
Ao olhar a profusão de cores que emana de uma mandala, muitos que a admiram, na verdade, não sabem exatamente o que ela significa. Em sânscrito, o nome quer dizer “aquilo que circunda um centro”. Trocando em miúdos, remete à relação entre um ser vivente e o cosmo que se compõe em torno dele. Ao se ouvir a música de Caramurú, tem-se a nítida sensação de se estar frente a uma mandala, e toda a energia pulsante e inspiradora que ela pode despertar se assemelha à relação sensível que o pernambucano tem com sua arte, igualmente policromática e dinâmica. Caramurú lida comumente – e despretensiosamente – com o que o universo dispõe ao seu redor e, de maneira muito particular, transforma em música (ou em desenhos) o que estiver ao alcance da sua busca pelo simples prazer da experimentação.
Atualmente, Caramurú é percussionista da banda Tagore – com quem se prepara para lançar, em breve, o primeiro CD – e também já fez parte da banda Caapora. Mas a outra persona do artista, ainda pouco conhecida, é, nada mais, nada menos do que ele próprio, que conversa frequentemente com seus devaneios, e faz deles o prato principal do seu jantar psicodélico. Ao ouvir o EP Ave Máquina (2011) e as canções no Soundcloud do artista, me veio à mente um trovador. A despeito do caráter medieval que isso possa vir significar, não ouso aqui classificar o termo como algo que soe atemporal ou anacrônico, mas me atrevo a, com liberdade lúdica e poética, me remeter unicamente à figura de um cantante que circula, sozinho, com seu violão, por ambientes diversos. No entanto, ao longo da trajetória traçada por Caramurú, da primeira à última canção, ele vai cerzindo, por entre simulacros de músicas indianas, ibéricas, sambas, cumbias e outras mumunhas mais, uma multiplicidade de personagens que vão se alternando e se recombinando, em sua simplicidade e poesia – musical e literal. Nunca será possível ver/ouvir apenas um Caramurú. Todo esforço para isso poderá ser em vão.
Essa capacidade de ser tantos, habitando apenas um, aponta uma habilidade inata de incorporar referências diversas que se encontram à sua volta, dando-lhes roupagem e características muito peculiares. Seja na forma de fazer música, de escrever ou de criar os arranjos para vestir suas canções. Guardadas as diferenças estilísticas e estruturais, lembro-me muito do disco Smokey Rolls Down Thunder Canyon (2007), de Devendra Banhart, que é igualmente transitório a cada faixa, sempre remetendo a lugares ou épocas diferentes. O trovador, mais uma vez, de passagem. Outra referência que pode ser percebida, está explícita e consciente, é a música “Com ou sem tu”, versão de “Within You Without You”, a incursão dos Beatles (via George Harrison) pela música indiana. Na sua correspondente pernambucana, é possível perceber textura e ares nordestinos. Até a improvável versão, em cumbia, de “Take Five”, de Paul Desmond, endossa, por si só, a vocação de Caramurú para captar, assimilar e promover diálogos entre elementos inusitados e improváveis.
Em sua música – ou simplesmente numa conversa informal e corriqueira – Caramurú dá mostras de uma mente irrequieta, apesar da mansidão de algumas de suas músicas. No entanto, irrequieta no sentido da recusa em manter-se linear, passiva ou acomodada, em berço esplêndido, apenas ao que lhe é concedido ou solicitado. Na verdade, sente-se um desejo constante de sua mente em permitir-se trafegar por possibilidades diversas, em nome apenas da fruição artística, curiosa e sem medos ou medidas. Assim se permite, nesses termos, lançar-se até onde a sensibilidade pode encontrar meios para se expressar. “Eu não vejo a hora de cair no fundo do poço”, diz Caramurú na canção “Hall de entrada”. Certamente, por vezes, ele parece querer caminhar no (ou além do) limiar da loucura, correndo todos os riscos que isso pode lhe ocasionar, seja inocentemente ou propositadamente, com algumas leves doses de liberdade e ousadia. A sua música é resultado de um mergulho profundo ao que há de mais lunático dentro de si mesmo.
Esse sabor entorpecente de insanidade, que mais evoca liberdade e ousadia, é também marcante na tão (por muitos) inalcançável simplicidade com que uma música pode se manifestar. A busca pelo primor e virtuosidade, que é o objetivo de tantos instrumentistas, não faz parte dos planos que mais interessam a Caramurú. Ele lida com a total despretensão por “arrodeios protocolares” ou pseudobarrocos, até mesmo no modus operandi que segue para registrar suas músicas. Como um artesão, ele lida com ferramentas nem um pouco sofisticadas, a exemplo do Audacity – um software gratuito, de gravação e edição de áudio, geralmente utilizado por iniciantes – para dar forma àqueles tais devaneios particulares com os quais ele mantém diálogo intenso e densamente criativo. Com cortes e recortes de feitura totalmente intuitiva, ele abre mão de procedimentos clássicos, para criar os seus próprios métodos de criação e gravação. O violão – que é o seu “módulo compositor oficial” – não está sozinho nesse processo. Suas canções são materializadas também através de caxixis, congas, triângulos, samplers e efeitos – dos mais rústicos, facilmente encontrados no Audacity. O experimentalismo e a ausência de expectativas quantos aos resultados norteiam o seu processo criativo.
O lirismo abstrato através do qual ele exercita sua poesia também é outro aspecto que pode dizer muito a respeito de alguém que, inconscientemente, diz algo sobre si, sem maiores explicações lógicas ou compreensíveis do ponto de vista meramente racional. Uma demonstração clara de que a sensibilidade pode ter também no universo das palavras um campo farto para se manifestar de forma espontânea. As metáforas, por vezes indecifráveis, são também alucinações psicodélicas que carregam compreensões íntimas e particulares a respeito desse cosmos que o cerca.
A música de Caramurú diz muito a respeito de si. De forma simples, natural e espontânea, ele vai “parodiando a vida e a morte”, jogando para si mesmo uma responsabilidade muito mais libertária do que qualquer outra: a de fazer uma música comprometida apenas com o seu desejo de reconhecer a si mesmo e a seus vários personagens trovadorescos e psicodélicos em cada verso que escreve e cada som que faz emanar da sua mente, alma e coração. Percorrer as brechas possíveis e abocanhar o que lhe dá imenso prazer.
por Leonardo Vila Nova.
Publicado originalmente na coletânea no mínimo era isso: 10 bandas, 10 ensaios
Obrigado OC e Leo Vila Nova pelo artigo!