
por Carlos Gomes.
Neste exato momento, enquanto escrevo, enquanto você lê, cai por acaso nesta página, Juliano Holanda está compondo uma nova música. Uma que talvez nunca escutemos, já que pode ser desde uma melodia, pedaço de letra, harmonia que seja. A arte de Juliano está em compulsivamente criar; o prazer incide nessa ação natural de quem vê na música muita mais que uma profissão. Não são músicas para o mercado. Tantas criações justificam o número considerável de canções gravadas. 200? Quem terá essa conta? É tanto, que o músico é afeito à parceria, seja mesmo na composição ou nas inúmeras bandas que ele teve e continua a ter. Juliano não recusa a convites, pelo menos aqueles que mantenham o brilho da criação, o mesmo absorvido na infância, na companhia do também compositor-pai Júlio Holanda. É desse brilho que procura tratar o artista em seus álbuns. Invisível persona, visíveis canções.
Em 2013, você lançou ‘A arte de ser invisível’; no site do Álbum Itaú Cultural, você fala que esse disco – o título da entrevista é “Correção de rota”- é como se fosse uma correção de rota na tua carreira, e o entrevistador fala em “sair do anonimato”. O título do disco também remete a isso, o “invisível”. Eu queria que você começasse traçando a tua rota como instrumentista e compositor, nesses últimos anos, pra a gente entender essa “correção de rota” que você menciona. A “correção de rota” é porque quando eu comecei a trabalhar com música, o que sempre me encantou, apesar de eu ter começado muito novo, foi a composição, porque meu pai compõe. Então, eu já tinha o contato, de ver uma pessoa compondo, como é que se constrói, partir do zero para alguma coisa. O aspecto da música que sempre me interessou foi a criação, do que, propriamente, o “criado”. Mas, pelos processos das coisas que vão acontecendo, eu acabei me tornando mais instrumentista, produtor, do que compositor, durante muito tempo. Acho que isso aconteceu porque eu era muito novo e tocava razoavelmente bem, pra minha idade, principalmente.
Violão? Violão. Depois, guitarra. Era engraçado ver um menino novo tocando música de Chico Buarque, Walter Franco, Janis Joplin, coisas assim. Assim, começaram a pintar alguns trabalhos. Primeiro com artistas que conviviam com meus pais. Depois, com os amigos do bairro eu formo uma banda, que era uma coisa mais minha. Quando você começa a tocar com uma banda, o primeiro papo é “vamos fazer cover”. Eu estava aprendendo a tocar, eu não sabia como era tocar numa banda. Essas bandas de covers foram evoluindo para outras coisas. Toquei muito música que tocava na rádio, na época. Em um terceiro momento, tocavam na rádio de uma forma rentável, comecei a receber por isso. Então, toquei muito em banda, em baile, trio elétrico. Mas essas coisas que eu fiz no começo, eu nunca fiz porque precisava viver daquilo. Eu era muito novo, morava com meus pais. Eu fiz porque eu queria aprender, saber como era passar por aquilo. Na época, eu achava que pra ser o músico que eu gostaria de ser, teria que entender como era esse formato. Fazer um baile de quatro, cinco horas, se eu conseguia. Me testar, também, saber o quanto eu era capaz de desenrolar. Eu acabei entrando nessa de instrumentista, muito por isso, embora paralelamente, sempre compondo, fazendo minhas músicas, colocava numa banda em que eu estava tocando. Foi mais ou menos isso, até os vinte e poucos anos. Meu primeiro casamento foi entre vinte e um ou vinte e dois anos, então, eu saí de casa muito cedo. Sair de casa, pra mim, sempre significou viver por si, me sustentar. Nessa época, eu já tinha um grupo de amigos músicos mais próximos, como Breno Lira, Tomás Melo e Publius. Foi quando começaram a surgir pequenos grupos de maior expressão artística, que o desenrolar vai chegar na Azabumba, quando eu conheci Gustavo Azevedo.
