crítica de boteco: Neilton Carvalho, Adriano Leão e Marina Silva

A seção “Crítica de Boteco”, da revista Outros Críticos, promove a cada encontro um debate sobre temas abordados na revista. Com o tema “Tecnologias e sensibilidades”, esta edição foi fotografada por Camila van der Linden e gravada no estúdio Casa do Kaos, no centro do Recife, com a participação dos músicos e pesquisadores da Altovolts, Neilton Carvalho e Adriano Leão, e da musicista Marina Silva, integrante da banda Team.Radio. A mediação do debate foi feita por Carlos Gomes, editor da revista.

A descoberta do som

Carlos: Quando foi que vocês começaram a serem sensíveis à música como um espaço artístico (para a criação) e a perceber como a tecnologia também fazia parte dessa sensibilidade, na trajetória de vocês?

Adriano: O start pra mim é… Tem a eletrônica… Eu tinha vizinhos que trabalhavam com som, ainda muito moleque, uns tios que eram músicos… E tem a parte de mecânica, que meu avô e meu pai mexem com isso. Eu comecei na curiosidade de montar e desmontar coisas – pra música, nessa coisa ligada com som. Um vizinho tinha uma oficina de eletrônica e eu ficava xeretando, achava massa, bonita as máquinas. Eu ficava lá e de vez em quando o cara me dava uns aparelhos velhos. Eu peguei um gravador de mesa Philips, do caramba o gravador. Eu ficava na curiosidade de gravar fitas, fazer beat. Já com fita cassete ou de ficar gravando base com um 3 em 1 em casa. Grava um canal depois outro por cima, várias guitarras por cima. Lembro de com um delay bem fuleiro ficar criando uns loops bem toscos pra virar uma batida, e depois fazer riffs de guitarra em cima. Aí montei uma banda punk, mas acho que não usei nada disso. Mais na frente toquei na Irmandade, aí voltei a mexer com tecnologia. Acho que aquilo era pós-punk…

Neilton: Com uma intenção eletrônica.

Adriano: É… industrial. Era tecnopobre (risos). A gente não tinha pretensão de ser eletrônico, mas ao mesmo tempo o vocalista Marco era ligado a essa coisa do industrial, ele tinha um selo, era especialista em vender esse tipo de gênero musical.

Neilton: Existe o underground. Ele está abaixo do underground.

Adriano: E tem uma galera do interior daqui que curte esse tipo de coisa. Eu tocava baixo e fui tocar guitarra no Irmandade, nunca tinha tocado, mas foi massa. Aí comecei a experimentar. Afinar do meu jeito, ver os pedais. Aí Neilton começou a me ensinar uns negócios, já tocava no Devotos. Eu também pegando guitarra tosca e montando do jeito que eu achava que era. E era massa que o som do Irmandade era isso, as afinações doidas que a gente fazia. Mas a música saía do jeito que a gente queria. Esse foi meu início: estar em oficina de fundo de quintal, depois entrar em banda, mais experimental com o lance de tecnologia, desmontar aparelho…

Carlos: E com você, Marina, acho que é mais ligado a gravar em casa, a difundir na internet…

Marina: Desde criança eu sou fascinada por música… Minha irmã estudava piano e o primeiro instrumento que eu aprendi – porque eu a invejava muito – foi o piano. E desde os 9, 10 anos de idade, em todas as oportunidades que eu tive, não foi uma experiência muito tecnológica. Foi superanalógica. O que eu gosto é de fazer música ao vivo. Fazer parte de um grupo, construir aquele som ao vivo. A minha primeira experiência coletiva foi com banda marcial. Comecei tocando prato e depois tarol. E montei minha primeira banda com 13, 14 anos de idade, mas sempre fugia da tecnologia, como eu fujo hoje (risos). Eu cantava e qualquer coisa com tecnologia era um bicho que eu não conseguia entender. Nessa época eu comecei a gostar mais de artistas… Não necessariamente folks… Mas que fosse uma coisa mais crua. Eu ouvia muito Nick Drake, Elliott Smith. O que me chamava muito a atenção era como eles sozinhos conseguiam ser tão completos só com a voz e o violão. Isso me afastou ainda mais (da tecnologia) e eu apostei mais na performance , quanto mais simples melhor…

