CORPOS PENSANTES CORPOS-SONS MARIA FLOR MARIE CARANGI

“O corpo é um mapa cultural”
Massimo Canevacci

“Agir sobre o corpo é sempre um meio, de alguma forma, de agir sobre a sociedade”
Patrícia Sobrinho

A discussão sobre o corpo, ou melhor, sobre os corpos, em nossa sociedade está constituída sobre um alicerce fundado num estado escravocrata, com justificativas baseadas num discurso “cristão”, uma espécie de “platonismo religioso”, em que o corpo, tratado como menor, sujo, não pensante, está(va) separado da mente: o intelecto. Essa divisão fundamenta uma separação étnica, que justificou a escravidão de pessoas negras e garante a manutenção de um (in)consciente social que coloca o “homem branco” no topo das relações de poder.

Como expressão artística, o corpo se confunde com a própria história das artes. E ele não está desprovido de interesses e ideologias. A performance, como um todo, influencia seu meio, assim como (re)cria significados, memórias, comportamentos e até mesmo subverte situações (Stokes), sendo, inclusive, reflexo dos contextos nos quais está inserida. Desta forma, o corpo artístico é também um corpo político, pois a própria definição de arte envolve relações de poder. Quem decide o que é arte? Quem determina o que e quando um corpo é artístico?

Durante a Idade Média, na Europa, a Igreja tentou separar a música do corpo. E esse conceito da música “sem o corpo” foi fundamental para a difusão de uma consciência sobre a qual se baseiam os vários conceitos de música “artística” e “boa” em países colonizados como o Brasil. Entretanto, as classes populares continua(ra)m mantendo a relação da música com a dança, com o corpo ativo, de tal forma que os gêneros e ritmos musicais considerados autenticamente brasileiros têm, em sua maioria, relações inseparáveis com o movimentar-se. E, nesse sentido, os corpos “femininos” e “masculinos” são vistos, tratados e compreendidos de formas diferentes.

A sociedade machista utiliza o corpo “feminino” para prender, limitar e objetificar a mulher. Apontam-na como um ser incompleto, baseando essa afirmação na falta de um falo, um pênis. O atual presidente do Brasil – que disse, inclusive, a uma colega de trabalho que ela era tão feia que não merecia ser estuprada, como se estupro fosse merecimento e conceitos de beleza medidas de julgamentos – não mede esforços para falar que mulher tem que receber um salário menor em relação ao do homem, pois engravida. Demais pessoas que têm gênero e sexualidade com alguma relação com o “feminino” também sofrem com essas opressões.

Em contrapartida, os corpos também são utilizados como uma forma de empoderamento. No cenário musical brasileiro atual percebe-se cada vez mais a utilização consciente desses corpos, sobretudo por mulheres. Destacamos aqui o trabalho de duas artistas: Maria Flor e Marie Carangi. Elas têm ganhado reconhecimento em suas performances, a partir, sobretudo, da cena da região metropolitana do Recife, estendendo-se para outros lugares e espaços, inclusive internacionais.

Maria Flor,

multiartista, iniciou sua relação corpo-som cedo, quando seu pai ouvia vinis de guaracha, mambo, salsa, bolero e a convidava para dançar. Na escola não perdia a oportunidade de participar das diversas atividades, que aconteciam principalmente em épocas de Carnaval e São João. Por volta dos dez anos começou a fazer aulas de dança pop na escola Costa Azevedo. Durante o Ensino Médio, já na escola Clóvis Beviláqua, teve a oportunidade, através da professora de educação física Ediane Ramos, de participar de um espetáculo. E então foi contemplada com uma bolsa para fazer teatro num grupo chamado João Teimoso.

No lugar no qual fazia as aulas de teatro também havia dança. E então a artista começou a se envolver ainda mais com a dança pop, do ventre e danças populares, com destaque para o frevo. Ritmo pelo qual ela se encantou e que norteia o fazer e o interesse artístico dela. No entanto, esse saber de como usar seu próprio corpo aconteceu de fato quando ela conheceu e passou a integrar os Brincantes das Ladeiras, que é um grupo coordenado pelo Mestre Wilson, que reúne passistas e pessoas interessadas em brincar o frevo. As aulas acontecem ao ar livre, na Praça Laura Nigro, na Cidade Alta, em Olinda. Os Brincantes das Ladeiras despertaram em Maria Flor o sentir. Até o momento ela tinha uma preocupação muito grande com a precisão técnica dos gestos. Com o contato com a cultura popular, ela descobriu de fato o dançar, que envolve muito mais do que técnicas, afirma.

O usar esse corpo, inclusive artístico, envolve muitas questões. Numa sociedade patriarcal, em que a mulher é levada a esconder-se, a prender-se em si mesma, liberar seu corpo, libertar-se, é um processo diário. Maria Flor conta que com os Brincantes das Ladeiras passou a acompanhar agremiações, troças etc. Mas ela tinha um certo receio. Então se vestia com um terno, calça e camisa sociais, gravata borboleta, cartola, como uma forma de se esconder e se proteger, inclusive dos assédios. Com o passar dos anos percebeu que poderia usar a roupa que quisesse.

