
por André Dib.
Após estreia sete vezes premiada no Festival de Brasília e lotação no Cinema São Luiz no último Janela Internacional de Cinema, o longa pernambucano Brasil S/A ganha novo fôlego: acaba de ser selecionado para a mostra Forum do 65º Festival de Berlim. Como define o próprio festival, o Fórum Internacional do Novo Cinema (nome não abreviado) é a parte mais ousada da Berlinale, dedicada a “avant garde, trabalhos experimentais, ensaios, observações de longo prazo, de cunho político e paisagens cinematográficas ainda a ser descobertas”.
Na última edição da revista Outros Críticos, com o tema “Estética e Política”, de dezembro de 2014, escrevi um artigo sobre Brasil S/A e conversei com Marcelo Pedroso (diretor) e com o músico e autor da trilha Mateus Alves. A entrevista na íntegra com Mateus está sendo divulgada aqui no site. O músico fala sobre o processo de criação com Pedroso, repassa a sua carreira como músico especializado em cinema e antecipa os próximos projetos.
Em que filmes você já trabalhou?
Na segunda metade da década de 2000, como integrante da banda Chambaril, comecei a trabalhar com música pra cinema. Nessa época, fizemos a trilha – em parceria com Tomaz Alves Souza (meu irmão) – do primeiro longa da Símio Filmes, Amigos de Risco, dirigido por Daniel Bandeira; depois, fizemos também a trilha do filme Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes (REC Filmes).
Após esses trabalhos, passei um tempo fora (2011/2013) fazendo um curso de mestrado em composição, e foi como parte dele – estudei também “Música para Cinema” como eletiva – que iniciei meus primeiros dois primeiros trabalhos “solo”: as trilhas dos curtas Em trânsito, de Marcelo Pedroso (Símio Filmes), e Rodolfo Mesquita, Monstruosas Máscaras de Alegria e Felicidade, de Pedro Severien (Orquestra Cinema Estúdios). Após esses dois filmes foi meio natural continuar trabalhando em conjunto com os dois diretores citados, então fiz a trilha do longa Brasil S/A, de Pedroso, e trabalhei na trilha de Loja de Répteis, de Severien, com os amigos Piero Bianchi e Vinicius (Leso) Nunes.
Tinha percepção musical do cinema antes de compor para filmes?
Considero que minha família é de cinéfilos: meus pais vão pro cinema toda semana e meu irmão, além de também trabalhar com trilha sonora, é praticamente “viciado” em filmes. Logo, foi natural pra mim ver filmes desde muito pequeno e, na medida em que fui me tornando músico profissional, passei também a ouvi-los com mais atenção – não apenas a trilha em si, mas também o som, algo que vem despertando cada vez mais o meu interesse.
Meu gênero preferido de filmes é a ficção científica, portanto, acho que foi com Star Wars que começou essa escuta mais aprofundada – John Williams (compositor das trilhas de Spielberg), por exemplo, é uma grande referência pra mim até hoje (ainda fico apreensivo quando ouço a “Marcha Imperial” e aquele som da respiração de Darth Vader!). Com o tempo, fui também me aproximando de faroestes (até porque meu pai e meu irmão são fãs de carteirinha) e foi aí que Ennio Morricone “entrou na minha vida”. Considero esses dois compositores, assim como Howard Shore, Angelo Badalamenti e Bernard Hermann, as minhas grandes referências. Eles “soam” na minha cabeça desde que eu sou pirralha e seus trabalhos funcionam como um norte – muitas vezes inconsciente – na hora que vou compor pra algum filme.
Qual sua formação profissional?
A minha formação profissional – que se mistura com a acadêmica – começou há mais de 10 anos atrás quando comecei a tocar baixo elétrico em bandas pop e de música instrumental de Recife. Profiterolis, Granola, Embuás, Ahlev de Bossa, Chambaril e Catarina dee Jah são alguns exemplos de grupos (e artistas) com os quais trabalhei. Na minha experiência com bandas, tive a oportunidade de trabalhar em arranjos e compor uma ou outra música pras bandas instrumentais, sendo estes os meus primeiros trabalhos criativos em música.
No entanto, considero que minha vida de compositor começou mesmo quando entrei na Orquestra Sinfônica Jovem do Conservatório Pernambucano de Música (OSJCPM) em 2008. Dois anos antes, em 2006, tinha iniciado o curso de Licenciatura em Música na UFPE, assim como o estudo do contrabaixo acústico – antes disso, na primeira metade dos anos 2000, eu estava meio “perdido” e acabei cursando dois anos de Ciências da Computação e dois de Bacharelado em Física, mas “logo” vi que meu negócio era música mesmo… Enfim, foi entre os anos de 2008 e 2011, dentro da orquestra, em contato direto com o vasto repertório sinfônico do Classicismo, Romantismo etc, e também estudando música na universidade, que passei a escrever peças pra conjuntos de câmara e pra própria OSJCPM, culminando na minha aprovação no Mestrado em Composição da Royal College of Music (Londres) em 2011. Em Londres, aprofundei meus estudos em Música Contemporânea e também em Música pra Cinema e, desde meu retorno, no segundo semestre de 2013, venho trabalhando constantemente com filmes.
