por Fernanda Capibaribe.
O que podemos dizer sobre nossos corpos? Sabemos que os temos nomeados por uma anterioridade de nossa condição de seres “no mundo”. A partir da identificação, “menina” ou “menino”, vários discursos passam a ser-lhes aplicados, engendrados antes mesmo de que possamos ter ingerência sobre sua materialidade. Projeções são realizadas, expectativas criadas e escolhas tomadas em prol de sua configuração.
Nossos corpos são educados através de processos e pedagogias distintas: na família, na escola, nos ambientes e situações por onde transitamos e que vão atravessando nossa experiência. Em filmes assistidos, pela televisão, livros que lemos, músicas que passamos a escutar por gosto e aquelas com as quais entramos em contato mesmo sem querer. Um sem fim de interferências nos corpos que nos fazem atribuir, nos nossos e de outros sujeitos, pelo que está expresso e por aquilo que não pode ser dito ou feito, noções do que representa um corpo esperado, desejável e previsível num determinado contexto. Os dizeres sobre os corpos por vezes se processam tão sutilmente que mal conseguimos perceber o quanto somos agarradas/os e determinadas/os pelo que deles se fala.
Mais do que a carne, o corpo exprime marcas, vestígios e silêncios. Sua nomeação ou embargo é, assim, motivada pelo que nele se coloca como discurso aceitável ou repulsivo, do dizível ou do inominável. No entanto, o corpo não é passivo. As marcas que nele operam instituindo acessos ou recusas também podem ser aquelas através das quais novos caminhos são abertos. Como matéria mutante, o corpo pode sempre romper com a casa-armadura, atravessar as janelas, desintegrar o espaço (in)satisfatório das paredes que o cercam, deixar de ser um habitante da casa para tornar-se habitante do universo que suporta a casa, desterritorializar-se. Sendo o sistema sexo-gênero uma espécie de “território-casa” dos corpos, sair para o universo significa transformar as funções orgânicas, estabelecer novos parâmetros sensíveis que incidem sobretudo nas sexualidades, mas, como consequência, em muitos outros aspectos. A desterritorialização dos sexos é devir, institui trânsitos rumo a outros territórios, tornando possível uma transformação das funções de seus gêneros, zerando os padrões arquetípicos e estigmatizantes.
“Como encaixar o imaginário trans (gênero, ou sexual) nas expectativas, escolhas e protocolos se estes são recusados?”
Abordo, assim, os sujeitos engendrados em corpos que ultrapassam as fronteiras do território-casa. Empreendem viagens que transformam a si mesmos e as sociedades das quais fazem parte. Como encaixar o imaginário trans (gênero, ou sexual) nas expectativas, escolhas e protocolos se estes são recusados? Ou simplesmente não se pode/consegue segui-los? Principalmente, como dar sentido ao corpo não enquadrado no rol das significações vigentes e consensuadas? Me refiro à linearidade que associa o sexo (homem ou mulher), o gênero (masculino ou feminina) e o desejo (a orientação sexual). São esses corpos, os que dispensam a incidência linear, que adquirem a denominação do “trans”, aqueles que atravessam os extremos da linha associada ao trinômio sexo-gênero-desejo, que residem no entre-lugar das definições binárias, que existem no trânsito, na fabricação, e que transgridem a “ordem natural” das coisas.
Apesar da história da transgenereidade acompanhar nosso próprio histórico enquanto seres viventes, é nas últimas décadas (e mais fortemente após os anos 1990), que temos visto chegar dessa margem ecos perceptíveis. Não à toa a temática ligada aos corpos trans passou a agenciar com considerável frequência os dispositivos que compõem as nossas pedagogias culturais: se não a escola e a família de modo significativo, sim para o cinema, o teatro, a música, a fotografia e o material circulando nas redes digitais. E, favoravelmente, tem sido cada vez mais difícil para os discursos estáveis ignorar a existência e debate em torno de termos como transgênero ou transexual, bem como manter negligenciados os sujeitos que emergem a partir de tais corporalidades inseridas num contexto sociocultural.
Na descrição de transgenereidade1, o lugar da “transgressão” vem autonomeado e a partir dela podemos pensar muitas figurações do corpo englobadas e nomeadas, tais como drag queens e drag kings, cross-dressers, travestis, transexuais, ou pessoas que, por alguma intervenção em seus corpos, ou muitas, conectam opostos das fronteiras de sexo, homem-mulher e gênero, masculino-feminina. Há interseções entre cada uma de suas definições específicas, os limites são normalmente tênues. As nomeações variam, mostram-se constantemente inconclusas ou carentes de revisão, flutuam nas definições que os próprios sujeitos dão a si mesmos. Porque o prefixo trans se tornou antes de tudo uma expressão para abrigar pessoas e experiências para além dos modelos binários, por desejo nomeado e principalmente por um sentimento de inadequação nos corpos.
“sujeitos trans vêm instituindo o dissenso nas políticas que envolvem as identidades de gênero e as experiências possíveis com as sexualidades.”