“A utilização do corpo musicalmente, artisticamente, politicamente, é uma utilização diária da forma como a gente compõe, toca, dança, interpreta”

maria flor

Explica que a utilização do corpo é importante em qualquer tipo de trabalho, não somente o artístico/musical. “Há uma musicalidade e uma dança diárias” em todas as coisas que o ser humano realiza, nas mímicas do dia a dia, nos gestos, desde um espetáculo até o quebrar de um ovo, a forma de andar, de pegar uma xícara, de respirar. Para ela, movimentação e som são coisas que estão ligadas ao ser humano desde sempre. Então, não há como pensar o fazer musical desprovido desse corpo, que é movimento. O corpo responde a cada som, seja um susto, um medo, uma memória, esclarece.

E falando mais especificamente sobre a mulher que usa esse corpo, reconhece que a utilização dele sempre faz diferença. Algumas vezes de forma legal, outras vezes nem tanto. As abordagens que são feitas a uma mulher e/ou a um homem quando a movimentação é realizada por aquela e/ou por este, mudam. Há um olhar que é colocado sobre essa mulher que dança, que mostra essa movimentação do seu corpo, explica. E sem dúvidas, continua, a movimentação do corpo no processo criativo e performático artístico é importante. Ela esclarece que isso faz parte da interpretação, sendo o gesto indispensável. “A dança traz um gestual importante. A forma de expressar sem ter que falar nenhuma palavra. Na educação, de forma geral, a arte é uma grande aliada. Modifica nosso processo criativo, nos faz pensar, nos fortalece, nos dá várias possibilidades de atuação. A música também nos faz perceber coisas no mundo de outra forma. Entender o espaço que a mulher pode ocupar através da arte traz esse olhar do pensar, do mover-se, do ouvir. Ouvir bastante o outro”, afirma Maria Flor.

“A utilização do corpo musicalmente, artisticamente, politicamente, é uma utilização diária, de conseguir mostrar o nosso posicionamento da forma como a gente compõe, toca, dança, interpreta, sempre atuando em conjunto, tentando, de alguma forma, reverberar essas compreensões de mundo, política, sociedade, moralidade, respeito, dignidade. A gente acaba encontrando alguma forma de dizer isso, mesmo que seja sem palavras, ou com palavras, mas que seja aliada a um movimento, ou dentro de uma melodia e sem palavra nenhuma”, conclui a artista.

Marie
Carangi,

que atualmente tem uma performance intitulada “Teta Lírica”, na qual ela toca theremin com os seios, começou a descobrir e desenvolver uma relação consciente com o corpo a partir de 2008, quando foi vocalista da banda Saltos Ornamentais, com Raul Luna, André Hora e Gus, em Recife. Começou a praticar a performance de uma maneira intuitiva e crua, conta. Foi a partir dessa experiência que sentiu o impacto de ser um corpo em público. No mesmo período estava ingressando no curso de Arquitetura e Urbanismo, e as temáticas que envolviam o corpo no espaço sempre lhe atraíam mais. A arquitetura também permitiu que ela se aproximasse de teorias e artistas da performance.

Mas algo que a deixou impressionada foi uma peça a qual assistiu, provavelmente em 2010, no Teatro Oficina. “Aquela macumbaria incrível que eles propunham naquele teatro maravilhoso de Lina Bo Bardi e a forma que os corpos se apresentavam e transitavam no espaço me deixaram muito enlouquecida. Nunca tinha visto nada igual ao vivo. Pensei que aquilo era parecido com o que atrai tantas pessoas para a igreja. Um sentimento de comunhão catártica. Ficou um flash de memória. Depois comecei realmente a trabalhar com o corpo a partir dos cabelos, na ‘Peluquería Carangi’, um salão de cabeleireiro itinerante que criei no Lesbian Bar, do artista Fernando Peres, e depois se espalhou como ocupação efêmera de espaços públicos disponíveis na cidade. Nesse gesto de cortar cabelos das pessoas em público e em situações não usuais, comecei a experimentar as fricções do corpo no espaço público, e como nosso corpo cria situações de incômodo simplesmente por estar num lugar que não lhe é designado. Comecei a ter mais consciência dessa designação de lugar na sociedade, que passa por estereótipos de gênero, raça e classe, relacionados aos padrões que nos aprisionam. Nesse momento eu estava liberando o meu cabelo crespo do alisamento químico e entendendo como recuperar uma identidade que me foi roubada. Nessas performances da ‘Peluquería Carangi’ comecei a utilizar o som também, como um delimitador de espaço. E usava uma caixinha daquelas de camelô, com microfone. Eu usava uma playlist de músicas e também ficava tocando os ruídos de efeitos feedback que o microfone provoca. A partir daí descobri o theremin, que é o instrumento que toco hoje na performance Teta Lírica”.

