curadoria em literatura: Possibilidades Curativas

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Landscape Under a Stormy Sky, de Van Gogh


“Ser um bom feiticeiro significa
estar desabrigado no meio da tempestade.
É viver a vida em todas as suas fases.
Quer dizer ser um louco de vez em quando.
Isso também é sagrado.”
(CorzoCojo, feiticeiro sioux da tribo lakota)

Eis uma excelente imagem capaz de funcionar como gatilho para pensarmos a figura de um curador: um desabrigado no meio da tempestade. Quando Carlos Gomes, editor desta publicação, me convidou para escrever sobre curadoria e literatura, meu primeiro pensamento foi: não vou aceitar, pois minhas incursões como editor são incipientes, nunca fui curador de nenhum evento literário. A sensação era de estar desabrigado no meio da tempestade.

Segundo pensamento: aceitarei o pedido do texto, irei conversar com umas figuras que lidam com o tema, que já realizaram trabalhos na área. Pensei em mandar umas perguntas para os escritores Wellington de Melo (um dos idealizadores da Free Porto – Festa Literária de Recife, idealizador do Festival Internacional de Poesia do Recife, entre outros muitos lances) e Cristhiano Aguiar (editor das revistas Eita!, Crispim, curador do Festival Recifense de Literatura, organizador de antologias e outros fluxos). Não fiz isto. Terceiro pensamento: irei atravessar esta tempestade sozinho. Eis uma decisão de curadoria. Pensei, afinal, assumir os riscos de seguir um pouco louco com algumas imagens que despertaram após o convite de Carlos (também uma decisão de curadoria). E aqui vamos nós.

Entre vários registros para “curador” encontrados no dicionário, chamou-me a atenção, além das reverberações de mago, feiticeiro, aquele que lida com a cura, um uso regional: tratador de cavalos. Considerei muito pertinente pensar na figura do curador como um tratador de cavalos desabrigado no meio da tempestade. Diante do enorme fluxo de criações literárias, ante todos os mares de ficções verbais antigas e contemporâneas, encontrar sentidos possíveis e lúcidos capazes de estabelecer um diálogo fecundo com o público não me parece tarefa menos sensível e exigente que cuidar dos corcéis, cuidando de si ainda no seio da borrasca. Um curador de literatura me parece um tradutor de sentidos. Atua num lugar do campo para colocar em contato as criações artísticas, as reflexões críticas e a apreciação pública.

“O curador mobiliza, favorece a circulação, é ponte. A partir de sua sensibilidade e técnica, faz os recortes de uma obra, concebe diálogos e tece fios de Ariadne para os labirintos da compreensão […]”

O escritor, desculpem-me o óbvio, escreve – é isto que podemos esperar dele. O curador mobiliza, favorece a circulação, é ponte. A partir de sua sensibilidade e técnica, faz os recortes de uma obra, concebe diálogos e tece fios de Ariadne para os labirintos da compreensão, articula várias obras e autores num evento, numa publicação: propõe, organiza, ordena, associa, classifica, disponibiliza, entre outras coisas. E fazer isto é atribuir valor, interpretar o mundo, lançar um olhar, realizar apontamentos, estimular a fertilidade das trocas de ideias. E assim fiquei pensando no curador como uma espécie de demiurgo.

O curador/demiurgo é o sujeito que dá forma a uma matéria desorganizada, instiga afinidades eletivas ao aproximar autores de diferentes extrações num festival, a partir da semelhança e da diferença, através de dispositivos (um conceito, uma palavra, uma imagem, um verso, etc.) agrupa vários mundos míticos próprios de cada autor para engendrar outro mundo que ultrapassa a soma das partes para ter significado próprio, um dedo que aponta para a lua e serve como estrela de referência para crítica e público. A curadoria se torna, enfim, uma espécie de obra ela também, ou pelo menos se traduz como arte (técnica e sentimento).

Insisto na emoção, na potência do sentimento. Acredito que curadoria vai além da mera classificação mecânica, da ordenação da lógica fria. É um tipo de encontro do guarda-chuva com a máquina de costura na mesa de cirurgia. Mas o desregramento dos sentidos que enxergo na atividade da curadoria literária não se rende ao exercício do acaso pelo acaso, no embaralhar do arbitrário com o arbitrário. Se a vivência íntima e profissional com as marés de ficções verbais pode ser confusa, dado seu caráter múltiplo, seu esqueleto inesgotável, o curador age como um ordenador do universo (não à toa esta é a expressão que os sumérios utilizavam para os organizadores de suas escrituras).

“Curadoria não é apenas a organização de obras, autores num dado suporte ou evento, mas a organização de um mundo, o esforço em busca de sentido.”

