Entre canções e quadrinhos

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Arte: Matheus Mota

por Fernanda Maia.

Se hoje as HQs são fonte de inspiração para jovens e adultos, antigamente eram rechaçadas da prateleira dos livros “de qualidade”, pois o seu hibridismo textual, em que palavras e imagens interagem de forma dinâmica, era acusado de limitar a interpretação do leitor. O mesmo ocorreu com estilos musicais como o rock e o blues, visto que antes de se tornarem referências musicais no mundo todo, suas misturas rítmicas eram cultuadas por uma minoria de escravos vindos da África, no início do século XX, e marginalizada pela sociedade burguesa do continente americano. Mas nada melhor do que a arte para rechaçar conceitos arraigados e nos mostrar que não vivemos em um mundo unívoco, mas sim composto por vários signos que se relacionam com outros signos e seus significados diversos. Para criarmos sentido, antes precisamos de um texto que é, como dito por Barthes, um tecido de citações; jamais é original, mas um regresso às nossas experiências culturais.

Quem bem entendeu esse conceito de usufruir das referências e integrou de forma singular a linguagem dos quadrinhos e do cinema à música foi D Mingus, em seu primeiro álbum Filmes e Quadrinhos (2010), no qual já nos introduz através da capa a um ambiente fantástico e simbólico. A arte, de autoria do ilustrador e também músico Matheus Mota, faz uma releitura tensa e irônica do clássico O soldadinho de chumbo, ao representar a dramática cena em que o soldadinho é engolido por um peixe – utilizando traços característicos das histórias em quadrinhos – em um contexto praiano-recifense, com a assustadora imagem das mandíbulas de um tubarão prestes a devorar as pernas do soldado, que, perfilado, mostra não perder a compostura de um bravo guerreiro.

Partindo para a produção sonora, notam-se diversas passagens em outros clássicos. Na faixa de abertura “Alien Morricone Strikes Again”, por exemplo, são feitas citações a Ennio Morricone (recordo-me da famosa trilha do filme “O bom, o mau e o feio” (1996), de Sergio Leone) e – como o próprio músico já afirmou em entrevista ao site Altnewspaper – ao space rock e ao título da música “Bigmouth Strikes Again”, dos Smiths. Disponível no site YouTube, ainda é possível ouvir as músicas acompanhadas de clipes construídos a partir de recortes de outros filmes históricos. A faixa “Galáxia 2001 futuro” funciona como um pano de fundo sonoro de produções com temáticas futuristas – como divulgada num clipe caseiro com cenas de 2001: Uma odisseia no espaço (1968), de Kubrick – devido à inserção de efeitos sonoros eletrônicos que nos transportam ao universo das sensações construídas de forma artificial.

O space rock compõe o disco, criando sensações nostálgicas, seja através das palavras, seja por meio do som, como na faixa “Something to geth high”, em que guitarras se sobrepõem e retrocedem seguidas por bateria e vozes que ecoam no campo sonoro, estimulando um distanciamento espacial e temporal. O mesmo ocorre na letra: “Do you remeber the time/ when we get drunk/with our milkshakes, bikes and skates/ at daylight?”. Na faixa “Filmes e quadrinhos”, a retomada se dá através de construções simbólicas que figuram toda uma infância, em que são utilizados termos comuns aos textos/jogos tradicionalmente destinados ao público infantojuvenil (masculino), como “figuras de ação”, “bolas”, “botões”, “espantalho”, “lobisomem” e “corvo”. Lembranças que atuam como uma desconstrução do presente vivido, mas não alienação.

No clipe da faixa que dá nome ao disco, o personagem do homem-rato ao ouvir a versão K7 do disco, simboliza um ato de libertação do ambiente urbano caótico presente em seu cotidiano. Seria a música, então, assim como todas as outras formas de arte, uma ruptura com o real, seja para o artista, seja para o interlocutor da obra.

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Arte: D Mingus

Enquanto em Filmes e Quadrinhos a nostalgia do eu-lírico se faz em citações, em Canções do quarto de trás (2012), circunscreve-se um cenário de melancolia e resignação. No plano sonoro, a presença do baixo, do violão ou da voz de Aninha Martins contribui para a ambientação soturna na maioria das canções, que por vezes é invadida por instrumentos com sons mais médios e agudos, como a flauta transversal e o sitar (em “Senhor Melancolia”), que são como um resfôlego, um momento de alegria, um ato de loucura, vide “Manicômio aconchegante”: “O mundo é louco/ manicômio aconchegante/ mesmo sem meta/ vale seguir adiante// fugia do mundo/ e suas esquinas/ incertas e escuras/ sem perceber/ que assim já estava/ na sepultura”.

No projeto gráfico de Canções do quarto de trás, D Mingus mantém a influência dos quadrinhos, principalmente no encarte, que traz uma arte gráfica de sua própria autoria, mais minimalista se comparada ao primeiro álbum. Possui um suporte mais elaborado, formando o que posso chamar de um gibi-disco, visto que ao passo que é aberto, é construída em sequência de quadrinhos apenas visuais uma narrativa autobiográfica do músico-ilustrador preparando seu café, um energético indispensável para o homem moderno que é retratado no disco.

“D Mingus se tece em vários signos, ampliando nossas perspectivas interpretativas para várias formas de expressão, exigindo múltiplos leitores ou quiçá um leitor múltiplo.”

Tanto Filmes e Quadrinhos quanto Canções do quarto de trás interagem de forma híbrida, em que som e imagens se estruturam como num filme. O segundo, por sua vez, parece nos transportar para a uma narrativa menos ficcional, mais crua. Sobre a complexidade do álbum, faço minhas as palavras de Alfredo Dias, presentes na apresentação do disco: “Canções do quarto de trás tem lá outras exigências: um sistema de som ambiente e gente que goste de ficar junto, ouvindo música. Parece um vinil, tem duas partes, cores embaixo das letras, letras embaixo de claves. Uma pessoa para manusear o encarte, outra para equalizar o som, alguém para apontar uma sacada, alguém para voltar a música”. Neste comentário, concluímos que D Mingus se tece em vários signos, ampliando nossas perspectivas interpretativas para várias formas de expressão, exigindo múltiplos leitores ou quiçá um leitor múltiplo. Em suma, cabe a nós preenchermos as lacunas até atingirmos os limites impostos pela obra, ou por nós mesmos.

Bem como D Mingus, poderíamos citar outros trabalhos que não segregam as artes, pois assim como nós, seres humanos, o que advém de nosso escopo cultural deve ser consumido em sua totalidade. Elementos sonoros são capazes de projetar ambientes, e as imagens de transmitir sensações, as sensações palavras, as palavras sons, e assim, sucessivamente, vamos tecendo uma cadeia cíclica de significantes e significados. Integrar não é, pois, restringir, mas romper limites da interpretação.

Publicado originalmente na 4ª edição da revista Outros Críticos.

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Fernanda Maia Escrito por:

Professora e doutoranda em Letras, na UFPE, na linha de pesquisa de Literatura e Intersemiose. Designer do Outros Críticos, cuida dos projetos gráficos das publicações, coletâneas, material de divulgação e site.

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