entrevista: BateBit Artesania Digital

O BateBit Artesania Digital encontra nos consoles, controladores, sensores, aplicativos e outros aparatos uma maneira de trabalhar digitalmente a música. O próprio nome indica: bater o bit. Tocá-lo, quase como que entalhá-lo tal qual uma madeira a tomar forma. Com essa abordagem artesanal, João Tragtenberg e Filipe Calegario desenvolvem uma pesquisa em concepção e desenvolvimento de novos instrumentos musicais digitais que contou com a participação de diversos músicos pernambucanos, como Siba, Raphel Costa, Helder Vasconcelos, entre outros.

O BateBit acredita no poder dos usuários finais, que passam a ter autonomia para programar o produto digital; o usuário final deixaria, então, de ser final para também participar ativamente do processo de construção da tecnologia. Tecnologia esta que pode ser encontrada tanto numa “fitinha de LED” quanto em cada lantejoula e miçanga bordadas na tradicional gola de um caboclo de um maracatu rural.

Como foram as primeiras experiências de vocês, mesmo antes do BateBit, com a tecnologia musical?

Filipe: Jarbas Jácome fez doutorado de computação musical, o que abriu as portas pra muita gente na Universidade (Federal de Pernambuco). Fiz o meu trabalho de graduação em computação, de como eu gero melodias a partir de movimentos num console de nintendo Wii. Ainda assim, quando eu voltei da Alemanha, me envolvi num grupo chamado LaboCA – Laboratório de Computação e Arte. E aí a gente participou de festivais, e fez oficinas em vários lugares do Brasil, usando técnicas de computação, música e artes plásticas. E com Jerônimo Barbosa, conhecido como Jeraman, fizemos uma parceria que rendeu vários frutos, como o repentista virtual. Você escolhia e falava as palavras que eles queriam que fizesse uma música: iam no Twitter, pegava o que as pessoas estavam falando e começava a recitar. O resultado era meio estranho. Do nome Repentista Virtual, o povo esperava algo mais nordestino e vinha uma voz robótica meio estranha.

Como é que vocês veem a acessibilidade, a questão do ensino da programação, já que ainda é um ambiente muito restrito?

Filipe: Eu queria ser até mais ativista nessa causa porque eu acho que, num futuro próximo, a gente vai precisar de programação para poder se comunicar com as máquinas depois, sabe? Você, além de ser um consumidor de coisas que vêm de fora, você ter a possibilidade de modificar e construir suas próprias coisas. Acontece agora uma convergência internacional de várias coisas, por exemplo: o Cold é uma delas, ele é um site que ensina você a programar e você poder escolher a linguagem de programação e tal. Várias empresas estão se juntando para poder investir nesse Cold; paralelo a isso, tem um movimento chamado Maker Movement, no qual em vez de ser só consumidor de tecnologia – vemos as pessoas querendo fazer seus próprios artefatos, seus próprios projetos. Massivamente, na internet, agora, dá para se achar projetos compartilhados, há venda de sensores de forma mais barata e mais acessível. A gente se vale muito desse Maker Movement, através do qual a gente consegue ter acesso a esses sensores e placas que antes não tinha acesso e que era só restrito ao mundo da eletrônica, da engenharia eletrônica.

João: Antes só a indústria tinha acesso àquele sensor. Hoje em dia, pra quem quer fazer as coisas, hobista; ou pra alguma solução que é no trabalho dele, mas não é a especialidade dele fazer aquilo, tem cada vez mais gente fazendo coisas com essa tecnologia.

Filipe: Hoje são várias coisinhas que, quando combinam, emergem. Acho que foi primeiro a internet, com essa coisa de compartilhar de forma imediata; a questão dos sensores estarem mais baratos; e a questão de uma preocupação de transferir essa tecnologia para o usuário final, entendeu? Então tem tudo a ver com programação, pois é como se tudo estivesse convergindo. Então, muito próximo vai ser muito mais fazer do que só consumir. E isso tem tudo a ver com o que a gente faz, com o trabalho que a gente faz no BateBit, que a gente discute no MusTIC – que é um grupo de pesquisa lá da federal -, que é a principal questão: como a gente dá poder na mão do usuário final, da ponta, sabe?