O curador age como o poeta cirenaico Calímaco, que empreendeu a tarefa de catalogar meio milhão de volumes da biblioteca de Alexandria, um prodígio que ultrapassa a questão das cifras ao exigir a concepção de uma ordem literária que deveria de algum modo desdobrar a ordem mais ampla do próprio universo. Curadoria não é apenas a organização de obras, autores num dado suporte ou evento, mas a organização de um mundo, o esforço em busca de sentido. A este respeito, será valioso recorrermos a uma passagem do ensaio “Ovos de dragão e plumas de fênix, ou uma defesa do desejo”, de Alberto Manguel, presente no livro “No bosque do espelho”. Eis o trecho:

“Somos criaturas ordeiras. Desconfiamos do acaso. As experiências chegam até nós sem um sistema reconhecível, sem motivo inteligível, com generosidade cega e descuidada. Contudo, diante da própria evidência do contrário, acreditamos na lei e na ordem. Ansiosos, guardamos tudo em arquivos, compartimentos, seções distintas; febrilmente distribuímos, classificamos, rotulamos. Sabemos que esta coisa que chamamos mundo não tem um início com sentido ou um fim compreensível, nenhum propósito perceptível, nenhum método em sua loucura. Mas insistimos: ele deve fazer sentido, deve significar algo” (MANGUEL: 2000, 164).

O curador é um destes sujeitos que insistem. E sua insistência oferta ao público o fruto de um olhar que se exercita na compreensão do mundo a partir dos desdobramentos de outros olhares que também se debruçaram sobre a compreensão do mundo; sua insistência pode possibilitar a aglutinação de pessoas em torno de questões antes despercebidas ou apenas sutilmente intuídas; sua insistência é capaz de fornecer sentidos, ainda que provisórios, nítidos o suficiente para manter a chama da pesquisa acesa, manter a vontade de descoberta e invenções com gosto renovado.

Imagino o exercício da curadoria literária como a loucura sagrada, ouvindo as respirações de obras e obras, atenta aos assobios dos mundos míticos inscritos pelos artistas, mundos prenhes de capacidade de articulação rizomática, de estabelecimento de fluxos, câmbios significativos, trocas férteis com o público e a leitura crítica. O curador é um tipo de psicopompo, de condutor e mediador de universos e aí reside, acredito, uma possibilidade terapêutica da arte.

Se o psicopompo é o sujeito capaz de transitar entre polaridades, como a morte e a vida, a noite e o dia, guiando a alma dos mortos e fornecendo instruções e ajudando na formação de percepções sobre a existência, o curador literário é um mediador que circula entre artistas, criações, crítica e público, fomentando a permanência e a pertinência da conversa, do intercâmbio, da troca. A mediação estabelecida pela figura do curador é o empenho em perceber, em reconhecer desenhos nas nuvens, favorecendo a possibilidade da visão para outras pessoas, mas possibilitando também visões distintas. Ao agir na busca de sentidos significativos para a compreensão de nosso tempo, partilhando-os, o curador, depois da intimidade estabelecida com cavalos selvagens e da construção de abrigos da tempestade, luta contra o sequestro dos sonhos. E isto não é pouco. É um abraço numa pessoa: isto é abraçar o mundo, estrela da cura.

por José Juva.

Publicada originalmente na revista pq? – ed. 05

Arte de Capa: Landscape in stormy weather (1885), de Vincent Van Gogh.

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josé juva Escrito por:

José Juva (1984) é um poeta brasileiro. Publicou os livros “Deixe a visão chegar – a poética xamânica de Roberto Piva”, “vupa”, “Breve Breu – escritos sobre cinema e literatura” e "Watsu".

6 Comentários

  1. 30 de julho de 2014
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    Simplesmente sensacional o texto sobre curadoria literária,gostaria de informa que THE WRITER HOUSE ,a casa do escritor em Campos do Jordão tem em seu curador o mesmo princípio que nortea o espírito de José Juva.UNI-VOS TODOS!

  2. 28 de outubro de 2014
    Responder

    Muito bom todos os comentários sobre a estância de Campos do Jordão, entretanto,a que mais gostei foi a dica para aqueles que gostam de cultura sobre a The Writer’s House ,a casa do escritor.Realmente é algo inovador em termos de Brasil e a escolha de Campos do Jordão para sediar este projeto inspirado num conceito igual americano e realmente a região está localizada entre diversas cidades literárias como Taubaté ,a capital da literatura infantil e a cidade de Monteiro Lobato.Também estive na Hub City -USA ,e pude ver o projeto literário da cidade Spartanburg, Carolina do Sul . Quando puder irei me inscrever no projeto brasileiro da The Writer’s House ,a casa do escritor em Campos do Jordão,e espero que me aceitem como escritora residente.

  3. 22 de julho de 2016
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    É FUNDAMENTAL TER UM CURADOR PRA UMA EXPOSIÇÃO LITERÁRIA PORQUE ELE É A PONTE ENTRE O EVENTO E VOCÊ .

  4. Lola Marinho
    15 de setembro de 2017
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    Apaixonei-me por esse texto! haha

  5. Edmira
    29 de junho de 2021
    Responder

    Reflexão muito interessante sobre curadoria em Literatura.

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