Carlos: A sua geração é mais recente e nela está presente a gravação lo-fi, caseira, de maneira mais forte…

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“Esse contato com as pessoas da internet foi muito importante pro meu repertório e para minha vida de musicista na cidade. Porque as pessoas que eu conheço hoje foram por conta do Myspace.” – Marina Silva. Foto: Camila van der Linden

Marina: Inclusive, saber que os artistas… Eles mesmos faziam tudo… Elliott pegava um four-track e fazia o disco. O primeiro dele foi basicamente ele gravando assim. Só que eu não sabia nada disso na época. Eu não fazia ideia de como as pessoas registravam a música. E não tinha nem muita ideia de como fazer de forma amadora. Eu não conhecia ninguém que mexia com isso. Quando a gente tinha 13, 14 anos de idade, só queria parecer o que tinha no mainstream. Até que eu percebi que ao meu redor não existia muitas pessoas com quem eu me identificasse musicalmente, mas na internet era muito mais fácil encontrar essas pessoas. Eu fui entrar no Myspace e via as pessoas fazendo música com o que tinham na mão. A primeira coisa que eu gravei foi com aquele microfonezinho branco, aquele clone. Eu só ligava na placa on-board no computador e gravava a composição que eu fazia no violão. Eu sou muito presa a isso ainda. De terminar a estrutura da canção e executá-la inteira. E só registrar a performance. Sem trabalhar muito a estética, com a tecnologia que eu tinha disponível. Eu gravava e colocava no Myspace, a partir daí as pessoas viam o que eu fazia e comecei a entender como as outras pessoas trabalhavam com isso. Vim a conhecer os programas…

Carlos: O salto para fazer faculdade (Produção Fonográfica) veio dessa dificuldade de mexer sozinha?

Marina: Tem, com certeza. Mas até o curso, levou um pouco de tempo. Esse contato com as pessoas da internet foi muito importante pro meu repertório e para minha vida de musicista na cidade. Porque as pessoas que eu conheço hoje foram por conta do Myspace. Antes de entrar na Team.Radio, eu os ouvia no Myspace, e quando conheci Thiago Gadelha na internet, que ele me ouviu cantando em algum lugar, um vídeo, acho. Ele me chamou pra participar de uma banda em que ia estar um cara da Team.Radio, que era Roberto Kramer. E eu enlouqueci, porque ia estar tocando com uma banda que eu gostava muito. E que eu não fazia ideia de onde poderia encontrá-lo pela cidade pra falar de música. Nesse período ele me chamou pra entrar na banda e depois fui cursar Produção Fonográfica, mas não foi só a questão tecnológica que me fez estudar, porque eu já tinha uns dois anos de banda, e me interessava muito também  a parte de produção executiva, de como poderíamos fazer a banda andar. E os meus estudos, até agora, focam mais nisso, de escoamento da produção e história da música.

Neilton: No meu caso… Eu sou caçula de quatro irmãos. Meu pai ele era boêmio. E levava muitos vinis pra casa. Elvis, trilha sonora de novela, samba enredo; e ele tinha muita moral na cidade, trabalhava há muito tempo no Centro, e os caras liberavam o disco pra ele levar pra casa. “Se tu gostar tu fica e paga e devolve o resto”. Eu tinha acesso a muita coisa. Lembro quando chegou a primeira vez com uma coletânea de Elvis, botou na vitrola, eu disse: “O que é que é isso?!”. Porque até então era só umas coisinhas meio bregas, e quando chegou com guitarra, meio rockabilly… Quando criança, a gente fazia tambor de lata, de brincadeira. E comecei a pensar a fazer violão…

Carlos: Com quantos anos?