Pensando na utilização da arte/música aliada a uma educação feminista e como o corpo atua através dela, a artista elucida que a relação da música, do som, com o corpo tem a ver com a escuta, com uma amplidão das capacidades sensíveis de comunicação e percepção de tudo que está ao redor, no mundo. “Tudo junto é uma massa de som formada por microcoisas peculiares”. A arte “é essencial como processo de desdomesticação do corpo e dos sentidos. E a música, o som, tem uma influência muito sensível e direta sobre nosso corpo, que é água. Gosto de pensar nas mobilizações corpóreas como acesso a outras formas de inteligência que são adormecidas pela educação tradicional. Penso que a recuperação da conexão entre corpo e consciência associada a discussões, encontros, experiências coletivas e compartilhamento da produção e história de outras mulheres podem ser meios muito efetivos. Nessas percepções a gente vai desenvolvendo posturas conscientes e inconscientes”.

Ainda sobre o corpo “feminino”, ela diz que “qualquer ser humano categorizado ou reconhecido como mulher é um corpo que causa uma variedade de impactos. A simples circulação na rua é carregada de situações de confronto, desconforto, assédio, controle. Pela heteronormatividade compulsória, a mulher deveria estar escondida na cozinha ou exposta num filme pornô. A saída da mulher de um papel secundário, recluso ou objetificado provoca (ainda!) uma rejeição social dissimulada. Sair desse papel envolve, entre outros esforços, desafiar diariamente comportamentos, estereótipos e contextos. Toda existência pública de seres mulheres, trans, não binárias que ameaça a heteronormatividade compulsória causa impacto e é uma conquista, principalmente no meio profissional”.

Marie Carangi acredita que, do ponto de vista artístico, é importante pensar taticamente como a expressão realizada na performance se manifesta. Também acha importante a espontaneidade como veículo de liberação. Pensa que cada um ser deve utilizar e viver seu corpo de forma autônoma, pois para ela “encontrar os próprios caminhos de expressão pessoal é muito poderoso e libertador”.

Suas performances têm a ver com gestos que estão relacionados com posturas que sente vontade de expressar socialmente. Atualmente ela tem praticado em seu trabalho a chamada aberta à participação de mulheres, pessoas trans e não binárias em alguns momentos da suas performances, como na Marxha das Cem Tetas, ou no Tetaço Geral. Tem explorado a teta (seio, peito) como um órgão sensível em diferentes gestos. O Tetaço Geral, por exemplo, tem uma proposta coletiva, em que as paredes de uma sala do Instituto Ohtake e a parede externa da Galeria Maumau foram carimbadas com tetas, pois esses gestos que juntam pessoas “potencializam outras capacidades e qualidades de ação e troca”. Ainda tem praticado sessões de Orchestitstra/Orquesteta como um ateliê público, direcionado a pessoas dos grupos já citados, que desejam vivenciar a experiência de tocar coletivamente o theremin com as próprias tetas.

“Todas as relações sociais passam pelo corpo. Para mim trabalhar com o corpo tem a ver com experiências de recuperação e reparação de um corpo coletivo historicamente dominado, do qual meu corpo é uma célula, apenas. A presença do corpo tem sido meu canal de expressão em vários trabalhos, mas a ausência dele pode ser tão efetiva quanto. Sinto que no Brasil, ao mesmo tempo que temos uma relação muito corporeamente tátil e espontânea com as coisas, que para mim tem a ver com o Carnaval e o jeito que tudo foi se desenvolvendo historicamente na criação e no confronto, há também o véu da culpa cristã – agora mais evangélica – opressora muito forte que autoriza a violência contra tudo que ameaça a construção da vergonha e dos tabus. E penso que todo movimento e esforço que se faça para dissolver a heteronormatização compulsória que vem de uma cultura de colonização é uma ‘bênça’”.

No contexto artístico/musical os corpos são apresentados de várias maneiras. Levando em consideração a colonização que impôs costumes eurocêntricos, em que o fazer musical muitas vezes apresenta-se como algo superior à performance corporal, não dá para pensar o lugar do corpo e, mais especificamente, do “feminino”, no Brasil, sem passar pela senzala e pela periferia. Embora perceba-se grandes avanços (significativos!) desse corpo que fala, que pensa, que é, como nos trabalhos das artistas aqui apresentadas, Maria Flor e Marie Carangi, a relação corpo(dança)/som(música) numa sociedade machista, racista, homofóbica, entre outros preconceitos e opressões, ainda é bastante complexa, pois envolve muitos fatores.

Por isso, refletir sobre música, sons, gestos, e como o corpo atua em sua produção, é pensar sobre espaços, lugares e como o ser humano está presente neles, assim como os constrói. Além do mais, entender, viver, ser o corpo individual e coletivo, sobretudo para aqueles que estão oprimidos, é um caminho de conscientizar-se sobre mecanismos de libertação. E a música, a arte em geral, é um meio eficaz para isto.

Arte: Laíza Ferreira @laihza

Publicado originalmente na ed.13 da revista Outros Críticos.

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Marília Santos Escrito por:

Mestra em Música, com área de concentração em Etnomusicologia, pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB (2017). Graduada em Música, com láurea acadêmica, pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2014), e em Letras, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru - FAFICA (2008). Integrou, como clarinetista, a Banda Sinfônica do Conservatório Pernambucano de Música (CPM). Foi componente do grupo Bellas Marias.

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