O Grupo Bongar é formado por Guitinho da Xambá (voz principal e pandeiro), Memé da Xambá (congas, ilú, pandeiro, gonguê e vocal), Nino da Xambá (alfaia, abê, ilú, pandeiro e vocal), Beto da Xambá (pandeiro, ganzá, gonguê, ilú e vocal) Thúlio da Xambá (caixa, alfaia, ilú e segunda voz) e Neta da Xambá (abê, pandeiro, gonguê, ilú, alfaia e vocal). Nessa entrevista com Guitinho, no Centro Cultural Grupo Bongar Xambá, em Olinda, pudemos aprofundar algumas questões presentes na trajetória de 15 anos do Grupo. Como a relação dos músicos com a sua comunidade, as críticas do artista sobre a ausência de políticas culturais, suas composições entre a tradição e o contemporâneo e o prisma religioso que a circunda, a circulação por festivais e a dimensão política da música do Bongar.
O lançamento do disco Samba de gira marca a trajetória de 15 anos do Grupo Bongar, e é um disco que contou com muitas participações. Como vocês veem o amadurecimento do grupo nesse tempo?
O Bongar nos surpreende, parece um organismo paralelo a nós integrantes. Acreditamos na energia, até porque viemos de uma comunidade tradicional, e que tudo permeia a partir da nossa questão religiosa. Chegar a 15 anos com uma trajetória de ter 4 discos num grupo de cultura popular, pra mim já é um grande marco. A gente lançou o 29 de junho, que foi um disco bem embrionário. Tínhamos a opção de gravar em estúdio ou no quintal da nossa família. A gente optou pelo quintal porque queríamos ter uma participação e uma identidade orgânica daquilo que a gente vivenciava na infância nos quintais da Xambá. Que é reproduzir os toques religiosos das cerimônias religiosas e transmitir isso para o disco.
Já no segundo, Chão Batido – Coco Pisado, a gente estava um pouco mais maduro, e sob a direção musical de Juliano Holanda, a gente foi pro estúdio e começou a conhecer esse ambiente. Foi um disco bem marcante. A própria capa, a gente botou a alfaia de Odé, que é o orixá que rege o grupo, e aquele instrumento na cultura africana de Odé é o que abre os caminhos e direciona para o ambiente no qual a comunidade possa se estabelecer e encontrar a fartura. Era o que a gente estava buscando. O diálogo com o piano, com a viola de Caçapa, com o violão de Juliano. A gente começou a apontar um pouco de hip-hop, na última música “Luz do Meio-dia”, que é uma música minha e tem participação da A Irmandade, Pácua (Via Sat), e já apontava que o Bongar tinha uma música capaz de dialogar com todos os outros elementos musicais contemporâneos e sem uma ideia de ter que lapidarmos a nossa música. A nossa música é muita profunda, sistemática, orgânica, pelo tempo que ela tem, de ser tradicional.

Depois disso, partimos para o DVD Festa de Terreiro, que é uma compilação dos discos e com coisas novas. Foi uma outra forma de a gente viver a nossa música. E o Samba de Gira, não porque são os 15 anos, mas é o trabalho mais maduro e, de certa forma, a concepção mais profunda do que é o Bongar, de onde a gente nasce. Ele é fruto de dois universos, o espiritual e o carnal. Ele foi concretizado graças a essa relação que a gente tem com a comunidade tradicional religiosa da nossa família. O disco nasce de um diálogo interessante.
Quando eu criei o Bongar em 2001, o nosso repertório, 95% dele, era baseado nos cantos religiosos tradicionais do terreiro, que eram cantados nas festas, e alguns cocos que cantavam na festa do dia 29 de junho (festa do Coco da Xambá). E teve uma situação muito simbólica, que só depois desses anos todos é que a gente veio entender. A gente foi tocar no Pátio de São Pedro, e uma Tia nossa, bem ranzinza, que pouco saía do Terreiro, Tia Tila, e na época era a Mãe de Santo que substituiu a minha Tia-Avó Biu, que faleceu em 1993, e ela ficou como minha Yalorixá. Fomos tocar no Pátio e ela entrou com um tio meu, Tio Ciço, filho dela, e com a nossa Tia-Avó Lourdes, que hoje é a Yalorixá do terreiro. Eles assistiram a apresentação e no dia seguinte ela mandou me chamar em casa. Quando cheguei ao terreiro, ela disse: “Olhe, gostei da apresentação que vocês fizeram, mas nada daquilo que vocês cantaram, vocês podem cantar”. Eu saí cabisbaixo e pensando, “E agora, o que é que a gente vai fazer?”. Eu costumo dizer que isso foi o melhor carão que eu levei na minha vida, porque a partir daí eu comecei a escrever música. Quem pega as minhas músicas hoje, e faz relação com as cantadas no dia a dia do terreiro: o universo poético, a mensagem simbólica… Não fica muito distante do que é cantado nos terreiros.
