Da vitrola para a película

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Banda Sonora é um lançamento do selo Assustado Discos, com patrocínio da Natura e realização do Ministério da Cultura. Foto de capa do site: Pri Buhr

Por Leonardo Vila Nova

Contar uma história de cinema (ou em cinema) requer diversas linguagens interagindo entre si para constituir uma mensagem única, que comunique ao público as mais diferentes sensações (encantamento, medo, surpresa, incômodo, um sem fim…). Isso disposto em milhares de fotogramas que se sucedem em cenas e mais cenas. Tudo devidamente articulado: as imagens, seus recortes e combinações, os textos, a luz… e a música. Sem dúvida, a música tem um papel fundamental para essa leitura. Portanto, criar trilha sonora para cinema exige uma sensibilidade ímpar e a compreensão exata e generosa por parte do compositor, cujo papel é mergulhar frontalmente na natureza do filme, se despir de si e ser a alma sonora desse filme. Para isso tudo, é necessário lançar mão de uma astúcia tamanha, que tem como propósito dar uma identidade a algo que, por si só, já tem um poder simbólico e discursivo poderoso.

O paraibano Hélder Aragão – ou DJ Dolores, como é mais conhecido – já é (d)escolado nisso. Há cerca de 15 anos, ele tem contribuído com a atmosfera musical de diversas produções cinematográficas locais e/ou nacionais. Um apanhado desse trabalho está registrado em Banda sonora (2013), disco que lançou, no fim do ano passado, nos formatos vinil e CD. O álbum traz 11 faixas que permearam filmes dos mais variados diretores, sobre as mais variadas temáticas. Produções tão díspares entre si, como Narradores de Javé e Amor, plástico e barulho, por exemplo, estão devidamente representadas através de suas músicas. Cada uma com sua história pra contar, sua memória e seu relato particular.

Em Banda sonora, a identidade sonora de Dolores é profundamente marcante, consegue se destacar explicitamente em cada uma das faixas. No entanto, ela toma formas diversas a cada minuto, assim como é a sua música, um liquidificador de referências – dub, zouk, polka, bolero, sons nordestinos, salsa, entre outros paladares sonoros. Independente da natureza do filme, toda a sua antropofagia, que lhe é característica, está lá. Cada música se confunde, em persona, com a identidade de cada filme, como se fossem indissociáveis. Isso fica mais perceptível para quem viu algum (ou vários) dos filmes presentes no disco. Ao ouvir determinada música, a lembrança de uma cena, ou do filme em si, é imediata. Mas, ao mesmo tempo, as músicas conseguem funcionar muito bem independentemente, reafirmando essa particularidade do arcabouço sonoro de Dolores.

Para dar “liga” a essa variedade sonora que Dolores faz se desenrolar ao longo do disco, ele delineou um caminho que se assemelha a um roteiro, que é disposto de forma bem distinta nos dois lados – A e B. Do lado A estão quase todas as músicas cantadas, mais “pops” e dançantes, que se encaixariam perfeitamente no clima de qualquer show de DJ Dolores. Destaque para “O amor vai” – na trilha do filme Estradeiros, de Renata Pinheiro –, na voz de Jr. Black, e, sem dúvida alguma, para a irreverente “Polka do cu”, que já se tornou o “hit-mór” de Tatuagem. A canção foi composta, por sinal, em parceria com Hilton Lacerda, diretor do longa.

Já no lado B, Dolores aciona a sua verve mais experimental, com temas mais viajados, “lombrados”, essencialmente instrumentais – com exceção de “Álcool”, na voz de Isaar. Aí, chamam a atenção “Azougue” – um arrebate sonoro – e “Setubal”, com sua ambiência soturna e perturbadora, fechando o disco. Essa música, por sinal, faz parte da primeira leva de trilhas que Dolores fez, no anos 90, quando ele encarou o desafio, pilotando um PC 286, de criar temas para o curta Enjaulado, de Kleber Mendonça Filho. Ela voltaria a aparecer, anos depois, a pedido do mesmo Kleber, em O som ao redor, seu aclamado longa, que coleciona premiações mundo afora.

Da primeira à última faixa de Banda sonora, abre-se um panorama impressionante da capacidade de Dolores em transitar por inúmeras paisagens sonoras – por ser uma compilação de trabalhos diversos, talvez isso soe bem mais aprofundado do que em seus discos de carreira. Assim, é importante lembrar – e no disco isso fica bem claro – que a atuação de Dolores como músico profissional anda em paralelo com a história do cinema pernambucano. Algo que vem se metamorfoseando, se reprocessando, em constante renovação, assumindo novos discursos e posturas. E nesse diálogo entre imagem e som, as possibilidades de transfiguração são ainda mais amplas e mais interessantes.

 Publicado originalmente na 2ª edição da revista Outros Críticos.

SERVIÇO

DJ Dolores apresenta o álbum “Banda Sonora” no Festival Rec-Beat, no sábado de Carnaval (dia 14), às 22h.

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Leonardo Vila Nova Escrito por:

Jornalista e músico.

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