Superfícies (2016), híbrido de livro de contos/fotografia e disco, lançado pelo carioca Leonardo Panço, é uma obra que se destaca pelo formato inusitado e pela chance de abrir portas para que o leitor/ouvinte conheça o funcionamento da mente do artista. Há quem possa categorizá-la como multimídia, mas acredito que a ‘mídia’ aqui seja só o plano onde se revela uma reflexão situada originalmente na psiquê do próprio Panço. Seja isso bom ou ruim.
Composto por vinte e um temas instrumentais, que dificilmente ultrapassam os dois minutos de duração, o lado musical de Superfícies está entrelaçado com as várias fotografias e contos, que, por sinal, quase nunca vão além de um único e solitário parágrafo. Assim, embora esteja pluralizada em várias linguagens, a obra assinada por Panço possui uma dinâmica veloz e é capaz de ser assimilada pelo ouvinte/leitor após alguns minutos de imersão.
Ainda sobre isso, acredito que seja possível interpretar Superfícies como um fluxo de pensamentos desordenados, trazidos à face da linguagem à medida que vieram à cabeça do autor. Cada novo conto ou música acaba funcionando como uma conversa com Panço, como se ao final do disco/livro fosse possível conhecê-lo um pouco melhor. Talvez Superfícies seja uma grande mesa de bar, onde a cerveja gelada é o combustível para desvendar a sensibilidade com que o músico/escritor enxerga a vida.
Inclusive, quando diz em determinado momento do livro: “Escrevi um disco com muitas faixas. Elas parecem todas iguais. Como o barulho da chuva no telhado ou do trem que passa bem pertinho daqui fazendo sempre o mesmo som”, talvez Panço não esteja falando somente das músicas, que realmente soam bastante semelhantes, ou dos contos, sempre erguidos sob um mesmo estilo narrativo. A meu ver, essa é uma reflexão sobre o próprio fluxo do cotidiano, composto por raros rompantes de genialidade suprimidos pela monotonia das horas sendo superadas pelas próprias horas.
Dito isso, o título Superfícies imediatamente parece ser uma alusão às inúmeras superfícies de Panço que residem sob aquela conhecida pelo mundo. E, honestamente, essa é uma saída criativa fácil, mas, como se diz aquela famosa frase do escritor norte-americano Kurt Vonnegut, “cuidado com o que você finge ser, pois você é aquilo que finge ser”. Assim, ao longo da obra, descobrimos não o trabalho de um músico ou de um escritor, mas desvendamos a forma como um autor pensa o mundo à sua volta – E como ele se projeta nesse mundo.
E, se é que podemos chamar isso de desapontante, a obra nos instiga uma tensão nunca eliminada, como se estivéssemos sempre diante de algo que nunca se conclui. A própria estrutura da obra, montada a partir de fragmentos mentais e sonoros, contribui para isso. A verdade é que o livro/disco não soa como um recorte dos instantes de êxtase criativo de Panço, mas sim dos momentos de tédio e desolação, cuja identificação com a vida de qualquer pessoa é imediata.
Intencionalmente curtas, as narrativas musicais, fotográficas e literárias são o reflexo daquilo que estava ali o tempo inteiro, foi visto por todo mundo, mas percebido por quase ninguém. No conto “Meu Efeito Borboleta”, Panço gera uma trama (ou um relato, vai saber…) sobre horas preso num aeroporto, algo que, extraído de sua diegese, pode ser encarado como uma alusão ao próprio tédio. “Faltavam seis horas para viajar mesmo tendo ido até a rua comer um pastel de goiabada” é uma frase cuja capacidade de evocação do marasmo é capaz de dissolver até o tecido da realidade.
Assim, o livro/disco, livro musical, ou chame como preferir, do músico carioca Leonardo Panço é, sobretudo, uma viagem microscópica aos momentos perdidos entre a passagem das horas. Um reflexo da monotonia, da sensação de congelamento e do íntimo desejo de querer sair do lugar em que se está. E, embora tudo isso soe muito mal numa era cujo grande deleite é a efemeridade das redes sociais e o compartilhamento da felicidade oca e gratuita, o trabalho de Panço se faz relevante por desprezar essa balbúrdia do contentamento e se concentrar nas pequenas chateações que, embora não estejam expostas à luz do público, acontecem todos os dias e continuarão acontecendo para sempre.
Publicado originalmente na edição #11 da revista Outros Críticos.
Foto: Mauro Pimentel
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