Deus ex machina: Brasil

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Marcelo Pedroso e a equipe do filme “Brasil S/A”. Foto: Victor Jucá

por Rafael de Queiroz.

O VII Festival Janela Internacional de Cinema começou, como havia de se esperar, com a casa cheia. Além das enormes filas para se comprar o ingresso adiantado, a sessão de estreia ainda contou com alguns problemas técnicos na sala, o que atrasou um pouco o início da sessão. A questão do grande tempo de espera na fila foi até tocado pelo diretor Marcelo Pedroso, que agradeceu ao público presente que fez um grande esforço para poder estar lá.

Na sua fala, também agradeceu ao idealizador e produtor do festival, Kleber Mendonça Filho (KMF), por ter sinalizado que gostaria de ter o filme na grade ainda em sua versão bruta. O filme de Pedroso está inserido na temática que já tinha sido levantada por O Som Ao Redor, do próprio KMF, em que o modelo de urbanização das grandes cidades é questionado, onde tradições arcaicas coexistem com o pleno desenvolvimento modernista do “país do futuro”.

Esse eterno “país do futuro” é posto em cheque e levanta questionamentos: se estamos indo pelo caminho certo, para onde vamos, e se o lugar que chegarmos trará respostas para tudo isso. O filme começa com um grande navio cargueiro, ao invés das primeiras caravelas, atravessando o mar com uma enorme violência, como um falo estuprando as águas que um dia já botaram tanto medo e inspiraram histórias fantásticas sobre seu poder e mistérios. A máquina vai domar e subjugar até a mais forte das criações da natureza. Quando o navio chinês (não por acaso) aporta, ele “dá a luz” a uma moderna escavadeira, que vai ser escoltada por motos da polícia até o seu destino.

“Esse eterno ‘país do futuro’ é posto em cheque e levanta questionamentos”

Essa fina ironia estará presente durante todo o filme, afinal, não é o Papa, ou um grande estadista, nem um herói nacional que vai ser escoltado, mas a máquina. Sua missão será modernizar as persistentes terras de plantio da cana-de-açúcar. Esse lugar, central para a narrativa, vai mostrar muito bem essa dicotomia de velho e novo Brasil. O cortador de cana, negro, faz o mesmo o trabalho de seus ancestrais escravos, em que seu trabalho por mais que represente um modelo “primitivo” pré-industrial, conseguiu mecanizar o homem, como na bela cena em câmera lenta, no qual o movimento repetitivo e contínuo do corte acontece mesmo com a colheita já tendo sido feita por um equipamento.

A colheitadeira agora faz o trabalho humano de maneira bem mais rápida e destruidora. Ela toma o lugar do boia fria e em determinando momento, em um close frontal, parece mostrar seus dentes como numa risada ameaçadora. Na sequência, o cortador pega as canas ao chão e as vai recolocando na terra, o que pareceria ser um ato de resistência não fosse desconfigurado por um travelling vertical onde mostra bandeiras demarcando as áreas que deveriam ser colhidas pelo aparelho. As modificações no modo de trabalho, do ponto de vista do trabalhador e do trabalho humano na terra, agora mediado por tecnologias de alto impacto dão a tônica para a crítica do atual modelo desenvolvimentista não sustentável.

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Com ecos de 2001: Uma odisseia no espaço, de Kubrick, a colheitadeira descrita acima, que já representava uma ideia de futuro, literalmente abre caminho para um dos protagonistas do filme, as escavadeiras. Elas são como espaçonaves que nos levarão mais longe, para outros planetas quem sabe. Como em uma sátira, os antigos cortadores de cana agora serão os astronautas que nos levarão ao progresso. Uma atriz de biquíni atua como uma balizadora de aeroporto, conduzindo o balé dos aparelhos, uma cena bela e estranha que humaniza a máquina e suaviza os movimentos duros e brutais dos mondrongos. A atriz, com uma pistola em riste, dá um tiro para cima, autorizando a largada para o futuro, que com a luz e cor avermelhadas, numa terra antes fértil e agora desértica, nos sugere a conquista de marte — uma obsessão humana anterior à época da corrida espacial patrocinada pela Guerra Fria.

[Ou o futuro esteja nos cultos das igrejas pentecostais. Talvez a única sequência não encenada do filme em que fiéis são filmados em seu momento de oração e catarse. Essa parte gera uma ambiguidade, já que suas práticas são tidas como medievais por uma parte da sociedade brasileira que questiona profundamente sua honestidade e teme seu crescimento progressivo que se entende às casas legislativas de um país laico e representa um avanço de ideias conservadoras. No fim da cena, a igreja que abriga seus seguidores vira um foguete e segue rumo ao espaço.]