Neilton: Acho que uns 8 anos… Isso está atrelado não só a parte musical, mas a visual. Porque a gente gostava muito de Hanna-Barbera. Eu não tinha televisão em casa. A gente via no vizinho e voltava pra casa desenhando no papel de pão. E queria fazer banda. Era minha irmã tocando os tambores e cantando e eu e meu irmão improvisando o violão com a parte de traz do armário de mãe. (risos) Se você conversar com meus irmãos eles não vão nem lembrar porque marcou mais a mim. A gente chegou a fazer uma música, “A mulher gigante”, que minha irmã escreveu. Só que a gente não tem ninguém na família que tem uma vertente artística. E nenhum dos meus irmãos seguiu. Eu segui por tabela, fui atropelando. Quando vê caí no Devotos. O meu contato com música foi de criança que não tinha brinquedo. A tecnologia, a parte de gravação… Meu irmão doidinho, que é o mais velho… O meu pai comprava aqueles gravadores mono… De Jornalista, de fita cassete… E aí enlouqueceu… Quando o pai apertou o rec-play, botou pra gravar… Primeiro a gente começou a rir da gente mesmo. Escutando a voz da minha mãe, da minha vó, que são do interior, de Timbaúba. Não sei a descendência, mas elas tinham traços indígenas. E meu pai urbano. Vê o choque. O meu pai mostrando a cidade e mãe relutante… Era quase aquela coisa de índio vendo o espelho. E eu e meu irmão começamos a inventar coisas. Não chegamos a gravar o que estávamos fazendo. Não atinamos pra isso. Ficava vendo como a fita funcionava, aí quebrava. Altos choques elétricos. Desmontando rádio pra ver como funcionava. O contato foi tão lúdico, a parte sensível da música e da tecnologia não teve nenhuma intenção de querer aprender como funcionava isso. Quando o tempo foi passando e o envolvimento com banda. A minha primeira banda foi cantando. Pense na desgraceira. E a segunda foi tocando guitarra sem saber tocar. No mesmo esquema de Adriano. E era uma banda querendo fazer trash metal, vê só, como um guitarrista que não sabia tocar. (risos). Chamava Túmulo. A gente ainda conseguiu fazes uns shows. Mas como a gente não sabia tocar, o baterista tentando aprender… Virou uma banda de trash core. Ele não sabia usar o bumbo. Imagina. E o vocalista que não sabia tocar. Essa banda foi meu ponto de partida com a guitarra. Quando eu comprei a minha primeira guitarra… Imagina, um cara que não sabia tocar violão, compra a primeira guitarra, e o que ele faz? Desmontar a guitarra. Eu queria saber como ela funcionava. A minha ligação com a parte funcional das coisas era muito maior do que saber pôr um acorde. Meu pai me viu e perguntou: “O que é que tu fez?”. Eu estava com a guitarra toda desmontada. Aí depois montei. Esse foi meu aprendizado. Tinha uma revista chamada Nova Eletrônica, que era editada pelo Claudio César Dias Baptista. Eu tenho a número 1. Hoje com a internet você é amigo do cara no Facebook. (risos) Mas naquela época ter uma revista que tinha eletrônica e ele mostrando como funcionava um PA… Em 1984.

Mudanças tecnológicas

Carlos: Como vocês viveram essas mudanças tecnológicas mais recentes, se foi de forma mais gradual, com os novos equipamentos para gravação, a proliferação de estúdios caseiros e a presença da internet para a música. A não dependência de estúdios ou gravadoras, o lo-fi como uma estética…

Marina: Eu comecei já nisso, não houve transição. A internet foi muito responsável pela formação do meu repertório. E de amigos na internet, que faziam gravações e me mandavam pelo Messenger. Mas depois que coloquei as primeiras músicas no Myspace é que comecei a falar com músicos que estavam se aprofundando nesses estúdios mesmo. Todo mundo querendo colocar o melhor equipamento no home studio. Porque em 2008 ele já era uma realidade. Tinha gente com equipamentos razoáveis. E falando com esse pessoal e procurando saber o que eu tinha que fazer para o meu som soar mais profissional. Eu não tinha condições financeiras pra isso. Mas eu tinha um tio que queria me dar uma bateria e quando me viu tentando entrar mais nesse terreno tecnológico ele montou um estúdio pra mim. Compramos um microfone condensador, uma placa de áudio. Aí dentro de casa eu já conseguia fazer um som muito mais próximo da qualidade profissional.

Carlos: Essa qualidade profissional é um valor em si que você buscava?

Marina: Era um valor…

Carlos: Ou pensava o lo-fi como um outro valor?