O músico Benjamim Taubkin fala no documentário sobre vocês, que até parece que as suas composições têm 100 anos, ao mesmo tempo em que são contemporâneas.
Quando ele falou isso, eu fiquei até refletindo depois, porque realmente eu não tinha notado isso. A ficha caiu só depois. Até por situações que vou contar agora. Há mais ou menos três anos, eu recebi um e-mail de um Terreiro de Umbanda de São Paulo. Eles fazem uma festa anual para angariar fundos para o terreiro. Eles pediram pra liberar a música “Na boca da mata”, que eles iam botar num CD e vender para ajudar o terreiro. Eu pedi pra Mari (produtora do grupo) entrar na página e ver o trabalho deles e acabei liberando. Mas ele dizia uma coisa interessante no e-mail: “A gente está usando essa música pra abertura dos nossos rituais religiosos e as entidades incorporam”. Eu disse, nossa, que loucura. Eu até brinquei: “No passado a gente foi proibido de cantar e agora estou tendo que liberar pros caboclos descerem na minha música” (risos).
Eu tenho uma relação muito forte com a entidade da minha avó e que também a minha tia hoje recebe, que é Zé Molequinho. Um mestre que canta comigo no final de Samba de Gira. Na última música, que é uma composição minha, que minha tia incorporava e eu ensinava o mestre a cantar. E a gente gravou essa situação. Eu estava em casa e a entidade mandou me chamar. Queria que eu fizesse um coco no dia da cerimônia. O engraçado é que quando cheguei lá, ninguém cantava os pontos tradicionais, só cantava os cocos do Bongar durante o rito religioso.

Foi a primeira vez que você presenciou isso?
Sim. Eu fiquei… Que negócio louco, o ato religioso em que toda a música é o repertório do Bongar e não a música que minha tia me proibiu de cantar no Pátio de São Pedro. Então, uma conversão muita louca assim… E daí vem o Samba de Gira. Gira no universo afro-indígena significa a aglutinação de todas as pessoas possíveis do mundo carnal e espiritual. O nosso disco chegou revelando a capacidade incrível do universo musical afro-indígena brasileiro. O quanto a juventude de periferia, preta, compreende esse universo espiritual, religioso, e transformar isso no artístico.
Pra realizar qualquer ação, a gente comunica aos nossos ancestrais, nossos orixás. Pra saber a cor do figurino, o nosso repertório. É um sistema muito complexo, mas pra gente é muito fácil porque nascemos e crescemos dentro de uma comunidade que reproduz ritos há décadas. Pra gente montar um repertório pra determinados ambientes é fácil devido a essa repetitividade de décadas de ritos. A gente quando vai pro palco, a gente monta pautado na dinâmica religiosa de nossa família. E às vezes as pessoas não entendem, acham que é só uma brincadeira. Mas tem todo um complexo que faz o que a gente é hoje no Bongar. Benjamim e Juliano definiram como “tradicional contemporâneo” no DVD, talvez eu compactue com eles sim.
Dentro dessa dinâmica de mercado, com os editais culturais, e a própria existência e manutenção do Centro Cultural do Bongar na periferia de Olinda, como é lidar com o Estado? O que você acha das políticas culturais que existem, se o Centro tem algum apoio…
O centro cultural não foi dado de mão beijada. A comunidade foi reconhecida em 2006 como quilombo urbano. Três hectares. Dentro desse perímetro se passou a ter um olhar especial do Governo. Deveria ter, por ser o primeiro do Norte-Nordeste e o terceiro do país. Dentro desse espaço qualquer transformação urbanística, a partir do reconhecimento, teria que ser tratada com muito cuidado. O reconhecimento foi via federal. Depois o município de Olinda também reconheceu. Depois veio a proposta do Governo do Estado da construção do terminal de ônibus. A gente tinha conhecimento que não era possível por lei construir dentro desse perímetro o terminal de passageiros TI Xambá.