No site batebit.cc é possível encontrar informações e tutoriais sobre os instrumentos musicais criados pelo grupo, como o “Disque-Som” e o “Pandivá”, que na imagem é empunhado por Filipe Calegario. Foto: João Tragtenberg/Divulgação

Me contem sobre esse projeto Diálogos entre a Lutheria Digital e a música popular pernambucana. Como ele se deu?

Filipe: Esse projeto ele meio que foi fruto de uma convergência de três pessoas que estavam saindo de uma fase e entrando em outra. Eu estava terminando o mestrado, entrando num doutorado já, João estava no meio de um processo e Jefferson já estava acabando o seguro-desemprego. Bem como uma convergência de situações que nos levou ao projeto do Funcultura… E a gente se perguntava muito do por que desta música que está sendo produzida com essas novas tecnologias musicais estar sempre associada a uma estética europeia ou americana? Ora, porque lá estão esses centros de desenvolvimento, tecnologia e pesquisa e tal. Mas a gente aí no Recife também tem uma pesquisa interessante, mas parece que a conversa entre a academia e a comunidade de músicos fica completamente perdida no processo – por exemplo, o cara defende o mestrado e acabou. E a gente começou a refletir: será que não faz sentido usar essas tecnologias musicais, que a gente está desenvolvendo, no contexto da música popular de Pernambuco?

Música popular vocês definiram como? A cultura popular mesmo? A música tradicional?

João: Então, música popular a gente definiu como: não sendo música erudita, nem música eletroacústica, nem música clássica. Música popular incluía tanto música tradicional quanto rock, samba, maracatu.

Filipe: A gente passou um tempo discutindo como seria esse termo, e no projeto a gente especificou direitinho assim: é tudo aquilo que não é erudito, nem experimental. Mas assim, a gente ficou muito nesse meio entre… será que é tradicional? A gente vai trabalhar no tradicional ou vai se inspirar no tradicional, sabe? Então definimos esse contexto para ter como tomar algumas decisões, como por exemplo, na hora que for convidar um artista.

João: Esse projeto, especificamente, não rolou nenhuma inspiração da cultura popular tradicional, mas engatilhou, por exemplo, o projeto do Caboclo Eletrônico, que estou fazendo agora. Foi quando eu vi: pô, não tem demanda para criar alguma coisa com música, maracatu, no cavalo marinho, coco de roda. Mas opa, eu vi um cara com um LED ali e eu quero me meter nisso aí e abriu pra esse projeto. Mas a Lutheria Digital ficou no universo dos músicos, luthiers, pesquisadores, da música que se faz no Recife hoje (música de rua, música de festival, música de show).

Definido o público, os músicos que vocês iam alcançar, como é que foi esse trabalho. O que vocês procuraram? Como é que foi essa intervenção?

Filipe: Foi um processo meio cíclico e, ao mesmo tempo, muito caótico. E isso é muito importante: gerar novas ideias, ser um pouco caótico no meio do caminho, mas a gente entrevistou músicos que se aplicavam nesse contexto de música popular, extraiu dessas entrevistas algumas inspirações, a questão do DJ Dolores por exemplo. Tinha essa coisa de o público não saber o que estava rolando no set dele, ali na mesa – que ele fica na posição horizontal e as pessoas não veem o que ele está fazendo. Fica parecendo que ele está acessando e-mail, ou coisa assim.

João: Porque a gente queria se inserir no contexto, saber os problemas do contexto e se colocar no imaginário desse contexto: que tipo de coisas, quais são os problemas, e como as pessoas se relacionam com as ferramentas.

