
por Carlos Gomes.
Paulo Paes transita entre Recife e Olinda. Suas canções rebatem uma lírica afetuosa repleta de cores cinzas – como ruas, ruído, fumaça e solidões – num mar imenso, verde, azul e ensolarado. “Porque o samba é a tristeza que balança.” E ao identificar sua trajetória artística entre essas duas cidades, com seus avessos, suas particularidades e poéticas próprias, Paes assume o risco e faz da música um estado híbrido e transitório. Seu canto aguça os ouvidos e desfaz as pré-disposições de quem ouve música popular brasileira. Sempre cercado de amigos-músicos, a criação – natural, orgânica – incide sobre a produção – planejamento, carreira – e todas as despedidas da música que ele ensaiou fazer, perante as dificuldades do ofício, tiveram que ser rechaçadas pela própria música. Ela dá a resposta para as perguntas que afligem a todos aqueles que percorrem o caminho autoral; a exemplo do “como viver de música?”, Paes levou certo tempo, mas descobriu a resposta.
Até chegar ao solo Paes, você colaborou com diversos músicos e bandas. Quais trabalhos foram determinantes para o momento que você vive agora? Seja como compositor, instrumentista ou mesmo como produtor? São muitos momentos. Só de banda foram umas quatro formações. Minha vida artística começou entre Recife e Olinda. Eu ia para as festas no Quintal do Rossi. Pras feiras de vinil, e aí juntava a Catarina Dee Jah pra discotecar. Eu ia vender vinis na feira e sempre observava as pessoas. Siba foi um cara que me incentivou muito, desde o começo, quando eu tinha 17 pra 18 anos de idade. E tinha acabado de lançar o primeiro EP com a formação com Sidclei (tocou com Ticuqueiros e Isaar), Lito Viana (já falecido, tocou muito com Isaar), e Claudio (um coroa que tinha uma empresa pra animais domésticos). A gente ensaiava na casa de Claudio, em Jaboatão. Esse trio foi quem primeiro acreditou em mim. Eu tentava pagá-los por ensaio. A todo show, mesmo que a casa não pagasse, eu tentava dar o mínimo do cachê. Eu sempre tentei preservar as relações profissionais para que a amizade não fosse prejudicada. Esses três caras foram muito importantes. Lito me falava uma coisa: “A vida escolheu pra você o caminho mais tortuoso, que é desde cedo assumir como principal objetivo o trabalho autoral. Você vai ralar muito, ter muito dificuldade. Não vai ganhar dinheiro. Vai pagar mais para os outros, mas um dia isso vai retornar pra você.” E eu hoje vejo isso se tornando realidade. Os meninos da Orquestra Contemporânea de Olinda foram importantes também. Gilsinho (Gilú Amaral), Raphael Barreto, que toca comigo. Tiné que também é parceiro em composições. Vários músicos tiveram uma importância pra mim… Maicon (que é um tecladista americano), Viola (de Olinda), Cila do Coco, Lia de Itamaracá. São vários músicos importantes.
Como você chegou nessa formação de Paes? Quando percebeu que essa era a formação que sintetizava o que você queria? Depois que eu me separei dos músicos de Olinda, eu formei a Urubu Clã, que juntava boa parte da Orquestra Contemporânea com outros músicos. Gravamos um disco, o Brisa. Ficamos tocando durante um ano e em 2009 desfiz a parceria – fizemos dez shows com essa formação – e fui montar outra banda. É bom citar outro músico importante dessa fase, o Iezu Kaeru, que toca hoje com Aninha Martins. A gente construiu uma amizade muito importante durante uns três anos. Depois tocamos juntos no Embuás. Ainda toquei com Igor de Carvalho e toquei e produzi o EP de Ana Ghandra. Quando eu entrei na AESO, tive uma experiência com Luiz Pessoa (Monodecks e D Mingus), com Bactéria, da Mundo Livre S/A e Rafael Gadelha (Laga), da Joseph Tourton, que foi o único músico que sobrou pra essa nova formação. Quando eu conversava com Filipe Barros (Bande Dessinée) pra produção desse disco, pensando na formação da banda, eu disse que queria montar a banda dos meus sonhos, pra chegar à sonoridade que em todos esses anos eu busquei, mas não consegui ainda. O meu som era muito influenciado por samba, bossa nova, uma coisa meio híbrida entre música brasileira e rock, mas não era bem definida. Sem Despedida iria culminar no som que eu quero partindo do disco para o show. Chamei Raphael Beltrão da época do Urubu Clã, Laga no baixo e Filipe Barros na guitarra. E depois entrou Ana Ghandra no backing vocal. E a gente vem de lá pra cá, uns dois anos. Ana se ausentou em alguns momentos e hoje faz participações. Chamamos Samuel Nóbrega, da Araçá Blue, pra tocar teclado. E aí fechamos o grupo. Quando Raphael não pode, Carlos Amarelo assume a bateria. Foi uma batalha de vários anos até chegar nessa sonoridade, tanto do disco quanto do show.