Dentro da tua experiência, o que difere a composição para cinema das demais formas de criação musical?
No caso de compor pra cinema, seguimos uma orientação dada pelo diretor do filme: é como se houvesse uma “hierarquia” no processo criativo. Coloco as aspas porque acho que tenho a sorte de trabalhar com diretores que também são meus amigos, logo o processo de compor a trilha e até mesmo o filme é geralmente uma via de mão-dupla, onde um escuta o outro e vice-e-versa – muitas vezes participo do corte, por exemplo, trabalhando em conjunto com o diretor e o editor pra ver como uma determinada cena se encaixa melhor com a música etc. Já no caso de criar “música pela música”, a liberdade é completa e o único “chefe” é você, o próprio compositor – a não ser que você esteja trabalhando em alguma peça encomendada ou algo do tipo.
No meu caso, acho igualmente prazeroso (e também estressante) trabalhar com as duas possibilidades. Talvez a principal diferença entre as duas formas de trabalhar seja o fato do trabalho do compositor de “música pela música” ser relativamente individual, já no caso da música para cinema, trata-se de um trabalho coletivo, pois ficamos em contato constante com o diretor e outros membros da equipe (pelo menos na minha experiência até então).
Como foi a dinâmica de criação nos dois trabalhos feitos com Marcelo Pedroso?
Trabalhar com Pedroso é bem interessante porque ocorre a “via de mão-dupla” que citei anteriormente. Nos dois projetos em que trabalhamos – o curta Em trânsito e o longa Brasil S/A –, conversamos bastante sobre o conceitos dos filmes (que são bem semelhantes), afinando as ideias musicais com as propostas dos roteiros. Pedroso tinha em mente peças orquestrais pra ambos os filmes – que são basicamente filmes “mudos”, sem diálogos –, algo que coincidia com meus estudos de então.
No caso de Em trânsito, o trabalho foi iniciado quando eu ainda estava em Londres – ele fez parte, inclusive, do portfólio que fiz para o curso de “Música para Cinema” no mestrado. Esse processo foi um tanto complicado porque a troca de ideias era feita através da Internet, algo que ralentava um pouco o andamento das coisas. Quando retornei pra Recife, no segundo semestre de 2013, finalizamos a trilha rapidamente porque o curta havia sido selecionado para alguns festivais. Durante esse processo, já conversávamos sobre Brasil S/A e como um filme dialogava com o outro.
O trabalho de composição e gravação da música de Brasil S/A também ocorreu rapidamente por causa da seleção do filme pra festivais. Ao fim de mais ou menos duas semanas, me juntei com o amigo de longas datas Carlos Montenegro e o pessoal do Estúdio Carranca (Gera, Júnior e Carlinhos) pra gravar e mixar a trilha – a gravação foi feita no Seminário de Olinda. Acho que o momento mais importante da finalização da trilha foi quando Pedroso ficou doente e em casa durante uma semana, pois tivemos mais tranquilidade e paz pra mixar.

Brasil S/A também marca o nascimento da Cinemorquestra Pernambuco. Em que consiste esse projeto?
Essa orquestra foi “formada” porque, infelizmente, a Orquestra Sinfônica Jovem do Conservatório Pernambucano de Música (OSJCPM) está parada em 2014. O plano inicial, que eu vinha desenvolvendo com o maestro José Renato Accioly, era de gravar a trilha com a orquestra completa: mais de 70 músicos etc. No entanto, tivemos que “improvisar” e formamos uma orquestra de câmara, com cerca de 25 músicos, a qual batizamos de Cinemorquestra Pernambuco. Ela nada mais é do que a OSJCPM reduzida, com o acréscimo do violinista Clóvis Pereira Filho como spalla (primeiro violino).
A nossa ideia era abrir o leque de possibilidades de atuação da OSJCPM, proporcionando experiências musicais diferentes para os jovens instrumentistas do nosso estado, mas o trabalho da orquestra foi interrompido por entraves institucionais e estamos em plena luta para retomá-lo o quanto antes. A ideia ao formar esse “novo” grupo era também o de estimular outros compositores locais de música de concerto a entrarem no circuito de trilhas sonoras, utilizando-se da Cinemorquestra para por em prática suas ideias.
