Corpos políticos, corpos empoderados

“Quando decidi fazer um disco, olhei pra mim pra ver o que eu tinha de mais intenso e mais verdadeiro pra mostrar, e me deparei com um processo de empoderamento, de me assumir e gostar de mim do jeito que eu sou, do meu cabelo. Não só fisicamente, mas da minha identidade. E a Elza [Soares] estava sempre presente nesse processo. Porque ela é uma referência de mulher negra que esteve no mercado musical durante muito tempo, resistindo, e hoje está no auge de sua carreira. Pra mim, chegar aonde ela chegou dentro de todas as circunstâncias e dificuldades é muito louvável de se espelhar”, disse a cantora baiana Larissa Luz nos bastidores do Festival de Inverno de Garanhuns 2016. Na mesma noite, aos 78 anos, Elza Soares fez toda a Praça Mestre Dominguinhos incorporar seu grito de guerra: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Os versos da canção “Maria da Vila Matilde”, de Douglas Germano, estavam na boca do povo como quem evoca um mantra, uma bandeira de luta. Estavam na boca das mulheres como quem se rebela contra anos de violência doméstica, fazendo jus à carga de representatividade que o disco A Mulher do Fim do Mundo reflete para o contexto político e social brasileiro, atualmente tomado por pautas retrógradas. Na breve entrevista que concedeu aos jornalistas antes da apresentação, Elza destacou que “encontros musicais como esse é uma coisa que precisa ser feita mais vezes, essa união de mulheres, acho que a gente tá tendo a resposta que a gente queria”.

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“Sabemos que existe uma diferença entre a mulher negra e a mulher branca, que é a oportunidade. Vejo que existe um movimento de crescimento e que estamos realmente conquistando espaços, por isso meu disco se chama Território Conquistado”. Larissa Luz no Festival de Inverno de Garanhuns. Foto: Laís Domingues

Naquela noite, o clima era de vibração e unidade feminina. Além de Elza Soares e Larissa Luz, Karina Buhr se apresentava no mesmo palco. Três vozes de timbres, influências e trajetórias distintas, mas ligadas por um denominador comum: a aptidão de fazer do palco um espaço de luta. O empoderamento e a afirmação estavam presentes na postura do palco, nas letras, no discurso e também na reação do público. Mais do que uma homenagem às mulheres, a noite foi um ato político protagonizado por elas.

“Karina também tem um discurso super afiado, assim como o de Elza. Esse encontro é um marco que só me faz constatar que realmente estamos indo pra frente”, comentou Larissa Luz após o show. Seu segundo e mais recente disco, Território Conquistado, é um mergulho na estética negra contemporânea, com faixas que homenageiam criadoras negras que a influenciaram, como Nina Simone, a poeta peruana Victória Santa Cruz, a escritora brasileira Carolina de Jesus, a cantora Thalma de Freitas e Elza Soares, que levou sua voz rasgada para a faixa-título. A partir de uma fusão rítmica que dialoga com a perspectiva afro-brasileira, Larissa enfatiza o direito de fala que sempre foi negado à mulher negra. Um exemplo é a canção “Bonecas Pretas”, que provoca uma reflexão sobre a ausência de diversidade dentro do comércio e também da publicidade brasileira. “Sabemos que existe uma diferença entre a mulher negra e a mulher branca, que é a oportunidade. Vejo que existe um movimento de crescimento e que estamos realmente conquistando espaços, por isso meu disco se chama Território Conquistado”, afirma a cantora.

não moverás do corpo um pelo

Em cima do palco, Karina Buhr grita, provoca, mostra toda a sua fúria, contraria os “bons costumes” com poses e atitudes punks. Sua performance é um contra-ataque à onda de conservadorismo que ganha força no Brasil, entrando em consonância com movimentos feministas e de igualdade de gênero. Antes mesmo de ser lançado, o seu último disco, Selvática, já causara polêmica por conta de sua capa, na qual a cantora e compositora aparece de seios à mostra. Por outro lado, a polêmica contribuiu pra dar visibilidade ao trabalho, que ganhou ainda mais força e reconhecimento do público, além de amplificar a performance subversiva da artista. No show do Selvática, com o qual circula atualmente, Karina chega ainda mais agressiva e debochada.

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Foto: Priscilla Buhr.

As faixas do novo trabalho ajudam a catalisar esse estilo mais pesado de apresentação. Seu single de estreia, “Eu sou um Monstro”, é um revide ao arquétipo de mulher delicada e recatada enquanto o texto da faixa “Selvática” se apresenta quase como um manifesto contra a misoginia na qual o mundo se transformou. Sempre em posição de combate, ela não abre mão de sua sexualidade, defendendo o direito das mulheres de exporem seus corpos conscientemente, como manifestação de sua liberdade individual sem estar atrelada somente à manipulação masculina.