O local escolhido foi justamente o quarteirão onde tinha a ruína da fábrica de gelo, que dá o nome do local, Portão do Gelo. Era o único prédio arquitetônico de grande porte que existia da década de 1950 aqui quando a comunidade chegou. Passado o tempo a fábrica se extingue, a Celpe compra o espaço e fica utilizando como depósito de materiais. Depois abandona. Nos anos 1990 ativa como escritório e depois abandona e ficam aqui as ruínas. A gente usava pra fazer ensaio. E aí vem a ideia da construção do terminal. Cientes de algumas leis que vetavam, a gente foi pra cima e o Bongar era totalmente contra a instalação do terminal, por entendermos que esse equipamento alteraria a dinâmica comunitária. Mas infelizmente os governantes que chegaram ali tinham leis pra tudo. A lei do uso do bem comum maior. Eles alegavam que o equipamento como o terminal ia atender 54 mil pessoas e se a comunidade tem 3, 4, 5 mil pessoas, não pode inviabilizar o “benefício” para a maioria.
A gente entrou na fase das compensações. Como amenizar os impactos? A gente conseguiu mostrar pra eles a importância de ter um centro cultural e também alterar a disposição do terminal. As ruas principais da Xambá iam se transformar em vias de ônibus. Outras ruas iam cortar pra sair na Zona Norte do Recife. A gente percebeu que ia mudar totalmente a nossa vida. Porque as ruas onde a gente cresceu jogando bola, fazendo as atividades culturais iam se transformar em vias de ônibus. Conseguimos inverter a posição do terminal e garantir a construção do centro cultural. Quando vem a proposta do Governo o Grupo Bongar já estava muito fortalecido, conhecido pela música. Dentro do próprio Governo tinham pessoas que conheciam o nosso trabalho e sabiam o que isso danificaria a comunidade. Eles nos atenderam, de certa forma.
“estamos deslocando para um ambiente periférico uma agenda cultural. Algo que a gente já vem realizando desde que recebemos esse centro cultural em fevereiro.”
Hoje, temos o centro cultural na periferia e fomos contemplados no último Funcultura com o projeto “Um quilombo cultural”. A gente vai montar uma agenda durante um ano com ocupação de matriz africana aqui no Centro. Com cachê e estrutura mínima de apresentação. Consequentemente, estamos deslocando para um ambiente periférico uma agenda cultural. Algo que a gente já vem realizando desde que recebemos esse centro cultural em fevereiro. Todas as nossas ações estão sendo realizadas por esforços nossos. Até agora nenhum governante do Estado veio aqui pra ver nada.
Mas nem pra conhecer o espaço?
Ninguém. A Secretaria de Cultura não veio. A Secretaria das Cidades, que foi a responsável de construir, só veio no período da construção e depois de entregar ninguém mais veio. Acho que o secretário nem sabe que a gente existe. Já saímos em matéria de jornal, lançamento de disco da gente foi matéria de jornal. Eu sei que os governantes ligados à cultura estão sabendo, mas ninguém nem da Secretaria de Cultura de Olinda veio aqui.
Porque há um entendimento desse momento que o Brasil vive, da crise moral, política, financeira, e principalmente da crise moral da esquerda brasileira, que ela hoje está se cabeceando porque a gente chegou tão perto, teve uma oportunidade tão gigante de fazer algo diferente e a gente se vestiu com mais do mesmo. Eu não sou esquerdista, não sou direitista. Mas tenho o posicionamento de comunidade. Eu sempre digo, acho que é uma verdade, que depois que a esquerda assumiu o poder, de fato o Brasil se endireitou de vez. Não tem mais esquerda ou direita, tá tudo no mesmo bojo. Os que dizem serem de esquerda têm que repensar os seus posicionamentos. Nós temos uma posição muito clara. Não apoiamos nenhum candidato e não temos pretensão de apoiar. Porque não acreditamos mais nesse formato. No momento que a política entender a dinâmica da cultura popular ela vai ser mais encantada. Vai ser mais bem ofertada para a população.
“[…]os governantes locais entendem que fazer política cultural é lançar edital. A gente vivencia a ditadura dos editais. O edital é uma ferramenta que deve sim existir dentro de um processo democrático de política cultural.”