“Acredito que Recife e Pernambuco tem um potencial muito grande em termos de música orquestral e de câmara”
Acredito que Recife e Pernambuco tem um potencial muito grande em termos de música orquestral e de câmara e, com o nosso cinema em pleno desenvolvimento, não vejo por que não haver uma evolução também das trilhas, colocando a música orquestral, por exemplo, no rol de possibilidades para este fim. Esperamos também que um possível “renascimento” desse tipo de música para filmes em Pernambuco – que é a forma mais antiga de se fazer trilhas, por sinal – estimule também o mercado pernambucano como um todo (estúdios, teatros etc) a abraçarem essa possibilidade – no caso de Brasil S/A, por exemplo, tivemos bastante dificuldade para encontrar um espaço que comportasse 25 músicos e que fosse acusticamente viável.
Como você vê as relações entre arte, cidade e política?
Minha relação afetiva com Recife começou a se aprofundar quando fui pra uma apresentação de Chico Science & Nação Zumbi nos idos de 1994/95 – ele foi, na verdade, o primeiro show que fui na vida. Quando Chico Science entrou no palco e começou a cantar Recife etc meio que veio um pensamento na minha mente: “Eita, Recife é massa e eu não sabia!” Foi assim que vivi minha adolescência, acompanhando o Movimento Mangue e me inteirando dos problemas que a cidade enfrentava na época – no fundo, acho que eles não mudaram muito, talvez tenham só piorado um pouquinho… Cabe salientar que o impacto desse movimento, de uma certa forma, levantou a autoestima da cidade, fazendo com que muitas pessoas pensassem em seguir a carreira de músico – até então essa possibilidade profissional era simplesmente inexistente pra mim, por exemplo.
Outro momento que foi marcante no sentido de pensar Recife foi quando eu estava em Londres cursando o mestrado. Quando morei fora nem pensava se voltaria para casa ou moraria em algum outro lugar. No entanto, bastaram umas três semanas de gringa pra eu ter a certeza que tinha que voltar por vários motivos, entre eles o de tentar, de alguma forma, ajudar Recife a melhorar (lembrando que o principal motivo pra voltar foi o de não aguentar ficar longe do glorioso Sport Club do Recife).
Nessa época, o grupo Direitos Urbanos (DU) estava sendo formado, e passei a acompanhá-los nas redes sociais. Quando voltei, foi natural me envolver com a galera e comecei a participar da organização dos #OcupeEstelita – o que a gente não sabia na época era que a ocupação ia virar uma de verdade, estávamos organizando um evento nos “moldes clássicos”, do lado de fora dos armazéns, mas aí veio a coisa da demolição deles e quando vimos estávamos dormindo em barracas dentro do terreno.
“Acredito piamente no poder transformador da música – até mesmo por ver isso na prática através do trabalho educacional e inclusivo da Orquestra Sinfônica Jovem do CPM”
O Movimento #OcupeEstelita foi um aprendizado intensivo sobre o “desenvolvimento” de Recife/Pernambuco/Brasil, políticas urbanas, vida em sociedade e inúmeras outras coisas que envolvem um acontecimento (histórico) desse porte. Junto com uma galera massa, organizamos os vários ocupaços que rolaram e diversos outros eventos culturais, tendo a música um papel crucial pra promover e debater o movimento e a cidade. Acredito piamente no poder transformador da música – até mesmo por ver isso na prática através do trabalho educacional e inclusivo da Orquestra Sinfônica Jovem do CPM –, e o Movimento #OcupeEstelita comprovou isso de uma forma bastante enriquecedora e gratificante: acho que não apenas para mim, mas acredito que pra toda a cidade!
Ah! Vale lembrar que foi dentro desse contexto de lutas que finalizamos Em trânsito e Brasil S/A, filmes com temáticas (e críticas) sociais e políticas muito fortes e que dialogam diretamente (coincidentemente ou acho que não) com as questões levantadas pelo Movimento #OcupeEstelita.
Quais os próximos projetos de cinema?
Durante o processo de produção da trilha de Brasil S/A, fui convidado para fazer a trilha de dois novos curtas locais: Humanos, de Mariana Porto, e A Menina Banda, de Breno César. Além disso, estou em fase de pré-produção do meu primeiro curta-metragem, uma animação, cujo projeto foi aprovado no último edital do Funcultura Audiovisual – sempre brinquei de fazer filmes e agora vou ter a oportunidade de fazer um “de verdade” (espero que saia algo decente!) O nome do curta se chama Bolhas e estou pensando nele como um “filme-música”, onde o som também desempenhará um papel crucial na narrativa – nele vou contar com a parceria do amigo de longas datas e artista plástico Daaniel Araújo, o que com certeza vai me ajudar bastante a não estragar tudo… Ah! Cabe lembrar que as “Produções Estelita” continuam a pleno vapor, nelas estou sempre ajudando com a parte musical dos vídeos etc. OCUPAR?! RESISTIR!!!
Foto de capa do site: Renata Pires.
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