A Azabumba foi o seu primeiro trabalho autoral? Foi. Foi um momento pra gente que surgiu a possibilidade de desenvolvimento de um trabalho que tinha esse peso autoral mais forte, de criar uma sonoridade sem estar preocupado com o que iria rolar comercialmente. Ficou conhecido como um momento da época, também, que estava surgindo. Havia Mestre Ambrósio… foi, mais ou menos, metade do movimento Mangue, depois do Afrociberdelia. Mestre Ambrósio tinha o segundo disco. Foi quando surgiu a Azabumba. Posso está errando a cronologia, mas é mais ou menos isso. Cordel do Fogo Encantando começando. Quando saiu o primeiro disco do Cordel, a gente já existia como banda. O disco saiu em 2005, mas ele começou a ser gravado dois anos antes de sair. Demorou muito tempo pra ser gravado. Mas é uma banda que, pra mim, foi muito determinante – a relação de amizade com Gustavo Azevedo, Publius, Rudá, Bruno Vinezof, a galera da formação primeira do disco, porque tiveram outras – pois a banda também era um laboratório, a gente podia testar coisas. Publius também compunha, a gente começou a fazer música juntos. No primeiro momento que eu entrei – ele e Gustavo já eram da banda – Publius fazia as músicas dele e eu as minhas, depois a gente começou a colaborar, Gustavo também…
A próxima etapa foi o Rabecado? Quando Azabumba grava o disco, acontece um problema interno na banda, aí a banda quase se desfez. Só não se desfez por causa do Rabecado, que acabou sendo a “liga” da história, porque Gustavo já fazia um forró em Olinda, e a gente já frequentava. Um dia, eu fui pra dar uma olhada, no outro levei o baixo, a gente já tinha algumas músicas ensaiadas, aquilo foi se criando e virou uma banda. Mas foi uma coisa que foi acontecendo naturalmente, em momento nenhum a gente parou e pensou em fazer uma banda de forró. Rabecado foi surgindo por conta da amizade que a gente sempre teve – tem até hoje – e gostávamos de tocar juntos. Como a Azabumba estava na “geladeira”, não estava fazendo show, a Rabecado foi o playground, pra gente brincar, se divertir, e acabou gerando grana também, porque a gente tocava todas as quartas-feiras, religiosamente, no Bar Virgulino Cachaçaria, na Rua do Sol, durante três anos. Só que, nessa época do Azabumba – a cena recifense tem a primeira etapa de ruptura, que é quando surge a Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, depois tem uma etapa muito regionalista. Não gosto dessa palavra “regionalista”, mas tem uma valorização da cultura popular muito forte, que é quando a gente aparece, também. É quando surge Cordel, Mestre Ambrósio se solidifica, a Comadre Florzinha, Chão e Chinelo, Chocalhos e Badalos. Eram grupos que, mais ou menos, se frequentavam e tinham referências próximas. Naquele período parecia ser um caminho a seguir. Tinha a descoberta particular de todos, de se voltar para a realidade do estado de Pernambuco. Todas essas bandas acabam sendo fruto disso, porque, embora Cordel e o próprio Mestre Ambrósio tenham começado a apontar para outros lugares…

Parecia um caminho natural pra vocês? Foi. Havia os lugares que a gente já tocava, um público já frequentava. Tinha uma inocência muito grande, no processo. Não uma inocência ruim, mas boa, de descoberta mesmo, de aprender sobre seu estado, seu lugar – que eu sinto falta, hoje em dia. No momento seguinte, há uma aversão a isso. Na época em que eu tocava guitarra, acabei indo para o baixo muito por isso, porque guitarra, nesse período, virou palavrão. Nenhuma banda, das que eu falei, tinha bateria, nem guitarra. Chão e Chinelo e Mestre Ambrósio tinham, mas começaram a diminuir. Hoje em dia, está acontecendo o oposto, que penso ser resultado da internet, da facilidade de acesso às coisas. Nessa época, eu conhecia Ave Sangria, Marconi Notaro, Flaviola, porque eu tinha esses discos do meu pai, como eu tenho até hoje, os vinis originais da época. Mas nem todo mundo tinha acesso a isso. Então, foi um recorte daquele período, também, da música feita em Pernambuco.
Quando essas bandas surgem, logo após o Manguebeat – a influência dos ritmos regionais, do maracatu, do coco… Parece que foi um estalo. Ninguém pensava nisso, e Chico Science, de repente, pensou, ou era algo natural, só que o mercado, ou a mídia, não dava a devida atenção? Quando a gente começou a fazer, Chico Science já existia como banda. Mas, assim, eu nasci em Goiana, então eu já conhecia o Cavalo Marinho. Talvez, o grande estalo do que foi o movimento Mangue foi a possibilidade da síntese, como ele fez, porque já tinha sido feita por outras pessoas. O próprio Alceu Valença já tinha feito, e outras bandas. Geraldo Azevedo tem maracatu. No disco De outra maneira, na última música é um maracatu, que depois ele regravou no disco Berekekê, isso, muito antes de Chico Science existir.