Construir um público ou uma “base de fãs”, como se costuma falar, é o ponto primordial para um projeto musical ser bem sucedido? Tom Zé, por exemplo, fala que trabalha para 30 mil pessoas. Até o momento do lançamento do disco, eu percebia que a formação do público de Paes era muito dispersa. Muito por conta de minha atuação na área. Tanto de conteúdos que eu lançava, quanto de atuação na internet, administrando as páginas. Era menos ativo. Então, se você não estiver criando conteúdo com fotos, vídeos, música nova, singles, o público esquece rapidamente o artista. Não estou julgando, é uma coisa natural. Mas eu não tinha essa noção. Acho que o que mudou muito o jogo foi eu ter entrado no curso de Produção Fonográfica da AESO e também de ter conseguido juntar uma banda por mais tempo, de ter consolidado o som que eu estava procurando. Tanto no disco, com os músicos e produtores que eu convidei, quanto na banda ao vivo. Então, estou há dois anos com a mesma banda. O show ganha uma unidade. Com o lançamento do disco, senti que minha carreira tinha começado de novo, como um ponto zero. Pronto: “Agora tenho um disco, uma banda e esse som que eu estava buscando há bastante tempo.”
Você lançou ano passado o disco Sem Despedida. Curiosamente, o disco passará por todos os formatos, já que está disponível on-line, em CD e você ainda pretende lançá-lo em vinil e fita cassette. Por que essa necessidade de registrá-lo de todas essas formas? São por várias necessidades. Quando eu comecei a fazer o disco há uns dois anos, eu sempre tinha o desejo de ter o vinil e um CD de fábrica. Porque todos os meus EPs anteriores foram lançados de forma independente, em gráfica mesmo. Eu inscrevi o projeto no Funcultura, mas não fiquei esperando. Lancei no formato digital e um disco promo (físico) com trezentas cópias. No meio do processo nós aprovamos o projeto e conseguimos prensar mil cópias. Foi uma grande felicidade. Porque é difícil, é caro. Eu já tinha tentado outras duas vezes. Eu pensei: “Pronto, consegui a metade dos formatos que eu queria.” Mas a ideia do vinil vem pelo áudio, da diferença de textura, de resposta de frequência, do tipo de reprodutor, da agulha, de como é gravado no acetato de vinil. E tem a parte gráfica como fetiche. Porque é maior, você pode ter outras possibilidades de diagramação, de adaptar a arte. A fita cassette já é uma loucura minha, que eu achava meio impossível fazer aqui em Recife. Nunca vi bandas ou artistas contemporâneos a mim lançarem fitas, ou ter pelo menos esse interesse em lançar. O mercado já é difícil pra vender CD e vinil em show ou loja. Imagina o cara gastar uma grana pra fazer em cassette, e ninguém mais tem tocador de fita. Os deck de fita, 3 em 1, tudo quebrado por aí, que eu vejo entre os meus amigos. Mas com todo mundo que eu falo que vou lançar, eles falam: “mas quem vai ouvir?” Mas não é pra ouvir. (risos) Apesar de que a lombra é ouvir, é fita magnética, tem toda uma história de gravar os códigos ali. Eu tenho um amigo, Zezé, que tinha estúdio até meados da década de 1990, chamado estúdio Z. Ele trabalhou na Rozenblit também. Teve loja de discos. Ele tem uns 70 anos. Já abasteceu vários estúdios daqui com equipamentos. Ele tem muito conhecimento de áudio analógico, inclusive é ele que me vende as fitas de rolo pra eu masterizar os meus discos. Todo mês eu estou indo lá aprender com ele. Numa dessas conversas sobre minha vontade de lançar em vinil e cassette, ele falou: “olha, tenho todas as máquinas aí.” Então, descobri que ele tem as máquinas que replicam treze fitas em um minuto, frente e verso, A e B. Ele tem umas quinhentas fitas alemãs guardadas, novas. Porra, eu tenho as máquinas, meu disco. Quando eu terminar esse processo vou juntar uma grana pra poder gravar essas fitas. Readaptar a arte também. E aí pretendo fazer uma tiragem pequena, de cinquenta cópias.
