos que ora moldam, ora exploram ou são explorados, outros se perdem no enredo da história, sem nome e sobrenome. Mas todos expressão do canto, sopro melódico e ritmado do estar no mundo.
Corpos modulares
Filha de uma carioca, Arinda de Malta Galdo, e de um norte-americano, James Franklin, radicado brasileiro, Elsie também foi mãe, tendo um filho com Benjamin Perét, poeta surrealista francês que participou das viagens de pesquisa junto à esposa, em 1929, pelo norte e nordeste brasileiro. À medida que buscou compreender a imprevisibilidade da música que se entoava sob as mais variadas expressões e ritmos brasileiros (lundus, modinhas, cocos, emboladas, acalantos, cantigas indígenas e do candomblé), Elsie trouxe em seu canto uma cartografia afetiva que mescla os passos da técnica do canto lírico, que começou a estudar ainda adolescente, com os passos da música popular brasileira que captava durante a sua jornada cultural pelo Brasil.
Em suas gravações, o corpo-pesquisador de Elsie vocacorporiza trânsitos musicais que ela provavelmente sentiu por casas, ruas, estradas e terreiros
Enaltecida pelo domínio na técnica vocal e pela ousadia de ter mesclado corpo intuitivo e corpo instrutivo, sua interpretação revela uma estética ambígua, em que o lírico se entranha no popular, nas matrizes gravadas em 1930, que podem ser encontradas em A feminilidade do canto (Atração, 2003) – projeto integrado à exposição Negras Memórias, Memórias de Negros, com curadoria de Emanoel Araújo e coordenação de pesquisa de Grégoire de Villanova – e Queen of the Brazilian folklore (DGD Records, 2017). Em suas gravações, o corpo-pesquisador de Elsie vocacorporiza trânsitos musicais que ela provavelmente sentiu por casas, ruas, estradas e terreiros, ao passo que buscava mapear sob a forma de notações musicais as frequências sonoras que serpenteavam do corpo das pessoas que transformavam a materialidade de suas existências em memória idiofone da formação cultural e musical brasileira.

Frequências que vibraram nos ouvidos, peles e pelos não apenas de Elsie, mas inicialmente nas entranhas do nativo que descobriu que poderia preservar o som da cachoeira num pau de chuva; ou daquele que uniu a pele ressecada de um animal a um tronco oco de uma árvore, fazendo do tambor a voz do trovão. Ou dos que utilizam as palmas da mão ou tamancos de madeira sob os pés, matérias produtoras do repique acelerado e vertiginoso do coco. Matérias estas que anseiam um passo, movimentos de braços e pernas que fazem do corpo humano um grande instrumento percussivo, que vibra e se insinua na marcação do tempo bailado.
Corpo exploratório
Em Chants Populaires du Brésil foram compilados 42 temas populares, onde se é exposto, no texto de abertura do livro, o interesse dos organizadores em selecionar cantos que oferecessem uma versão mais completa, com múltiplos arranjos e modulações em comum, mesmo diante da diversidade dos registros fornecidos por Elsie Houston. Buscava-se captar os chants des régions lointaines a partir do olhar de uma brasileira educada à moda europeia, Elsie, e de dois pesquisadores franceses, Hubert Pernot e Philippe Stern, que ponderavam as (nossas) línguas, ritos e músicas exóticas e longínquas. A obra foi um tipo de régua exploradora que media o corpo comutável da língua brasileira com a francesa, como no tópico, por exemplo, sobre as características de pronunciação das vogais e consoantes da fonética brasileira, em Prononciation des signes orthographiques des chansons brésiliennes, no qual são estabelecidas similaridades sonoras entres os sons do francês e do português brasileiro. Ou seja, cantos e línguas, corpos explorados.
No livro também há uma tentativa de canalizar a subversão do canto intuitivo dos ritmos populares brasileiros ao pensamento normatizador da partitura, ao adicionar à notação das canções sinais específicos que fugiam à padronização tradicional da partitura musical, a fim de pontuar tons e timbres especiais, a partir dos registros feitos por Elsie. Assim, o corpo linguagem, nos Chants Populaires du Brésil, classifica-se em quatro grupos de signos especiais: intensidade, altura, timbre e acento, com informações específicas sobre tipos de expressão da voz e abertura da boca, por exemplo. Formas de mapear o corpo que gesticula sonoridades, vibrações.
O recolhimento de cantos populares ou orientais, como o que foi feito por Elsie, publicados na década de 1930 em um contexto pós-guerra, surge do interesse, pelos países colonizadores, em apreender culturas distantes, tidas como misteriosas e exóticas, ao passo que investigavam modos de vida alternativos à sua “civilização”. Por outro lado, outros nomes, como Mario de Andrade e Villa-Lobos, por exemplo, também se debruçaram sobre a música popular brasileira, contribuindo para o registro e estudo em torno de uma produção pouco conhecida e, por vezes, até proibida de se expressar, nos casos dos cantos de matriz africanas.