Nessa época, como vocês viam o trabalho que Chico Science & Nação Zumbi faziam e, ao mesmo tempo, o trabalho de Antônio Nóbrega, Antúlio Madureira… Por exemplo, Ariano Suassuna criticou o Manguebeat quando surgiu. Era um racha que vocês tentavam resolver, fazendo música, ou não tinha como se resolver isso? Tinham muitas discussões, de diversas naturezas. Desde tipo de timbragem, a gente conversava muito, entre os músicos, sobre opções e… Quer dizer, passou a se conversar um pouco depois. Em primeiro momento, nem se conversava muito sobre isso, simplesmente aconteceu. Acho que isso eram coisas que coexistiam. Talvez o mundo, na época, não fosse tão preto e branco, como é hoje em dia. Acho o mundo hoje mais… Dividido em nichos? É. Na época não tinha essa coisa tão dividida assim. Então, o cara que gostava de Nóbrega também gostava de Chico Science. Ariano sempre teve uma posição de bastião protetor de um certo feudo cultural, que também tem o mérito dele, porque era necessário que alguém se colocasse de uma forma mais crítica, em relação a algumas coisas, pra não ficar aquela coisa de estar puxando só pra um lado. Não pra baixo, mas criando um suporte pra um certo lado. Não sei se da parte da gente havia tanto problema com isso, não. O Sá Grama estava começando, que já era Armorial, mas apontava pra outro caminho. O próprio Antúlio já é Armorial, sem ser. Acho que coexistia. Eu não percebo uma ruptura.

Na tua trajetória, como chegou a Orquestra Contemporânea de Olinda? Pra quem vê de fora, a Orquestra parece ser montada para servir ao propósito daquele som. Como se fosse destinada a músicos mais experientes. A Orquestra foi um projeto de Gilú Amaral. A gente já tinha trabalhado em alguns projetos, acompanhando artistas ou em trabalhos individuais. Uma vez, ele fez um show em Olinda, chamou alguns grupos, algo do que seria a pré-Orquestra, e eu fiz parte – a gente é amigo há bastante tempo. Na verdade, o projeto foi ele quem realizou. Ele queria um grupo que fosse essencialmente olindense – se é que existe uma coisa assim –, que tivesse uma pegada de música dançante e elaborada, ao mesmo tempo. Olinda tem uma coisa muito forte com a África. Então, essa referência a gente sempre teve e tem até hoje. Até porque, talvez seja este o elo de ligação de todos que estão na Orquestra, o gosto pela música africana. Então, você vai achar coisas de Cabo Verde, de Angola. Isso foi no começo do Afrobeat. Tinham os metais. O Fela Kuti foi uma referência, principalmente no começo. A banda foi pensada, houve um direcionamento na construção.
Em “Pra saber ser nuvem”, a guitarra tem uma presença semelhante a uma segunda voz, em que vai costurando as melodias junto ao teu canto. Esse tipo de arranjo é característico no teu trabalho, de uma forma geral, ou foi uma necessidade que quisesse fazer justamente nesse disco? Foi uma coisa do disco. Porque eu queria o “Nuvem” com um conceito claro e definido. Então, pra mim foi natural partir de uma instrumentação única: baixo, bateria e guitarra, embora tenha viola e baixo acústico, mas, estruturalmente, é basicamente a mesma coisa. Tem um pouco a ver com o jeito que eu toco guitarra, com o fato de que eu não me considero um cantor tão desenrolado, é um processo que ainda estou desenvolvendo. Mas por outro lado, já me considero um guitarrista mais fluente. Então, ter a guitarra próxima da voz, também foi um jeito de dizer, “Olha, vamos lá, estou por aqui”. Porque a guitarra é um ambiente que domino mais. Não foi uma muleta, mas algo parecido, onde eu pude me apoiar mais. Tem a guitarra pendurada junto com a voz, uma relação – é verdade, isso. Mas é um disco que tem muito da participação de Tom Rocha e Areia. O disco tem muito do trio, também, diferente do “Arte”, que é um disco que não tem formação fixa – embora tenha Tom e Areia, também, mas tem interferência de muitas outras coisas –, e também possui vários overdubs, eu toco vários instrumentos, no “Arte”.