Marina: Eu pensava também, mas existia também a boa qualidade dentro do lo-fi, e eu buscava aquilo. É muito mais do que isso. Eu era muita ingênua. Achava que ter onde gravar e o microfone – que era muito bom – mas exigia um estudo mais aprofundado. Eu não sabia nada de mixagem e aí vim descobrir depois que precisava entender. Porque as coisas simplesmente não soavam certas. Eu mandava pras pessoas e elas diziam que gostavam, mas falavam: “Eu não entendo porque você me mandou em 8-bits”. (risos). Eu não entendia nada.

Carlos: Você se sentia num contraponto em relação aos outros músicos?

Marina: Sim. Porque sentia muita dificuldade em lidar com a tecnologia, que sinto até hoje. Eu queria um registro da voz e do violão, mas não consegui ultrapassar isso e usufruir de todo o resto. Eu não tinha noção de MIDI. As minhas produções ficavam muito limitadas por conta disso.

Carlos: E o momento de fazer parte de bandas? Tem a ver com essas limitações?

Marina: Na verdade, ser chamada para uma banda foi uma surpresa e um choque. Primeiro, porque eu estava tentando me aperfeiçoar em violão e voz, em fazer shows acústicos. Não conseguia pensar muito além disso. E Roberto Kramer me chamou para a Team.Radio, que tinha influências que não eram as minhas. Eu fui tocar sintetizador. Eu nem tinha mais um teclado. E é uma banda que trabalha tecnologia bem fortemente. Desde sempre. As principais influências eram shoegaze e dream pop, eu nunca tinha ouvido boa parte daquelas coisas. E foi um choque porque era um teclado, mas não como eu costumava tocar. O que eu tocava era simulando um piano, simulando um orgânico mesmo. E na banda eu tive que tentar entender um pouco mais dos sintetizadores, como aquilo funcionava. Lembro que cinco meses depois a gente tinha que gravar um EP, e eu tinha tão pouco domínio daquilo tudo que eu nem conseguia fazer muitos arranjos no sintetizador. Os meninos tinham que me ajudar porque realmente eu não conhecia. Talvez perceber o quanto eu não conhecia nesse período, que o curso da AESO, a parte técnica também tenha me interessado tanto. Para suprir essa necessidade. E que foi muito bom nesse sentido. Apesar de ainda ter dificuldade com tecnologia. Porque eu me sinto velha. Eu não tenho paciência de sentar na frente do computador e botar o teclado MIDI porque eu quero pegar o instrumento e poder ter um contato íntimo com o instrumento. Mas eu estou superando isso.

Carlos: E para vocês, como foi viver essa transição?

Adriano: Pra gente foi complicado. Porque a gente fazia parte da cena punk. Esse negócio de estúdio massa ou gravadora era outra realidade e ao mesmo tempo não interessava. A estética da história era mais registrar de qualquer jeito, ao vivo…

Carlos: Mas vocês queriam montar o próprio estúdio?

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“Esse negócio de estúdio massa ou gravadora era outra realidade e ao mesmo tempo não interessava. A estética da história era mais registrar de qualquer jeito, ao vivo…” – Adriano Leão. Foto: Camila van der Linden.

Adriano: Isso tinha. Porque a gente queria um lugar pra ensaiar e pra registrar. Mas não tinha a corrida por uma tecnologia, de um gravador foda. O estúdio de Lee, que foi o precursor de tudo isso…

Neilton: Lee era o cara que antes de mim, Adriano e Gilson, da Altovolts, ele poderia ser a referência do que a Altovolts é hoje, porque ele começou fazendo um estúdio, e era ousado nesse sentido. Ele não entendia de acústica, de eletrônica. Ele simplesmente fazia. O estúdio que Adriano está falando não tinha amplificador para guitarra nem pra baixo. Era uma mesa de som e a gente achava que era assim. E ele tratou a sala, colocou os caixas embutidos no teto. E fez uma micro-sala onde estava tudo ligado. Só que o mais doido que isso possa ser, e o mais tosco que possa soar, era do caralho. Era barato e… Um monte de gente tomando vinho, tocando violão e no estúdio de Lee.