“O Sem Despedida está numa sobrevida, pelo tempo que lançamos já, […] mas já estou incluindo coisas novas, do disco que ainda vou gravar, o Mais Além.”
Cada formato carrega uma forma de escuta. É isso que você quer atingir, públicos com formas distintas de ouvir a sua música? Eu acho que é interessante passar por todos os formatos porque tem gente que só escuta em vinil. Que não compra mais CD. Além de eu ter uma representatividade maior numa reunião, num speed meeting, numa feira de música, um Porto Musical da vida. Apresentar em todos os formatos causa uma impressão diferente ao produtor, a quem está fazendo uma curadoria de festival. Vendo o artista se dedicando a fazer em vários formatos, se profissionalizando, pensando coisas diferentes. Para um mercado que hoje está nivelado por baixo. Tem gente que só escuta em MP3, no shuffle, mil músicas rolando. O cara não pega um álbum, não senta pra ver um encarte, a ficha técnica etc. Mas tem gente que gosta de ter o físico. E eu penso um pouco fora do Recife ou São Paulo, de alcançar um tipo de comercialização e de escuta, como eu vejo em muitas bandas estrangeiras, tanto da Europa, mas principalmente dos Estados Unidos, que eu acompanho. Eu as vejo lançarem nesse formato ainda, e até de forma artesanal, com impressão gráfica feita com serigrafia. Isso se torna um plus pro artista. Acho que o público gostaria de ter um produto assim. Sei lá, feito à mão, com tiragem limitada. Isso agrega muito valor à obra e quem vai consumir sente como se estivesse recebendo um tratamento diferenciado do próprio artista que ele admira. Então, isso é pra atingir todos os públicos, tanto o da internet que ouve de graça, sem doar ou comprar nada, que não quer ajudar o artista. Tanto pra quem ajuda a fomentar um produto, como o meu vinil, que vai sair através de um crowdfunding. O Sem Despedida está numa sobrevida, pelo tempo que lançamos já, e agora com as mil cópias prensadas teremos mais um ano trabalhando com elas. No show eu toco o disco inteiro, mas já estou incluindo coisas novas, do disco que ainda vou gravar, o Mais Além.

Você é um músico que trabalha em praticamente todos os processos da música, da concepção, passando pela gravação, produção, pós-produção, captação de recursos etc. É essencial, para o músico contemporâneo, conhecer pelo menos o básico de cada uma dessas etapas? E de que maneira a formação universitária ajuda nisso? Eu não digo que é necessário ou tão determinante assim. Existem várias maneiras de se atingir isso, de forma empírica. Eu mesmo aprendi muito assim, fora da academia. Vejo que com a formação nesses três anos, a minha carreira cresceu de forma significativa, no sentido de qualidade das coisas que eu lançava. Da preocupação com a qualidade final de cada produto. Eu acho importante, não necessariamente numa faculdade, mas em workshops, oficinas. Porque tendo essa noção geral, você não fica tão entregue aos técnicos de áudio que estão no estúdio ou num palco, pra poder no final tudo dar certo. E isso vale pra estética de uma forma geral, uma arte, figurino ou até um logotipo que você for usar.
“Eu me considero independente sob alguns aspectos. De eu mesmo exercer várias funções. Desse engajamento do it yourself, como herança do punk ou do manguebeat.”