Filipe: O que me inspirou a fazer os instrumentos foram essas coisas do DJs; e conversando com Siba, que foi bem específica, a relação dele com instrumento: “tenho uma técnica e vou desenvolver uma técnica naquele instrumento”. E nas discussões da gente me levou a considerar pensar num instrumento que existe e expandir esse universo para o cara aproveitar do próprio gesto, que ele já faz, pra tocar um instrumento que não existe ainda. Foi aí que eu fiz o Pandivá que é um “pandeiro de vara”, um nome até que surgiu nas oficinas que a gente fez. Que um cara pode tocar com a pose do violão e controlar com a vara como se fosse de um trombone de vara. E aí foi massa, é inspirado no pandeiro e a vara do outro lado. E foi massa porque a gente testou com Helder Vasconcelos, Carlos Amarelo, Jam da Silva e Raphael Costa. Três percussionistas e um violonista. E o massa foi: “não vamos dizer como esse negócio foi usado”. Dá na mão da pessoa e a pessoa resolve como é que usa. O que a gente quer é realmente saber se o instrumento está se comunicando de alguma forma. E o massa foi ver que cada um tocou de um jeito…

João: Helder tocou aqui em cima; Jam da Silva colocou no colo; e o Raphael Costa pegou que nem o Helder, no fim, como violão.

São instrumentos novos e tem isso de cada um fazer uma leitura nova disso, o que é diferente dos instrumentos que já estão aí e todo mundo, mesmo que não saiba tocar – quem pega numa flauta sabe como vai segurar, quem pega numa sanfona, violão etc. Mas depois de feito, existe mesmo essa liberdade, ou foi só essa experimentação para que as pessoas pegassem como bem entendessem? Existe um manual de instruções, vocês determinam isso para que eles sejam melhores aproveitados?

João: Nenhum deles está em estágio de produto, onde a gente já consegue colocar “Ó, isso aqui custa tanto e toma aí o manual de instruções.” Não vem essa questão se tem um manual de instrução ou não, mas há uma vontade de…

Filipe: Eu acredito muito nessa coisa emergente de a pessoa que está usando ressignificar o objeto. Então eu acho que, no caso da gente foi um experimento, mas se o cara quer tocar nas costas, se ele curte tocar nas costas, isso é o que abre fronteiras. No caso desses instrumentos, foi muito interessante descobrir que uma guitarra que o cara passa a língua nas cordas, ou então que toca a guitarra no colo. Ele está expandindo as técnicas de tocar aqueles instrumentos. Para esses instrumentos, no caso do Pandivá, especificamente, eu acho que foi muito interessante ver que o modelo mental do cara que estava usando levou o cara pra um lugar que eu não tinha pensado. Acho que isso é muito rico, entendeu?

João: Isso aconteceu muito no desenvolvimento da guitarra elétrica, por exemplo. O inventor da guitarra tinha contato direto com músicos que usavam de formas diferentes e entendia: “opa! Dá pra usar desse jeito, então fica melhor se eu colocar a alça mais pra esse lado aqui; depois, talvez outra pessoa use daquele jeito que nem num-sei-quem usou, então deixa eu preparar esse adaptador aqui”. Então, a gente acredita muito nesse design centrado no usuário, que parta do usuário, do músico com necessidades criativas, para onde o instrumento vai andar. A gente está caminhando junto, está tateando junto como esse instrumento vai ser. É bem esse bate-bola: vai e volta e vai e volta. A gente modifica, leva, acho que isso é bem interessante.

Publicado originalmente na edição #11 da revista Outros Críticos.

Foto: Camila van der Linden – BateBit + Pachka no lançamento da revista Outros Críticos no Paço do Frevo.

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Karol Pacheco Escrito por:

Jornalista e repórter da revista Outros Críticos. Diretora da Fundação de Cultura de Camaragibe. Roteirista e performer.

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