Para o projeto Dois Sons, você gravou duas músicas com Matheus Mota. Como você conheceu o trabalho dele? Quem me falou dele primeiro foi Rodrigo Édipo, numa assim de “você precisa conhecer. Conheça esse cara que é legal”. Eu o vi tocando, pela primeira vez, num evento do Outros Críticos, no Paço Alfândega, teve uma entrevista e um show dele. Foi a primeira vez que o vi ao vivo. Ouvi alguma coisa no SoundCloud, depois, fui ver o show. Achei bem interessante o trabalho dele, a forma como ele abordava. É uma coisa muito ímpar dentro do cenário, de uma forma geral. Tem um tipo de musicalidade, cuidado melódico, sofisticação que nem todo mundo dessa área de música mais alternativa tem. Depois a gente se conheceu, dentro do processo da vida. Quando rolou o convite, a gente fez as músicas juntos. Foi massa porque a gente também discutiu se faria o esquema de um gravar a música do outro, mas a gente acabou chegando num consenso que ambos somos, acima de tudo, compositores. Então, por que não compor coisas específicas, né? A gente fez duas músicas, gravamos, chamamos um baterista pra participar, Daniel, e Isadora Melo pra cantar com a gente. A composição das duas músicas foi um processo bem simples, a gente se entendeu muito no processo todo. Não houve nenhum tipo de embaço. Foi tudo muito simples, prazeroso e ambos entenderam a música um do outro. Eu gostei muito do resultado, acho que ele também gostou.
Gostaria que você falasse sobre a cultura do show gratuito, principalmente aqui em Pernambuco. Com as mudanças de mercado, o show é a sua principal renda? Eu não gosto de pensar que o show é a única fonte de renda. Até porque eu me considero compositor. Se o show for minha única fonte de renda, estarei em apuros. Talvez o show seja a principal fonte de renda do técnico de som e do cara que aluga o palco, do que está por trás do show. Mas existe música que não é pra show, exatamente. Há formas diferentes de você apreciar aquilo. Esse discurso de que artista vive de show é recente. Garanto a você que não foi um artista que começou a dizer isso. Me soa mais como uma coisa de gravadora, ou imposta por algum nicho econômico, e as pessoas acabaram introjetando isso, e começaram a achar que fosse verdade. Mas o show é uma fonte de renda. Existem outras mil possibilidades, assim como existem mil possibilidades de formatos de shows diferentes. Você não pode pensar que ele só tem aquele modelo de formação. Aquilo é um trabalho que ele está fazendo. Mas o cara tem que ser mais do que aquilo, senão ele fica… Não tem valor… Ele precisa ser polivalente artisticamente porque isso é ser artista. Recife vem passando por esse processo, embora eu perceba uma diminuição. Mas teve um período que havia, praticamente, só show de rua. Inclusive, isso influenciou na própria sonoridade das bandas. Você vai ter poucos grupos com músico mais introspectivo, de tocar a música pra ser ouvida. Acabou que tudo ficou virando muito groove, direcionou um pouco a produção do que foi feito no estado – o que não estou dizendo que é ruim, é uma coisa que você percebe, observando. Mas de um tempo pra cá eu percebo um desenvolvimento de grupos que não têm essa postura, que estão vivendo à margem desse formato. Não acho que seja um problema, mas acho que pode ser um problema quando o músico ou o empresário se vicia num único formato. O fato de você estar numa grade de eventos de uma prefeitura ou do governo do Estado, não deve anular o show que você faz com bilheteria. O show feito “pré-pago”, digamos assim, deveria ser a exceção, o incentivo, de alguma forma, para criar um capital de giro, e não a pessoa viver, exclusivamente, do dinheiro do poder público. Que a vida real, na verdade, é a do borderô. Aquela que quando você acaba, recebe o cachê. O outro lado tem mais a ver com questões políticas, digamos assim, de relacionamento. Tem a ver com questões que não estão, necessariamente, ligadas à música. Também não sou desse discurso de ter que ficar o tempo todo malhando, porque isso é horrível. Eu não acho horrível. Num dado momento, atrapalha, mas as pessoas têm que se organizar e se adaptar a esse tipo de realidade. Tipo, eu posso não querer pagar pra ver um show do Eddie que ele vai fazer no Marco Zero. Mas o Eddie pode fazer um show que eu queira ver em outro formato, e eles são capazes de fazer, num lugar fechado, com público reduzido. Tanto posso ir ver o show feito no Marco Zero como o outro também, com outro tipo de abordagem.
Publicado originalmente em março de 2014, na 2ª edição da revista Outros Críticos.
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