Assumir o corpo sensual como exercício de liberdade é também umas das expressões da cantora paulistana Iara Rennó:

“No palco, temos que comunicar a todos os sentidos, falar com o corpo inteiro. Se hoje minha presença cênica traz uma sexualidade feminina, isso não deixa de ser política: é justamente pelo direito de, enquanto mulher, poder ser sexual e ter atitude, tocar, cantar, escrever, dirigir, produzir, cozinhar e ser respeitada em qualquer dessas atividades como artista.”

Iara lançou, esse ano, dois discos simultâneos, Arco e Flecha, considerados gêmeos. Arco representa o curvo, o receptivo e é formado por uma banda de mulheres, enquanto Flecha, que representa a linha reta, é formado por uma banda de homens. “Os discursos de um e de outro são diferentes, mas vale dizer que o masculino e o feminino, enquanto princípios e não gêneros, estão presentes em ambos os discos, porque a música não tem gênero. O ouvinte que não lê a ficha técnica jamais vai dizer que tal instrumento é tocado por uma mulher ou por um homem. Talvez até, tendo essa informação, pode achar que é o contrário – que os homens estão tocando no Arco – que é mais pesado e que as mulheres estão no Flecha, que é mais doce. Por isso os discos podem ser vistos também como transgêneros. Acho interessante contribuir pra essa atual discussão sobre gêneros justamente jogando mais lenha na fogueira e não dando respostas. O mais importante são as pessoas e sobretudo sua liberdade de identificação com gêneros ou não. Esse é meu posicionamento político: pela liberdade do indivíduo diante de qualquer paradigma”, defende a compositora.

A autonomia que Iara Rennó exerce na composição, assim como sua contemporânea Karina Buhr, Larissa Luz e Ava Rocha, preenche uma lacuna de um espaço que sempre foi majoritariamente masculino. Ao longo da história da música brasileira, o país teve grandes cantoras que não faziam suas próprias músicas, restando-lhes apenas o posto de intérprete. Ao assumirem a composição das músicas que cantam, as cantoras dão vasão às questões que as afligem na condição de mulher. Uma vez que o processo criativo é de autonomia feminina, o resultado acarretará numa linguagem com uma outra perspectiva: a feminina, algo de extrema importância democrática num processo cultural. “Se eu fosse resumir numa frase a minha bandeira, seria pela liberdade sexual da mulher negra-índia. Pra mim, é inerente expressar a cultura negra e indígena de alguma forma, acabo levando isso também pro palco. Porque simplesmente o fato de uma mulher negra-índia produzir arte independente no Brasil hoje é um ato político, de resistência. Arte sem política, é entretenimento”, aponta Iara Rennó.

Perspectiva semelhante é defendida por Ava Rocha a partir de suas performances que, sempre marcadas por uma autonomia imaginativa, buscam transmitir a agressividade e o horror das armas que violentam animais e índios. Para chamar atenção à sua causa, Ava passou a fazer uso constante de um cocar de facas. “Substitui as penas por facas para incorporar essa realidade de extermínio dos índios e levantar reflexões sobre a imagem real deles, não simplesmente me restringir a uma imagem pura, estereotipada, que é o que todos apenas querem lembrar”, reflete a cantora, que lançou o segundo disco, Ava Patrya Yndia Iracema. “Eu também queria me conectar com minhas raízes indígenas, e queria me coroar, no sentido de me empoderar do que eu sou e dar uma imagem ao que é Ava patrya Yndia Iracema.” No clipe de “Auto das Bacantes”, que lançou este ano, Ava não larga mão, mais uma vez, da performance provocadora para levantar uma outra questão: defender a descoberta do corpo feminino enquanto corpo político. Assim, afirma:

“Auto das Bacantes fala de antropofagia, do devorar o corpo, desalinhar a linguagem, e torná-lo o que ele já é na verdade, um corpo político, vivo e cultural. O corpo feminino enquanto território de potência, magia e criação e também de estupro, de violência, de massacre. Mas como expressão da paciência e da resistência, a mulher luta e goza, no seu corpo e no seu som, no seu corpo e no seu espírito, na cidade ou na floresta, como coisas inseparáveis. Estamos descobrindo a cada dia sobre esse corpo político”.

Publicado originalmente na ed. 12 da revista Outros Críticos.

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Marina Suassuna Escrito por:

Jornalista, estuda na Pós-Graduação em Fotografia e Audiovisual na Unicap. É repórter da revista Outros Críticos e colabora nas revistas Continente e Cardamomo.

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