O que o termo ‘música independente’ significa pra você? Eu gosto muito de brincar com isso. Porque o músico independente é o que mais depende. (risos) Eu mesmo não trabalho sozinho. Se eu fosse sozinho não teria conseguido nada, porque são trinta pessoas trabalhando juntas, entendeu? Eu dependo do esforço delas, da criação delas, da boa vontade, brodagem pra baixar o custo das coisas. Acho que música alternativa e independente são termos que estão meio diluídos na prática. Independente é criado pelo fato do artista não pertencer a nenhum selo ou gravadora mainstream. Eu me considero independente sob alguns aspectos. De eu mesmo exercer várias funções. Desse engajamento do it yourself, como herança do punk ou do manguebeat. De não ficar esperando o telefone vermelho, como a turma fala, tocar e lhe chamar pra trabalhar, tocar ou gravar em algum lugar. Isso não existe. Apesar de que eu achava que ia ser assim, que ia fazer minha música e o telefone ia tocar pra mim: “Paulo, você é ótimo, eu quero o seu show.” Nunca ninguém ligou pra mim. Todos os shows que eu consegui – eu fiz cerca de 50 shows com meu trabalho solo – nesses sete anos foram por eu ir atrás. Então, a gente é independente em certos aspectos – em relação à indústria, mercado –, mas em outros dependemos de um coletivo.
No livro Viver de música – Diálogos com artistas brasileiros (2001), do também músico Benjamim Taubkin, ele entrevista diversos artistas sobre questões relativas ao ofício do músico. Estando em Pernambuco, como é pra você viver de música? Quais as principais dificuldades? Todas as bandas passam por vários processos. E viver de música é como uma gangorra. Tem você viver compondo, escrevendo, e isso ser um alimento para o seu espírito, é a forma como você se comunica com as pessoas. É uma forma de interpretar o mundo também. E tem o fato de você viver dela financeiramente, como uma profissão. Você tem que pagar as suas contas. Quem decide ser profissional de música se desdobra em vários tipos de atividades relacionadas com a música. Não fazem só show e vendem discos. Esse formato foi completamente desconstruído. Eu acho isso importante. Ele traz um desafio para o músico aprender outras funções dentro da área. Eu pensava que só ia gravar, ensaiar e vender disco na loja, quando eu comecei com quinze anos. Hoje, eu estou fazendo produção musical de outros artistas, trabalhando como roadie pra outras bandas, enfim, me inserindo nesse mercado da parte técnica do áudio. Eu nunca imaginei que estaria exercendo quatro ou cinco atividades na minha área, e vejo o quanto isso está sendo positivo pra mim. Tanto pra aprender quanto a ter uma perspectiva nova, de viver disso financeiramente. Porque eu não quero ser funcionário de uma empresa – não desmerecendo quem faz isso – e transformar a música num hobby. Eu quero viver de música, independente da atividade, e ser satisfeito com isso. Eu estive próximo, em vários desses anos, em desistir. Os meus amigos riam da minha cara: “Tu nunca vai desistir. A tua essência é isso.” Realmente, eu não consegui, mas eu cheguei muito próximo disso. De trabalhar numa empresa de segurança armada e receber R$ 2.500,00 trabalhando dentro de um escritório, com gente que não é da minha área. Eu teria dinheiro, mas seria completamente infeliz. O tempo que eu estaria numa empresa e o que eu teria livre pra ensaiar, me reunir com outros artistas, compor, fazer show etc. Então, se é pra me jogar numa coisa, eu tenho que me dedicar 100%, pois se eu ficasse nessa balança, o maior prejudicado ia ser eu. Foi muito simbólico isso.
Isso aconteceu antes do Sem Despedida?Depois. O período do lançamento foi muito crucial. Eu estava com um disco lançado, pensando em perspectiva de shows, em grana, sem ter pai e mãe pra bancar. E aí eu tive um show no Flores Astrais, perto da UFRPE. E eu aperreado pra produzir esse show por conta de grana. Raphael (baterista) estava comigo e me consolando: “Calma, vão acontecer as coisas.” E chegou o dia do show. Eu passei o dia anterior transtornado, chorando quase o dia todo. Mas quando passou o dia, por conta da resposta do público na apresentação, foi essa resposta que me deu força, e também o desempenho da banda, pra continuar. Não foi aprovar um projeto ou ganhar uma grana. Foi essa a resposta.
Publicado originalmente na 4ª edição da revista Outros Críticos.
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