Sendo o livro Chants Populaires du Brésil uma forma de conhecer não apenas a música brasileira, mas também aspectos linguísticos e fonéticos da nossa cultura, mas, no caso dos franceses, europeus, também é um tipo de plano exploratório sobre uma cultura não totalmente dominada. A partir de Elsie, os cantos corporificados nas vivências da cultura popular foram reintegrados no espírito lírico de uma mulher que se conectou ao seu presente histórico por meio da recontextualização do popular e do erudito, para quem a interpretação da música popular brasileira envolvia a intuição e a compreensão do que caracterizava e formava esse tipo de criação.
A busca pelas origens da música brasileira por Elsie é inspirada pela compositora e etnomusicóloga francesa Béclard d’Harcourt Marguerite (1884-1964), referência em cantos indígenas da América do Sul. Isto é, o mesmo corpo exploratório das almas indígenas e africanas em terras distantes é o que hoje nos ensina a garimpar pepitas de nossa existência extraviada. Neocolonizações: da mente, do corpo, da língua, de modos de pensar e sentir. Elsie, branca, negra ou índia? Eu, branca, negra e índia? Meu pai, minha mãe, talvez. Elsie Houston, uma brasileira de nome estrangeiro faz de Nova York palco de sua performance voodoo songs e negro spiritual, onde se apresentava em casas noturnas e teatros. “As cantigas ‘voodoo’ brasileiras que eu canto – são também resultado de anos de pesquisas pessoais”[2] (Elsie em O Cruzeiro, ano de 1941). A narrativa é a mesma: uma latino-americana que tentava ganhar a vida com música brasileira processada para americano (do Norte) ouvir. Não só tinha Carmem Miranda por lá.
Corpos do canto
Os cantos populares de Elsie Houston são inapreensíveis ao cartesianismo das partituras musicais de Chants Populaires du Brésil, este que nem mesmo valendo-se dos símbolos especiais que propunham traduzir as astúcias do improviso popular – “o melhor é ter isso no sangue”, dizia Elsie[3] – é capaz de revelar a variedade de interpretações e modificações que o tempo ocasiona ao cantos, ritos e ritmos oriundos da cultura popular brasileira, que está em infinito processo de recriação. No sangue dos pesquisadores e músicos dos Cantos populares do Brasil movem-se reinterpretações das notações de Elsie Houston à luz de suas próprias vivências.
Os cantos são muitos, mas vou me ater ao catártico “Xangô”, primeiro canto do disco lançado pela Goma-Laca, no qual a voz e ilu de Alessandra Leão inspiram nossa ancestralidade, evocam frequências de sofrimento, revolta, justiça, conquista. Nele, o contrabaixo acústico de Marcos Paiva, os violoncelos de Filipe Massumi e flauta de Junior Kaboclo nos envolvem num espaço cíclico – tal qual o oroboro impresso no papel kraft do encarte do disco, com arte de Heloisa Etelvina e Danilo de Paulo –, onde corporificamos em matéria sonora o passado da violenta formação brasileira; as buscas pessoais de Elsie; e as experimentações dos músicos que imprimem, no disco, a cartografia de suas experiências musicais. Denominado como thème de makumba nos Chants, “Xangô” sonoriza as palavras “Xan _ gô, ______ o _ lê gon _ di _ lê o _ la la _ / gon, gon, gon, gon __________ di _ _ lá”[4] que, no corpo de Elsie, rendem-se ao ímpeto e à dramaticidade de uma mulher que criou mapas afetivos da música popular no corpo do seu canto.
Corpos anônimos
Houston, de Andrade, Villa-Lobos, Péret são os nomes
dados aos corpos históricos que evocam a diacronia de suas existências. Esses
corpos que percorreram cidades em busca de uma identidade musical, ansiando sua
brasilidade. Mas e os corpos anônimos, os corpos brasis borrados de sua
existência humana, renegados de sua capacidade criativa em nome do corpo
civilizatório? Onde foi deixada a memória dos corpos da cozinheira negra do
Rio de Janeiro, da alagoana chamada Maria Amélia, da jovem cantora do Pará, da
menina do engenho no Rio Grande do Norte, das três mulheres negras vestidas de
branco, de um certo Dodô, de uma pequena menina no Estado da Paraíba do Norte?
Há ainda o finado amigo feiticeiro
da Bahia responsável por iniciar Elsie no culto de candomblé. Mas prefiro enaltecer
Faustino da Conceição, babalorixá, sambista e compositor, o primeiro a levar ao
disco e à rádio instrumentos como o omelê, afoxé e agogô. Ou Tio Faustino,
integrante do Grupo da Guarda Velha de Pixinguinha. Corpos anônimos também têm
história.
[1] Excerto de carta a Lívio Xavier, em 1935, disponível nos Cantos Populares do Brasil, de Elsie Houston, Goma-Laca, 2019.
[2] Excerto em Cantos Populares do Brasil, de Elsie Houston, Goma-Laca, 2019.
[3] Excerto em Cantos Populares do Brasil, de Elsie Houston, Goma-Laca, 2019.
[4] Excerto retirado de Chants Populaires du Brésil, de Elsie Houston. Volume 1. Livraria Orientalista Paul Geuthner, Paris, 1930.
Arte de capa: Laíza Ferreira @laihza
Publicado originalmente na ed.13 da revista Outros Críticos.
Palmas para a música popular brasileira!