
Parece que em tempos de excessos musicais, o cinema assumiu o lugar de ancoragem dos debates culturais cotidianos que infestam os bares de Hellcife. Nessas terras, quem não entra em conflitos com identidades, noções de si, é excluído das navegações pelos cheirosos rios dessa Veneza Brasileira.
Música virou detergente, é fácil de fazer, embalar, botar no carrinho e vender. Necessária mas descartável. Esse cenário parece desglamourizar os dependentes das coleções, dos vinis e demais badulaques musicais que cultivam cenas musicais como se fosse sinônimo qualidade. Isso só parece aumentar a distinção mezzo esnobe, mezzo cult dos frequentadores dos bares centrais da cidade.
Filmes recentes da incensada produção pernambucana como Boa Sorte Meu Amor, Febre do Rato e O Som ao Redor, em meio a uma grande produção que inclui curtas, médias, docudramas, belezas e porcarias, parecem reverberar muito mais nos arrecifes do que a prolixa produção musical atual.
Atestado o fato, fica a nostalgia da força das canções que perfuravam estômagos e circulavam de forma capilar por todos os becos da cidade.
Adoro ir ao cinema, degladiar e deglutir valores sônicos, visuaudíveis; mas como mostram os maneirismos de Febre do Rato que trata do comum, o boêmio que negocia com todos para torna-se mascate de mais um filme para um par de poucos, os “entendidos de cinema”, a intrusão da música faz falta.
Mas em meio a tantos filmes de prédios, tédios, garotas nuas de marca de biquíni deitadas nas camas das boas viagens (cena clássica da recente cinematografia local) um filme parece deslocar-se, afirmar-se por outras vias para além dos clichês dos prédios recifenses: Tatuagem , de Hilton Lacerda.
Não há como evitar o spolier: o conflito do filme está no cu, materializado na relação entre o recruta Fininha (Jesuíta Barbosa) e o líder do grupo de teatro Chão de Estrelas, Clécio Wanderley (Irandhir Santos) e na desdita canção do DJ Dolores (autor da trilha), “Polka do Cu”. Mesmo o quase conflito triangular com a personagem Paulete (Bruno Garcia) se resolve com algo que parece violência aos desavisados: o afeto que perpassa pelo cu. Entre as inúmeras leituras abertas pelo filme está o papel do desbunde tropicalista que possibilita a sobrevivência na época da ditadura ou a sexualidade vivida nos anos setenta (pós-ressaca dos sessenta) que abriu possibilidades de deslocamentos psicodélicos para além do conflito permanente.
Tatuagem é um filme atual com um olhar amoroso sobre o final dos setenta. Ao invés de acionar passadismos e maneirismos, o filme aposta na confluência do design sonoro, da fotografia, da dramaturgia intensa e no conflito que se constrói não pelo enfrentamento, e sim pelo modo de acionar o afeto contra o cansaço ou de um outro que nem aparece: o moralismo pequeno da burguesia descolada do Recife. Que, aliás, nem tem lugar no filme.
Para quem não sabe do tropicalismo local, além da sonoridade e dos cenários, a trupe Chão de Estrelas e o poeta-cinemador Joubert são inspirados no grupo Vivencial e no tropicambucano Jomard Muniz de Britto, que propagavam o atualíssimo refrão “É preciso desaristocratizar a cultura pernambucana”.
Não há conflitos óbvios com as músicas da trilha e sim acionamentos que funcionam como argamassa para a trama do filme: a canção “Volta”, de Johnny Hooker, um dialogismo entre a tradição brega recifense e o glam. Já “Vou Tirar Você da Cara”, interpretada por Feiticeiro Julião, é um hit udigrudi de autoria do bardo Juvenil Silva, atual difuso propagador da novíssima Cena Beto.
Mas o que salta aos olhos e ouvidos é o modo como a psicodelia é desencarnada no filme. Tal como o amor homossexual, ela é tratada como inserida que se confunde com a paisagem audiovisual de uma cidade que é Recife, mas poderia ser Salvador ou mesmo Saquarema nos tempos idos.
Não é dos prédios e cenas que nos sufocam que o filme de Hilton Lacerda trata e sim, de como o cu, esse funicular unissex, fonte de dor e prazer, orgasmo e merda, pode atravessar a necessidade, às vezes esvaziada, do conflito, ou mesmo da demarcação das cenas culturais, musicais e prediais que aninham nossos fundilhos culturais.
Para além da heteronormatividade, da homoafetividade, das cidades, das metalinguagens e das reatividades dos descolados do cinema, dos caras de cus amarrados e mal lavados, Tatuagem é um filme psicodélico por que sua mise-en-scène, não é uma cerca que delimita quem pode ou não entrar ou estar.
Pena que como filme, Tatuagem não possua a capilaridade da música, que pode atestar sua presença sem ser chamada, que invade nossos corpos. Mesmo Tatuagem continua a ser arte de massa para uns poucos dispostos e disponíveis.
Eu sei não se trata de música, e nem poderia ser, mas que de qualquer forma aponta para os modos como um produto cultural pode romper as cercas elitistas, de todos os níveis de descolados e deslocados que insistem em assombrar nossas cenas culturais, sem assumir que antes de todos sons e imagens é preciso ter cu para sentar e assentar as cenas atuais culturais do Recife.
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