
“Não tem mais cura a febre da curadoria. O curador tornou-se uma das obsessões do nosso tempo”. Essa é a opinião do jornalista e pesquisador Eduardo Veras, na resenha crítica de Sobre o ofício do curador, de Alexandre Dias Ramos. Basicamente, pode-se encontrar a figura do curador em diversas atividades desenvolvidas hoje em dia – desde o coordenador, que passou a ser o “curador do curso”, o editor, que virou o “curador de conteúdo”, até o organizador de exposições, o bem famigerado “curador de arte”.
Pensar as linguagens artísticas e o seu lugar na sociedade não é nem nunca foi tarefa fácil. Legitimá-la, então, está longe de andar separada da palavra ‘complexo’. Por essa razão, parece ser impossível viver em um mundo sem o qual o curador não esteja presente, principalmente numa área como a música e justamente pela abertura que temos atualmente, tanto nas ferramentas de produção quanto em seu escoamento e difusão, regidas pelo fenômeno da internet. Mas então, quem seria essa pessoa responsável pela catalogação e discernimento de quem entra ou não na grade de determinado festival de música?
“Creio que o curador deva ser alguém que tenha bastante conhecimento em sua área, sobre quem está ativo, quem criou visibilidade e tem representatividade no seu mercado. Cada área tem suas peculiaridades, e na música é muito diferente das artes plásticas, por exemplo. Música requer um recorte de compreender quais artistas, além dessas características, conseguem se sair muito bem ao vivo”, comenta o produtor e músico Iuri Freiberger, que esteve à frente, entre 2006 e 2010, da curadoria de um dos maiores festivais independentes do país, o Gig Rock.
Nesse período, lembra, fazia um levantamento de artistas locais e de outros estados, que estavam com o trabalho vivo no momento do festival, e propunha a eles a sua participação – com uma ajuda de custo em cada nível (iniciante, artista médio e consagrado), sempre dentro do recorte de rock e indie nacionais. Para ele, o ponto principal de se pensar é o que a curadoria de um festival pode fazer pelo seu público. “Ela (a curadoria) deve apresentar uma mostra consciente, para quem conhece e tem interesse na área. É um tipo de evento que se torna referencial para o mercado, visto que a música quase não tem mais palcos no país, a não ser em eventos populares de grande porte”, afirma.
Garimpar, classificar, escolher. Estar atento. Importante entender que para além da responsabilidade de montar essa mera vitrine mercadológica, o papel dos curadores de festivais de música deve levar em consideração o propósito de existência destes, como lembra o produtor Leo Antunes, a respeito da coordenadoria que desenvolve no Festival Pernambuco Nação Cultural (FPNC), um dos maiores festivais financiados com dinheiro público no país. “Para mim, a tarefa de coordenar o festival é um grande híbrido entre o operacional, que envolve áreas como planejamento, logística, orçamento e comunicação, e o conceitual”, diz. O FPNC é uma das maiores marcas-conceito do governo pernambucano nos últimos anos – em que pese a questão “conceito”, pois existem diversos ‘ranços’ entre a classe artística do estado e o festival por motivos como o atraso no pagamento de cachês, que está em aberto desde 2010, causa esta levantada por artistas como Nação Zumbi e China.

Logo, o processo de curadoria de um festival que abrange todo o estado, em suas diversas linguagens artísticas, não poderia deixar de ser complexo. O FPNC acontece durante todo o ano, em forma de festivais regionais – como o Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) – e geralmente é planejado com três meses de antecedência, quando o orçamento é definido. “A curadoria é feita de maneira compartilhada. A Secretaria de Cultura faz a organização estratégica e a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) executa a coordenadoria. Não é um festival de uma cabeça só, é um coletivo, que também tem o dever público para com o público, artistas, prefeituras e as demandas do próprio governo”, resume Antunes.
O resultado deste organismo vivo, criado para alcançar o objetivo democrático de inserir em grandes grades de programação manifestações culturais que nem sempre possuem espaço para tal, é sempre o melhor em sua intenção, pelo simples fato de existir e de explorar diversas cidades das macrorregiões de Pernambuco. “O objetivo é fazer com que a produção de Pernambuco circule em Pernambuco, e diminuir essa disparidade de só ter espaço no eixo Rio-São Paulo”, afirma. Porém, sem dúvidas é um festival cheio de aberturas recorrentes, típicas de qualquer produto feito e pensado para o grande público e financiados pelo poder público. Muitas vezes as pessoas não se identificam com as atrações. Noutras, são apostas mais que acertadas em diálogos favorecidos pela troca conceitual do festival. Em uma de suas edições, realizada em São José do Belmonte, no Sertão Central, uma dupla de aboiadores subiu espontaneamente no palco nos intervalos de cada show e fez suas apresentações. No ano seguinte, a coordenadoria de literatura do festival foi acionada e este momento foi planejado. Da coordenadoria passou para a curadoria, direção de palco e, enfim, a execução. “O processo de construção dessa grade não pode ser descuidado. A função foi pensar nesse todo, em como executar uma atração literária nos intervalos de um show musical, sem que a mudança de palco dos artistas fosse prejudicada”.