Daí descobre-se o petróleo. Que futuro é esse que buscamos? Nossa grande descoberta e finalidade, através de muito investimento (tanto em vidas como em aspectos econômicos), é o próprio passado, um combustível fóssil altamente poluente que subjugou vidas e culturas, que fraudou guerras. Essas e outras sequências são ligadas por uma gigante bandeira nacional sem seu símbolo central, que representa os estados e a famosa frase construtivista “Ordem e Progresso”. Presa a um guindaste, nas alturas, a vemos circular durante todo o filme. Seu barulho e sua sombra passam por diversos modelos de cidade, fazendo uma sequência da montagem sonora e de imagem muito vigorosa.

Os aspectos técnicos do filme certamente merecem aplausos, também. O áudio e o visual são usados com maestria para criar o universo crítico de Brasil S/A. O ensurdecedor barulho da metrópole com a cena de grandes arranha-céus; a tranquilidade do som das águas do rio, calmamente navegado por um pescador de caranguejos, sendo agredido pelo barulho de uma motosserra destruindo sua fonte de sustento, o manguezal. Tudo isso costurado por uma excelente trilha sonora, que costura todo o filme, ajudando a construir seu significado e o empoderando.

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Afinal, o que dizer de uma das melhores sequências do filme, a encenação de um baile aristocrático dos tempos de colônia, sem aquela música? A cena se torna emblemática por serem integrantes de um maracatu nação, que nasceu na senzala e que faz um cortejo composto de personagens da casta opressora (reis, príncipes, duques…). Ao invés dos tambores, temos instrumentos de corda de uma orquestra de câmara. Os atores negros passam pó de arroz no rosto com a câmera em close, mostrando uma alegria ingênua de serem, pelo menos por um dia, como seus patrões. O maracatu embranqueceu para ser aceito nas classes mais altas e, novamente, a convivência entre rural e urbano, arcaísmo e modernidade, e anseios por uma vida melhor, sem importar o modo como chegaremos a ela são colocados em questão.

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Foto: Victor Jucá

O “núcleo branco” do filme também é tratado com muito sarcasmo. Uma garota da classe média alta se irrita com o trânsito caótico da cidade quando nem consegue sair direito da garagem do seu prédio. Pertencente à geração Waze, que tanto questiona a corrupção dos políticos, ela usa seu Iphone para solicitar o serviço cegonha. Como a ave que traz os bebês, o caminhão quilométrico acolhe seus filhotes importados confortavelmente. Em um carro, seu “motorista” devora um Big Mac, em outro, gêmeos vestidos da mesma forma, jogam em smartphones iguais, quietinhos como anjos, uniformizados. A patricinha alterna fumar seu baseado e encena aquela liberdade publicitária: abre o teto solar e abre os braços ao vento gerado pelo veículo. Todos estão calmos e tranquilos no aconchego do seu carro, sem nem mais precisar dirigi-lo.

Essa linguagem cinematográfica de imagens chapadas e de cores saturadas, como se fossem peças publicitárias, seja propaganda de produtos ou de governos, ajuda a carregar a crítica aos rumos do Brasil e seus habitantes e também tensiona o que é real e o que é maquiagem nesse mundo gerador de imagens e tecnologias por segundo. O uso do kitsch é uma constante, como na sequência em que um playboy é “aterrorizado” por limpadores de vidro em um sinal onde para com sua S.U.V. Com seu possante tomado pelos limpadores ele atira no carro, que na sequência, como se estivesse num mostrador de uma concessionária é ilustrado com a palavra “blindado”. A separação de pobres e ricos, a cultura do medo abastecida pelas máfias de segurança privada, dos blindados ao condomínio fechado com muros gigantes e segregadores são fuzilados nesse momento.

A bandeira com um buraco no meio — que pode sugerir tanto uma crítica à “ordem e progresso” como à uniformização inescrupulosa da sociedade imposta pela força “modernizadora” do capital, já que os estados e suas particularidades deixam de ser representados na bandeira — volta a surgir e chama a atenção de moradores de um provável condomínio fechado. A tosqueira das imagens é proposital e reforçam a artificialidade vendida como ideal aos habitantes da cidade. Lugar fechado e sem contato com o caos real do mundo exterior. Lá você pode ser como uma família de propaganda de margarina, fazendo um piquenique em grama sintética e negando que você mesmo é parte do problema. À medida que vai cobrindo a cidade cenográfica com sua sombra, o único lugar ao sol é a parte do buraco, em que vão andando em sua direção para explodirem.

Um filme sem nenhum diálogo mostra uma força narrativa impressionante e o coloca no mapa das grandes produções pernambucanas com todo o mérito. Quem conseguiu superar a fila desumana dos ingressos, foi recompensado com uma grande obra e que ainda vai dar muito o que falar mundo afora.

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Rafael de Queiroz Escrito por:

Doutorando em Comunicação pela UFPE e repórter da MI (Música Independente).

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