
Toda unanimidade é burra, já dizia o pernambucano Nelson Rodrigues. O dramaturgo, hoje já considerado como um dos mais importantes do teatro brasileiro, teve diversas obras vetadas por rigorosos censores até poderem chegar aos palcos. O que antes era regido pela moral e os bons costumes, agora passa a ser selecionado por outros critérios, como o interesse do público, logística e até orçamento. O trabalho realizado por grupos e companhias de artes cênicas passa pelo crivo dos curadores que selecionam montagens para festivais e apresentações Brasil afora.
Em Pernambuco, talvez seja o Janeiro de Grandes Espetáculos – Festival Internacional de Artes Cênicas de Pernambuco (JGE), que já acontece há 19 anos, a maior vitrine para o trabalho dessa classe artística. No estado de Pernambuco, profissionais de diversas esferas e segmentos das artes cênicas se empenham para conseguir o espaço que pode lhes garantir visibilidade e, consequentemente, maior reconhecimento.
Para Paulo de Castro, diretor da Associação Produtores Artes Cênicas de Pernambuco (APACEPE) e um dos produtores do JGE, a montagem da grade de programação do evento segue um processo democrático. “Reunimos todos os grupos participantes em reunião para selecionar os curadores. Normalmente, não vem todo mundo. A gente solicita os nomes indicados por cada grupo e tiramos os mais bem votados”, explica.
De acordo com o produtor, o JGE foca principalmente na classe artística, através de ações que abram o mercado de trabalho. “Teve espetáculo que não entrou na grade, que nem chegou a ser julgado por não ter currículo. E a gente considera, nós podemos julgar para eles entrarem”, conta. Paulo de Castro ainda afirma que a decisão final é tomada com base de interesse do público: “No Janeiro (de Grandes Espetáculos), às vezes, a gente adora um espetáculo, mas ele não possui perfil para o público. O público do festival é de A a Z. A gente tem que levar até Z e às vezes a gente não conhece. Então, a gente colocava a Trupe (do Barulho, grupo de comédia), e movimentava todo o mercado de trabalho em artes cênicas”, brinca.
Os espetáculos submetidos ao festival nem sempre acompanham a dinâmica da curadoria. Sejam eles conceituados ou não, tanto em âmbito nacional quanto internacional, se faz necessário compreender que antes de qualquer submissão, se eles estão dentro dos parâmetros preestabelecidos pelo perfil e regulamento do festival.
“Qual seria o verdadeiro papel de um curador quando a própria classe artística indica seus nomes?” – Ângelo Fábio
O ator Ângelo Fábio, também artista interdisciplinar e comunicador social, já submeteu sua obra à curadoria do festival e não foi contemplado. Ele afirma desconhecer “uma ação curatorial que justifique a não classificação” e que normalmente são “padrões estéticos preestabelecidos que levam à marginalização de uma obra”. Ângelo nos faz uma pergunta retórica, questionando “qual seria o verdadeiro papel de um curador quando a própria classe artística indica seus nomes?”, e defende “um processo curatorial de risco, onde o desconhecido seja o protagonista da história.”
É nessa perspectiva do novo que Fábio Pascoal, produtor do Festival de Teatro do Agreste (Feteag), que acontece desde 1981 na cidade de Caruaru, defende a curadoria do festival que visa “inovar e quebrar as perspectivas”. Ele vai ainda mais longe: “a maior intenção é provocar estranheza, propor novos olhares ao público”.

O grupo recifense Magiluth foi um dos grupos convidados para o festival agrestino e um dos que representam nas artes cênicas de Pernambuco esse contributo a novas visões artísticas. Somando nove anos de trajetória, criou o Trema! – Festival de Teatro de Grupo, que teve sua primeira edição em 2012. Pedro Vilela, gestor e diretor do grupo, levanta o questionamento do papel da curadoria institucionalizada, “focada no gosto pessoal do curador, na troca de favores e no mercado”, conforme considera. Ele também explicou o que os motivou a executar o projeto: “Percebíamos que inúmeros trabalhos que necessitavam circular para estimular as práticas artísticas não tinham espaço. A primeira edição do Trem não possuiu entraves curatoriais. Na verdade, mareamos grupos parceiros que possuíam circulações aprovadas e que desejavam trocar saberes em Recife e os convidamos!”, comentou entusiasmado.