O grande desafio então, no tocante à curadoria do FPNC, é achar vínculos, ou coser bem as atrações da noite, tanto para criar uma grade coerente com o público em questão quanto para surpreendê-lo. “A lógica de curadoria é criada a partir do momento em que juntamos dois públicos distintos. A forma de público do Nação é diferente, pensa-se principalmente na palavra ‘diálogo’”, comenta Leo.
Como o pensador Erick Hobsbawn chegou a dizer no Festival de Música de Salzburgo em 2006, “Os festivais se multiplicam como coelhos”. Mas esses eventos têm também um grande objetivo: obter lucro. Ou seja, são necessários artistas que deem uma resposta de venda de ingressos. Em festivais que são públicos, organizados por governos, a pressão política pode ocorrer em alguns casos. Já os festivais que são privados, mas que possuem patrocínios públicos pelas leis de incentivo, raramente têm problemas políticos, e normalmente são desenvolvidos e curados pelos próprios produtores.

No Recife, o Rec-Beat, um dos festivais de música independente mais populares do país, é uma das propostas de maior longevidade nesse sentido. Inserido na grade oficial de programação do carnaval multicultural da cidade, ele traz atrações locais e internacionais gratuitamente, pensadas ao longo de todo um ano e casadas com o sucesso de público já esperado para o evento. “Faço muitas viagens, visito festivais, feiras e mercados de música e, é claro, ouço tudo o que posso, desde lançamentos e também coisas antigas, históricas. Procuro sempre estabelecer uma ligação entre o passado e o futuro”, comenta Antonio Gutierrez (Gutie), idealizador, produtor e curador do festival. “Todos os acertos e erros são de minha responsabilidade. Tenho bastante convicção do que busco para o Rec-Beat, e isso implica em estar sempre atento à produção musical não só de Pernambuco, mas também de outras regiões do Brasil e do mundo”.
A existência de festivais, então, passa a assumir um papel de legitimação do trabalho artístico – ou quem não gosta de ver o seu trabalho sendo escolhido e apresentado para um grande público? “Acho que os festivais, principalmente os festivais independentes, são o melhor veículo para levar a nova música para as pessoas. O contato ao vivo entre banda e público é tudo, nada substitui isso. Por mais que você tenha tudo disponível na internet, fica faltando um filtro. E eu acho que os festivais funcionam como um filtro para o público. Nesse ponto, eles têm uma grande responsabilidade, que é a de abrir janelas que surpreendam as pessoas, que emocionem”, opina Gutierrez.
Os músicos JuveNil Silva e Ju Orange, que atuam no cenário musical recifense desde 2001, opinam sobre a curadoria nos festivais de música. Ele já passou pelas bandas The Kaveman (projeto com Jean Nicholas), Canivetes e, atualmente, toca na Dunas do Barato e em seu projeto solo homônimo. Ela já tocou nas bandas Physalia, Red Chords, Electrozion e Ampsilina; atualmente está à frente da Voyeur.
Qual a sua opinião, enquanto músico, do processo de curadoria nos festivais de música aqui no Recife?
JuveNil Silva: Brodagem + Soma de pontos + propostas acessíveis + canal legal + consideração inconsciente + culpa + sorte/azar + vozes superiores = A certeza dos peixes e o mistério para os leigos. Eu prefiro fazer o meu sem pensar muito nesse assunto ou esperar algo disso.
Ju Orange: Sempre que sei que vai ter alguma curadoria pra festival eu tento preparar o melhor material que puder. E é dessa forma que a gente participou de alguns festivais, nunca consegui entrar em nenhuma panela feito a galera fala muito aqui em Recife.
O que você acha do processo de seleção?
JuveNil Silva: Em escolhas de bandas ou projetos para tocar em lugares como Grandes Festivais, eventos da prefeitura ou seleções e aprovações de projeto, acredito que sejam diferentes. Cada um tem ou nem tem cara. Os grandes festivais vão mais pelo hype, moda, pelo cult, seja do momento ou das antigas, mas de acordo com os perfis deles. Eu acho ok, façam o que quiserem, vai quem quer.
Ju Orange: Todo mundo sabe que pra entrar em festival por curadoria você precisa estar bem ativo, tocando, gravando, que isso que dá uma visibilidade maior pra banda, e aí com um material bom e bem feito tem mais chance ainda. Claro que tem festivais que já gastei uma grana preparando material pra mandar e quando sai o resultado você descobre que já tinham muitas bandas que antes de enviar já estavam confirmadas. Acho que em todo canto tem isso.
Como você vê o papel do curador nos festivais de música?
JuveNil Silva: Tem que ser o ligado, né?! O canalizado, o garimpeiro… E acima de tudo, no mínimo, o cara tem que sacar, tem que entender muito de música! É como um cara lá no sebo do INSS passando horas e horas se sujando todo de poeira e bolor atrás das pedradas, levando uns só pra conhecer, arriscando outros, achando agulha no palheiro.
Ju Orange: Se todo mundo desse uma parada pra ouvir todas as bandas, mesmo se não for de amigo, o mercado ia andar muito mais. É muito mais prazeroso pra banda quando você é selecionado de verdade, por mérito, como foi no caso da Voyeur na Feira da Música Brasil, em Belo Horizonte. Tem muita coisa boa, muita gente fazendo e muita gente disposto a entrar no mercado. É importante dar atenção a isso.
por Raquel Monteath.
Publicada originalmente na revista pq? – ed. 05
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