Hoje, o Brasil avançou em muitas coisas, mas os governantes locais entendem que fazer política cultural é lançar edital. A gente vivencia a ditadura dos editais. O edital é uma ferramenta que deve sim existir dentro de um processo democrático de política cultural. Porém, não pode ser a única ferramenta pra manter as comunidades. Quando a gente vivencia a ditadura do edital a gente legitima a eliminação de outras ações. Se você utilizar o edital como o único instrumento de manutenção, se você não for aceito, não for bem avaliado, vão poder dizer: “A gente tem um instrumento democrático, você não teve capacidade de escrever um bom projeto, então, infelizmente o trabalho da sua comunidade não pode ser contemplado”. A gente tem que construir uma política, que dê uma condição que você nem queira se inscrever no edital desse ano.
Os festivais de música têm que oferecer o ineditismo para o público. O FIG soa pra mim musicalmente uno. O guitarrista toca a semana todinha, só muda o nome da banda. O violonista também. O timbre sonoro, mesmo que seja diferente, mas a identidade daquele músico está presente no festival todo. Só muda a banda. Eu faço essa crítica também para os músicos. E para quem pauta a programação. Claro que quem pauta não tem que dizer com quem o músico vai tocar. Mas isso deixa muito pobre o festival. E todo ano são os mesmos maracatus, caboclinhos. Isso é muito ruim.
Como é a circulação do Bongar em festivais fora do país? Dá um exemplo de festival que vocês tocaram.
Um festival que estamos retornando é o Festival del Caribe – Fiesta del Fuego, em Santiago de Cuba. Pra gente foi muito revelador. A gente durante um mês vivenciou três mundos de extremos paralelos. Fomos para Belfast, na Irlanda, a convite da Secretaria de Cultura de lá. E chegamos num país de primeiro mundo onde demos aulas em escolas públicas onde estavam o filho do gari e o filho do juiz. A gente sem falar inglês, com tradutor, e tendo que entender que a gente foi convidado pelo Secretario de Cultura de lá porque ele veio aqui no festival Olinda Jazz, conheceu a nossa casa e entendeu que o Bongar seria um grupo capaz de fazer um diálogo entre os jovens protestantes e católicos. Passamos uma semana dando oficinas de percussão e entendendo um pouco esse conflito. Depois voltamos pra nossa casa e em seguida fomos pra Cuba. Chegando lá levamos um “murro na cara”. Saímos da Irlanda, de uma sociedade extremamente rica, de um padrão social incrível, viemos para o Brasil, intermediário, e fomos pra Cuba, que é um extremo total de determinadas situações de vida. Porém, outras incrivelmente muito ricas, como a cultura e o entendimento da relação com a espiritualidade. Na nossa casa a gente não bebe e nem fuma nos atos religiosos. Em Cuba passamos por vários atos religiosos em que o rum e o charuto eram os elementos condutores principais do processo. Isso teve um impacto muito grande pra gente. Ao mesmo tempo, a libido. As pessoas participavam dos atos sem camisa, de bermuda. A sexualidade muito aflorada durante o processo. Algo que não acontece na nossa família.

Uma coisa importante do Bongar é que a voz de vocês no palco não é pedagógica, mas há uma preocupação musical, poética… Quando a voz no palco é criativa ela é muito mais potente do que só um discurso…
Justamente. Tem coisas que acontecem com o Bongar. Por exemplo, quando a gente foi tocar na MIMO a minha caixa de e-mails lotou. De vários amigos. “Ah, Guitinho, fala disso, fala isso…”. Eu disse pra Mari que não tinha condições de eu ir para um show e fazer críticas pautadas pelo que as pessoas acham. A gente subiu e fez uma crítica ao próprio festival, que depois o pessoal ficou chateado. Mas a MIMO tem que se abrir mais. É um festival que está dentro das igrejas, mas o Xambá e outros terreiros estão abertos pra receber. Ia ser uma coisa linda levar para a periferia uma parte da MIMO. Um terreiro receber um músico e tocar lá dentro… Você falou bem, a nossa música, a nossa estética já responde um monte de coisas. Mas eu pontuo uma coisa ou outra. Então, uma coisa que o Bongar consegue fazer bem é pegar a própria música e fazer a crítica. oc
Foto: Núcleo de Produção OI Kabum Recife
Publicada originalmente na ed. 12 da revista Outros Críticos.
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