“Tem um processo de curadoria aqui em Recife que acho estranhíssimo… o do Festival de Teatro de Recife, onde a prefeitura contrata curadores de São Paulo para fazer um festival aqui. Acho que está na hora de nós dizermos o que queremos ver e não alguém dizer o que devemos ver”, enfatiza Pedro. Mas afinal, o que o público, especificamente o público do Recife, quer ver? Segundo o gestor do grupo, o papel do artista não é atender ao público e sim propor novos olhares. “Numa sociedade onde a barbárie reina, devemos propor obras que sejam revolucionárias em sua essência, seja em conteúdo ou em forma”, conclui, alertando que o “a existência do Magiluth não está pautada no lucro ou no mercado, mas no discurso”.
Enquanto questionam-se os critérios de seleção de um processo curatorial, a definição pela própria curadoria ainda não é unânime. Se Pedro Vilela estranha a contratação de curadores paulistas, Samuel Santos, diretor do grupo O Poste Soluções Luminosas, vê com bons olhos inserção desses profissionais. “Isso tem ajudado bastante a conexão sul/sudeste/nordeste. Mesmo assim, acho que a dificuldade é essa: assistir as produções nordestinas sem receio de ser feliz. Acredito que não, até porque o Nordeste nunca foi uma região mais miserável em termos de produção, economia e criatividade”, comenta, e compara com a circulação que montagens de outros estados do eixo sul e sudeste que já detêm no circuito de festivais de artes cênicas no Brasil.
Com a montagem Cordel do Amor sem Fim, o grupo O Poste Soluções Luminosas foi convidado para 14 festivais, entre competitivos e mostras nacionais e internacionais. Além de Pernambuco, chegou a circular no Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais, Bahia, Alagoas e Sergipe. De acordo com Samuel, isso deu visibilidade ao grupo e projetou ao mesmo tempo o teatro nordestino. Samuel já participou duas vezes como curador do JGE. Ele conta que se trata “de um processo de escolhas por DVD, o que é um processo bem delicado, pois na imagem gravada do teatro há um choque abissal de linguagens”, afirmando que isso dificulta a seleção.
Grito dos excluídos

Vários artistas, cansados de submeter as suas obras ao crivo de curadores de festivais, decidem ter os seus próprios palcos. Sem censuras artísticas, estéticas ou ideológicas, a arte sai à rua. Kika Farias, intérprete do personagem Dona Mocinha e atriz de rua, começou o seu trabalho de pesquisa no movimento popular da Região Nordeste. Segundo ela, foi o ponto de partida. “A partir daí, tudo virou espaço para realização da ‘brincadeira’. Qualquer pé de árvore, de rua, biblioteca, festas, praças, feiras, tudo virou espaço possível para levar arte para o povo”, afirma. A rua transmite uma imprevisibilidade que sugere atiçar a criação, podendo transformar uma apresentação num ato performático coletivo. Para Ângelo Fábio, que também é performer, a rua oferece múltiplos sentidos. “A performance me abre a outras perspectivas e silêncios. Sua alquimia enfeitiça e nos deixa em constante perigo”. Explicitando a diferença entre teatro e performance, Ângelo encara esta última como o que “nos faz tocar ao nosso outro ‘eu esquizofrênico’. Não é à toa que ela é interdisciplinar e pode entrar em qualquer campo”, destaca.
por Karol Pacheco.
Publicada originalmente na revista pq? – ed. 05
Imagem de capa: Russian Ballet (1916), de Max Weber
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