Adriano: Para a cidade toda foi importante o estúdio. Todas as bandas de rock passaram por lá, independente se era zona sul. De todo lugar ia pra lá. Bandas de metal, de rock, punk. Lá era onde todo mundo se encontrava. Eu lembro que Decomposed God, a banda de metal mais importante daqui de Pernambuco, os caras começaram lá. Eu ainda participei da primeira formação dos caras.

Neilton: Lee começou a projetar o “Ego 2” – “Ego” era o nome do estúdio. O 2 era a coisa mais louca do mundo. Eu que terminei até dizendo pra ele: “Não faz, não faz”. (risos) Porque ele fez o estúdio todo em pedra. A casa dele era atrás da casa da mãe dele. No Alto José do Pinho, e tinha um morro caindo por cima da casa. E ele que fez o muro de arrimo, do jeito dele. Ele aproveitou as pedras do muro de arrimo e fez “a caverna”. Que era literalmente uma caverna. Ele fez primeiro um estúdio sobre o piso e depois foi dormir e acordou querendo fazer um subterrâneo. E começou a criar máquinas pra cavar o chão. Coisas de Júlio Verne. Ele cavou a ponto de encontrar água e ter que tampar a nascente. Ele disse: “Neilton, eu peguei a pilastra principal da casa por baixo”. Eu disse: “Faça não, meu irmão, você vai morrer”. Mas depois ele acabou se afastando. Essas iniciativas da gente, Adriano, Gilson, eu… Lee era pra ser o mentor da gente. Eu fui paralelo a ele. Naturalmente ele era uma escola, mas como era mais arisco a turma acabava vindo mais a mim.

 Construtores, inventores

Carlos: Quando vocês começaram a produzir os próprios equipamentos com a Altovolts e também quando outros músicos quiseram também ter as coisas que vocês produziam?

Neilton: A gente fazia coisas em paralelo e Gilson estava se enturmando com a gente. Eu fazia pedais, mexi nos amps com meu irmão. Como qualquer adolescente que está vendo tecnologia, em que o primeiro acesso já é com computador, a gente não tinha acesso. Mas tivemos acesso aos primórdios da gravação. Os gravadores de fita cassette.

Marina: A minha geração, é incrível como é difícil de compreender as questões analógicas. Todos os equipamentos que vieram antes. Isso que vocês fazem de resgate é o que ajuda pra gente, de ter acesso a esse tipo de informação. Porque todo mundo acha que é só o computador mesmo.

Neilton: A função maior do Altovolts era essa. O subtítulo da gente é “grupo de pesquisa”.

Adriano: A gente se juntou pra pesquisar sobre tecnologia.

Neilton: Quando a gente se juntou pra pensar em design, porque a gente sempre foi desleixado.  A gente ia ao supermercado e comprava latinha de sardinha com pão, aí abria a sardinha e fica olhando pra latinha: “Pô, ali daria um pedal dentro, né?” (risos). Sem falsa modéstia, os primeiros a fazer essa loucura de colocar um circuito elétrico dentro da lata de sardinha foi a gente.

Adriano: A gente ia pro mercado e ficava olhando as latas. (risos) Lembro que a gente comprou uma de doce… Doce ruim da porra…

Neilton: Lembro que isso estava no set do que a gente tocava. A gente foi tocar no Sesc Pompeia. Era Devotos e convidados. Tava Pitty, Thunderbird, um monte de gente. E o meu pedal de distorção era o de sardinha. Thunderbird chegou, olhou e começou a rir. “Uma lata de sardinha?!”. Eu viajava com um amplificador que a gente tinha modificado. Era um “thundersauro” e um “tremendão” que Gilson achou no ferro velho. Ele comprou por oitenta reais os dois. A gente levou pra oficina e desmontou. E eu fiz um pra mim. Até então não existia Altovolts.

Adriano: Não tinha. A gente se encontrava pra pesquisar.

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“A parte de design é muito forte da gente. Todo o projeto, a leitura visual dele, é tão igual quanto o som que ele é gerado. Não tem como desmembrar a parte visual do som dele.” – Neilton Carvalho. Foto: Camila van der Linden.