Enquanto corpos móveis, que rompem com uma condição de sexo e gênero suposta natural ou certa, sujeitos trans vêm instituindo o dissenso nas políticas que envolvem as identidades de gênero e as experiências possíveis com as sexualidades. Desnaturam binarismos instituídos como acepção única e inquestionável. E, principalmente, nos apresentam um vasto espectro de relações possíveis entre sujeitos-seres sexuais. Nessa nova configuração da política dos corpos, para além da nomeação de pessoas trans tais como vimos sendo difundido no caso recente Veronika2, ou seja, um corpo cujo trânsito está atrelado a uma condição marginal, também vamos experienciar outras representações e nomeações possíveis, nas mesmas pedagogias que até pouco tempo vinham instituindo o engessamento da linearidade hetero-cis-normativa.
Assim, no cinema, vemos Silvyo Luccio3, nascido Lúcia Silva e que se fabrica homem no entre-lugar entre sua formação como mulher numa família tradicional evangélica e sua atual experiência como cabra-macho sim, senhor. Homem hetero, casado com Widna. No contexto pernambucano, vemos Christiane, Maria Clara, Rayanne, Mariana, Deusa, Luciana, Francine, Luana, Brenda e Wanessa, que, através das lentes e escuta de Chico Ludermir4, nos apresentam suas diferentes corporalidades transexuais como expressões legítimas de seus corpos em trânsito. Antes, pelo enfrentamento que Chupeta e Lollypop performatizavam nos palcos tornados trans-punks pela banda Textículos de Mary na virada do século. Sim, o caminho é comprido, tortuoso, mas as marcas da corporalidade trans não permanecem mais invisíveis ou estagnadas no lugar das nomeações pejorativas.
Tais experiências trans (gênero/sexual) recentes vêm mostrando que há muito o que ser vivido fora do sistema binário. São incorporações transgressoras. Sair do isso ou aquilo nos desvela, sobretudo, a provisoriedade que atravessa os corpos. Desses atravessamentos, e por considerar sua condição mutável e não passiva, os corpos tanto são produzidos, como também se produzem, se reinvestem de discursos outros em relação aos que lhes são destinados. Através de inquietações e questionamentos no trajeto, rompem com as significações que estancam nossos corpos em discursos de regulação e controle. Porque as sociedades esperam que estejamos todas/os muito bem confortáveis no território da nomeação dos sexos e “aconchegados” no ambiente familiar dos gêneros. Mas os corpos vão além.
Ao não se encaixar nas classificações e inferências “lógicas” do que se espera de um homem ou mulher “por nascimento” e tornar público o que até então se configurava no ambiente do privado, sujeitos como Silvyo, Maria Clara, Laerte e tantos outros atravessam do pessoal ao político e expõem um modo de ser de uma comunidade. Se opõem a outro modo de ser, de um consenso no qual há normas instituídas para os corpos assentando comportamentos e práticas naturalizadas, fora dos quais tudo é abjeção e não deve tornar-se visível. Recortes de mundos sensíveis em conflito.
“São a ‘torção da fábula’, válvulas desnaturalizantes das dicotomias desiguais no que toca os sexos e os gêneros.”
Tais corpos configuram atrizes/atores sociais de experiências sensíveis em emergência, no escape das formas previsíveis que dizem respeito às identidades. São a “torção da fábula”, válvulas desnaturalizantes das dicotomias desiguais no que toca os sexos e os gêneros. Como sujeitos políticos do dissenso, são, portanto, “operadores de desclassificação”. Não querem e/ou podem ser agentes de um discurso normatizador, mas demandam que a realidade seja refabulada.
A ideia de uma desconstrução dos gêneros, contudo, não se refere à sua destituição, mas antes a uma outra forma de trazer à tona as diferenças não ancoradas nos sistemas binários de oposição e legitimação de poder: centro-margem, heterossexual-homossexual, homem-mulher, masculino-feminina. A diferença tal como se estrutura no pensamento binário, institui a relação de uma superioridade que se afirma ante uma “outra” subordinada. Posta dessa forma, a diferença estará sempre calcada num modelo normal e o outro exótico, peculiar, que precisa ser nomeado como diferente exatamente pela sua condição de excluído de um sistema naturalizado.
Pensando nisso, devemos considerar que, para além de vivenciar apenas a epifania desse lugar de mobilidade e transformação, sair das zonas de conforto que demarcam os lugares aceitos e acessíveis das relações lineares sexo-gênero-desejo também implica em sofrimento. Expor a quebra não pressupõe viver o deleite, mas, ao contrário, assumir uma posição-de-sujeito que requer enfrentamento e prescinde de espaços de negociação. Por isso, para que outros agenciamentos na diferença sejam possíveis e novas fabulações tornem-se naturais, necessitamos ser, cada vez mais, trans.
1. Disponível em: www.abrat.org/?page_id=642.
2. Travesti brutalmente agredida em abril desse anos por policiais em São Paulo, presa em flagrante de ato violento contra uma vizinha.
3. Protagonista do documentário “Olhe pra Mim de Novo”, dirigido por Cláudia Priscilla e Kiko Goifman, 2012, 77 min.
4. Exposição “Muheres: o nascer é comprido”, recém lançada em Recife.
Publicado originalmente na revista Outros Críticos #8 – versão da revista on-line | versão da revista impressa
Arte de capa: Shiko
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