Encarnado é para os fortes

Gritar é exasperar a potência do canto. Essa é a primeira tese que encontrei para começar a escrever sobre a experiência de assistir ao show Encarnado de Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Thomas Rhoner durante a 20ª edição do festival Rec-Beat, em Recife-PE, na pletora de alegria que é o carnaval pernambucano. Relembrar o grito de Juçara é me deparar com dois momentos distintos: o grito-útero e o grito-canto. São sobre essas distinções que procurarei escrever neste ensaio.

Preâmbulo, passagem

Na manhã da apresentação no festival, durante a passagem de som, a luz do sol fazia questão de deixar tudo à mostra. Mas esse tudo não era visível. A passagem se afirmava reiteradamente de passagem. Os músicos não chegaram a tocar uma música inteira. Ajustes nos som, equipamento, breves palavras, vistas na rua vazia, à margem do rio, na presença de um caminhão e equipe de limpeza a lançar potentes jatos d’água sobre a rua e as calçadas. O sol quebrava o vazio do lugar, mas suas ondas de calor prometiam o descanso da chuva, à noite. Encostados, dois ou três observavam o palco, quando minimamente se dava o encontro dos sons e da voz de Juçara, um outro som, decerto. “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”, recorro ao desgastado trecho de Rosa, mas recorro. Porque sintetiza o lugar que a música de Encarnado habita mesmo que ali eu ainda não a tenha percebido.

Conversando com os músicos, nada de música. Saber onde ficava o cinema São Luiz, o período do festival de cinema Janela Internacional ou imaginar que duas torres possam se multiplicar na paisagem estavam no centro da nossa ligeira conversa. A música estava entre eles, mas num espaço que certamente eu não conseguiria captar nem em mil passagens de som. No entanto, Dinucci me perguntou se o show funcionaria no carnaval. Diante de meu silêncio, ou balbuciar de que sim, logo se desfez a pergunta para a sua crença de que Encarnado possui um som hipnotizante. Não me recordo se exatamente nesses termos; mas sim, nós criamos que Encarnado poderia funcionar no espaço e período especial em que se dá o festival pernambucano.

Dadas as diferenças entre palcos de pequeno porte como a Casa de Francisca, onde muitos dos músicos contemporâneos a eles rebentam, amadurecem e experimentam suas performances, e lugares maiores, como no show de lançamento no SESC Belenzinho ou no palco aberto da Virada Cultural, ambos em São Paulo, no ano passado, tocar no carnaval é certamente outra coisa. O carnaval está para a Virada como a poesia está para a prosa. Por conta disso, os shows do festival Rec-Beat têm uma dinâmica diferente da dos demais festivais de música. A poesia que se instaura na festa, sua força simbólica e cultural, atinge e transforma as performances de todos os artistas que tocam nesse ambiente. Daí o festival diferir da prosa cotidiana da maioria dos festivais de música. Essas diferenças não imputam juízos de valor, mas se valem como características que distinguem o lugar que o festival ocupa no calendário dos principais eventos de música do país. Subir ao palco aberto com Encarnado no carnaval pernambucano requer uma dupla ação. Se os sons são hipnóticos, será preciso hipnotizar aqueles que já estão sob o efeito de variados tipos de “hipnose”. Carnaval é choque e anestesia, outra dupla ação.

A história da chuva

Encarnado é para os fortes”, assume Juçara Marçal diante das pessoas que assistem às primeiras músicas de sua apresentação, permanecendo debaixo da chuva, enquanto uma boa parte da plateia procura algum abrigo. A chuva, de alguma forma, acaba por contar a história do show de Encarnado. O chuvisco e a tensão que regem o “Velho Amarelo” apontam para um céu cada vez mais pesado, com a voz desafiadora de Juçara ao tempo, no canto do verso: “Quero morrer num dia azul”. E nesse ir e vir da intensidade da chuva, as pancadas “Damião” e “Queimando a língua” – a segunda, canção de onde vem o “encarnado” que dá nome ao disco –, estabelecem a performance e o lugar dessa apresentação, sobretudo diante daqueles que fazem da chuva também o seu abrigo. Com a afirmativa de Juçara, diante dos corpos e da água sobre eles, a “Pena mais que perfeita” fecha o primeiro bloco de canções, com elas, a chuva vai embora.