Neilton: Eu comprei um webcam bem tosqueira que batia foto e comecei a registrar o processo. Incluindo que o gabinete eu tinha tirado da porta do meu armário. Tinha três portas no armário… “Pra que três portas?”. Eu fui e tirei uma (risos). Fiz todo o processo. Quando os caras foram ver já estava funcionando. Aí foi o ponto de partida da Altovolts, de 2005 pra 2006. Com esse amplificador eu saí viajando o Brasil inteiro. Só que as pessoas vinham e não tinha nome ainda. E perguntavam: “Que porra é isso?”. Mas não tinha nome. Daí a gente pensou que era possível fazer produtos também. Aí começaram a sair os amplificadores e pedais só pra gente, que levava pro palco. Até que um dia Carlos Vila Nova, de uma banda cover dos Beatles, a Revolution, ouviu falar que tinha uns loucos em Casa Amarela fazendo amplificadores. E ele que tinha comprado uma porrada de amplificadores e guitarras pelo mundo, caríssimas, foi ver quem eram esses doidos. Chegou lá, estava a gente, três maloqueiros no chão batido, nem tinha piso. Ele chegou e falou: “Vocês fazem um amplificador pra mim?”. “Sim!”. Ele passou o primeiro cheque pra gente. A primeira venda, foi quando nasceu o Altovolts. O amplificador Pure V. A princípio, a gente tinha essa coisa de fazer a leitura, o painel, em inglês. “Pure” de puro e “V” de Vila, de válvula também. Fizemos o acabamento todo bonitinho. Foi o primeiro ano a sair alguma venda. Aí começou a cair a ficha. Com altas discussões entre a gente. Por que em inglês? Por que não ser em português? Daí pensamos: “Dane-se o inglês”. A gente fala em português. Queremos pôr os pitocos ali o que a gente saiba ler. A informação é massa vinda de fora, mas porque não colocar de acordo com o projeto? A parte de design é muito forte da gente. Todo o projeto, a leitura visual dele, é tão igual quanto o som que ele é gerado. Não tem como desmembrar a parte visual do som dele. Vê que loucura. Um amplificador como o “maltrapilho”, o nome já diz: é tosqueira. Os nomes no lugar de ser “ganho”, de distorção, ou “distortion”, a gente botou “tosco”, pra deixar mais ou menos tosco. O grave, no lugar de ser “grave”, a gente colocou “gordo”. O “médio”, que é um cabra indeciso, a gente deixou com um xiszinho. O agudo é “magro”, mais ou menos magro. O volume é “barulho”. Mais ou menos barulho. É uma linguagem nossa. Um músico amigo, já falecido, Lito Viana, chegou pra gente, isso pré-Altovolts, e disse: “Vocês fazem parte de um meio tão rico e tão verdadeiro e autoral que como músico, você pode criar uma escala, uma harmonia que ao desenvolvê-la, a gente diga: “Isso é Alto José do Pinho!”. Essa linguagem visual e sonora dos amps tem tudo a ver com isso. Uma filosofia interna que é o berço dessa pesquisa do Altovolts.

Marina: Não pra fazer parte do mercado, né?

Adriano: Não. Totalmente ao contrário.

Neilton: Nós recebemos muitas críticas por conta disso. Um amigo chegou pra gente puto: “Porra, o que esses caras querem? Fazer amplificador pros amigos?”. Porque a gente não tinha uma demanda e nem queria entrar no mercado. Aí eu olhei assim e disse que queria eu ter um amigo que fizesse um amplificador como esse. São poucos que tem isso. As pessoas não querem ter as coisas, elas querem ter as coisas que as pessoas têm. A gente, não. Queremos fazer as coisas que a gente se identifica. Se vai ser pra um amigo ou não…  A gente atende a músicos profissionais como Siba ou Fred Andrade. São músicos que já experimentaram uma porrada de amplificadores e optam em ter o da gente. E o cara já sabe que é o seu amp quando dá um acorde. Pela característica sonora. Isso já é massa demais. Ao mesmo tempo, deixa a gente preso a ser uma fábrica de amplificadores. Isso não é legal pra gente.

Publicado originalmente na edição #11 da revista Outros Críticos.

Foto: Camila van der Linden

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Outros Críticos Escrito por:

Desde 2008 atuam desenvolvendo projetos de crítica cultural na internet e em Pernambuco. Produziram livros e publicações, como a revista Outros Críticos, além de coletâneas musicais e debates, como os do festival Outros Críticos Convidam.

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