A ferida se abriu

Encarnado é poema. Carrega palavras como quem acalenta um rebento prestes a morrer. Como poema, sabe que a vida e a morte são partes de uma mesma palavra. Mas Encarnado não resiste a ser somente palavra, quer e exercita ser linguagem. Desfaço, então, a primeira proposição. Não é (somente) poema, é linguagem. Feliz é o encontro dos arranjos das guitarras – corpos se debatendo –, com a rabeca a improvisar como aura etérea. A canção “Odoya” pede proteção. Um som desvanece do palco e se refaz nas vozes diminutas da plateia, que se renovam num grande cântico para preparar o corpo-canção que nasce na sequência da apresentação, com a música “Ciranda do aborto”, de Kiko Dinucci.

O grito de Juçara é do lamento. Profundo, consegue ser violento e tenro. Os sons das guitarras e rabeca se confundem, também se despedaçam, laceados, espalhados, aos pedaços – tudo o que a canção sugere no plano discursivo encontra resposta na sonoridade do trio e no canto de Juçara. O grito-útero da “ciranda” engasga e enche os olhos d’água, dá sobressaltos, movimenta no espaço-tempo de uma performance de canção o que cremos e o que não cremos sobre nascer e morrer. A canção nos apunhala e acaricia com as mesmas mãos, contra todas as verdades.

“É sempre assim, a apresentação dessa música?”, pergunto a Juçara depois do show. “Sim, até por isso pedi para não usarem imagens no telão”. A cantora queria que toda a atenção ficasse voltada para a própria música. Se o ir e vir da chuva e plateia dispersa fez com que as primeiras canções do show Encarnado não “hipnotizassem” por sua própria força, a “ciranda” colocou a todos em comunhão. A rebentação das guitarras, rabeca e grito do verso “Aos pedaços”, do final de “Ciranda do Aborto”, encontraram pouso e silêncio na marimba e quase sussurro da voz de Juçara que nina para Oxum, logo na música seguinte: “Hoje eu não vou deixar ninguém sofrer”. Assim, depois da chuva, ciranda e pancadas, um pouco de silêncio e cantiga para recompor a alma.

Grita e berra como louca

As músicas que encerram tanto o show quanto o disco Encarnado têm no caminho estético que passa pelos compositores Itamar Assumpção, Tom Zé, Siba, Kiko Dinucci e na parceria entre Thiago França e Romulo Fróes, a potência interpretativa que nasce do grito-canto de Juçara. Narrativas e irônicas, “E o quico?” (Itamar), “A velha da capa preta” (Siba) e “João Carranca” (Kiko) – a última ficou de fora do show – apontam para lugares distintos no canto de Encarnado.

As primeiras apostam na potência das guitarras, também narrativas, com suas quebras em diálogo com as frases do texto. Sons também são discursivos, seus blocos de arranjo compõem no plano sonoro uma parte essencial para a história que Juçara conta. Itamar se faz por uma narrativa das ruas, tendo na coloquialidade sua premissa. Siba apresenta uma estrutura narrativa mais formal, com personagem, enredo, diálogos, espaço e tempo. Essas músicas são importantes passagens da apresentação, aquelas em que público e músicos se entreolham nesse jogo entre texto, som e recepção. Os músicos como contadores de histórias e a plateia como leitora dessa dança palco-rua e rua-palco.

Para a recepção do público, é sempre importante ressaltar que essa escuta passa pelo filtro de quem escreve. O “público” não é uma massa homogênea, nem o comum dos aplausos a cada fim de faixa, por exemplo, são garantias de qualquer posição. Sou eu o “público” nesta escuta extremamente pessoal, mas não menos crítica, que por diferentes recortes interpretativos estará também por revelar escutas das mais diversas.

Mas é na exasperação do grito que se apresenta o berro de “Não tenha ódio no verão” (Tom Zé), que hipnose vai se transformar em êxtase. “Grita e berra como louca”, diz a Juçara, o som, a canção, a performance de Encarnado. Esse berro diz muito sobre o lugar que o “grito” ocupa na música brasileira atualmente. É o “grito” que escapa, não obedece a fronteiras, é recortado, fragmentado, exaspera, exaspera, distende escutas, atravessa discursos, refaz trajetos e é, realmente, para os fortes.

Foto – Pedro Bayeux

Publicado originalmente no e-book passagens performances processos (2015).

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Carlos Gomes Escrito por:

Escritor, pesquisador e crítico. É editor dos projetos do Outros Críticos, mestre em Comunicação pela UFPE e autor do livro de contos "corto por um atalho em terras estrangeiras" (2012), de poesia "êxodo," (CEPE, 2016) e "canto primeiro (ou desterrados)" (2016), e do livro "Canções iluminadas de sol" (2018), um estudo comparado das canções do tropicalismo e manguebeat.

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