
por Carlos Gomes.
A banda Rua é envolta em interdições. Quantos são? Onde vivem? O que cantam? A espacialidade é um conceito que ultrapassa as questões sonoras. Falar de música é compreender as interrupções e silêncios que existem em volta deles. Criar é muito mais que o ato mero de compor desesperadamente uma canção. Inventar espaços de escuta, escrita, imagem, audiovisual e dança são as formas que a banda encontra para diminuir as distâncias, romper com as fronteiras artísticas que se impõem muitas vezes como método. Está dito: limbo emergiu, não tem lugar, inventa sua própria tradição, não adormece sobre rótulos, requer tempo, distinto vocabulário. Portanto, limbo precisa respirar.
(Entrevista com o cantor e compositor Caio Lima, integrante da banda)
Vocês acabaram de lançar o disco “limbo”, mas como foi a trajetória entre o “do absurdo” (2011) e o “limbo”? Como foi o caminho do absurdo ao limbo? Isso. A Rua já tinha o “do absurdo” e criou esse lugar chamado “limbo”, o que é bem simbólico se chamar assim. O que me interessa, e o que eu gostaria que você falasse, é dessa trajetória. É bem difícil falar. Mas, de certa forma, quando se pergunta sobre essa trajetória, é que você pensa que tem coisa pra caralho. Não que eu nunca tivesse refletido sobre isso. A banda chegou a fazer um show chamado “do absurdo ao limbo”. Foi. Pra marcar o processo. Isso acontece por intuição. A gente planejava que o limbo fosse lançado em 2013. Mas sem lançar a gente tinha o sentimento de estar no limbo. Por causa de interdições que foram acontecendo durante o processo. Então, o show era uma forma de assumir que a banda já estava criando para além do absurdo, um absurdo desdobrado. O show foi uma necessidade espontânea para marcar essa transição. Quando o primeiro disco surge, é sempre uma procura em como dizer, no início, criando, e articulando ideias distintas que compunham o grupo. Meio que procurando esse caminho de dizer. É um disco grande, com uma certa poética de como as músicas se apresentariam, mas a gente não conseguiu cortar algumas músicas porque queríamos colocar tudo. Esse processo ficou muito marcado no primeiro disco. Mas a partir dessa estreia, dois meses depois a gente já tinha feito a música “limbo”, que veio dar nome ao segundo disco. Os dois discos são muito próximos, essas mudanças de território só acontecem quando o disco é lançado, por exemplo. Mas esse processo já é contaminado desde a estreia da Rua. O processo de fazer o disco é longo. Lançamos pelo Funcultura. A gente tem a ideia do projeto, as músicas, já temos um caminho, mas daqui que o projeto seja aprovado, se passa um ano; e pra fazer leva mais um ano. Mas essa inquietação com a estrutura, a poética, ela é similar nos dois discos. O limbo é mais um desdobramento das questões suscitadas no do absurdo, do que uma revolução.
Vocês concordam com a ideia de que o lançamento de um disco é, na verdade, o momento de abandonar as canções, de esquecê-las? Eu não esperava que fosse assim. Porque o primeiro foi meio dessa forma. Aquela velha questão: o espaço para a Rua precisa ser inventado. O espaço existe, o que não existe são os lugares. Então, a banda surge como uma forma de inventar lugares, mesmo que sejam lugares-comuns. Shows, por exemplo. Mas parece que uma lição do primeiro disco, é que a banda só funciona se ela inventar os seus lugares. O desejo de tocar do absurdo entrou num ostracismo precoce. De a gente fazer o show de lançamento, tocar no Coquetel Molotov, e depois só fazer porque a gente quis, depois de seis meses. Então, o limbo surge desse sentimento de água parada, ou de uma suspenção do movimento, que tem a ver com mercado. O desejo era que a gente tocasse essas músicas, que fossem brotando novas percepções sobre ela. Isso só aconteceu quando começamos a inventar os nossos lugares. Então, não é uma necessidade de esquecer a partir do lançamento. O que existe é a compreensão de que isso é exterior, é natureza, é estranho. É normal que eu o escute depois de lançado e seja como se fosse uma primeira escuta. O esquecimento vem da não execução, não de lançá-las.
Como é, nesse período de lançamento, perceber como o público reage ao disco? A percepção deles sobre as diferenças entre cada um. Por exemplo, no primeiro havia uma relação com o samba mais a música minimalista, no segundo, a ideia do samba como gênero já se perde, ou até mesmo perceber como vocês, músicos, estão tocando agora, as mudanças… É interessante de ver isso porque você também é o público. Eu acho do caralho escrever sobre, que essa escrita seja estimulada no Outros Críticos. Isso ajuda a colocar um meio de reflexão sobre os próprios lugares. do absurdo por ser o primeiro disco tem essa procura estilística ou estética, mas que é bem determinada. Nelson Brederode (cavaquinho) e eu tínhamos uma banda de samba – ele conhece muito de samba, principalmente da década de 70 até Donga, Moreira da Silva, Roberto Silva –, e tem Yuri Pimentel (baixo) e Hugo Medeiros (bateria) que são mais jazzistas. Esse encontro faz com que a gente chegue até certo ponto nas músicas – ainda tem o Erik Satie, Steve Reich, Radiohead, como referências comuns. Então, Yuri veio d’A Comuna experimental; foda, uma banda que foi muito marcante, naquela época, sobretudo. Assim, do absurdo é esse encontro com as influências de cada um. As bandas tendem a ter essa disputa ou arranjo de ideias, aparentemente diferentes. Isso é massa. Então, o primeiro disco é um encontro, as fusões, as maneiras de distorcer, interromper. Tínhamos a preocupação com o silêncio, com o mínimo, escutar um ao outro. Embora fôssemos amigos de curso, não tocávamos juntos. O show em si não é muito sobre a recepção do público, mas como a gente sente as nossas músicas também. A partir de do absurdo, teve o encontro com a galera da dança, a gente começou a fazer mais trilhas. O pensamento da dança entrou na reflexão do grupo enquanto movimento. Som, movimento; movimento, vibração, dança. Tudo possui uma inquietação em comum. do absurdo tinha isso de promover uma escuta, que se reflete no próprio comportamento do público quando vai assistir ao show da Rua com uma escuta atenta. As pessoas sentam em um lugar que não tem cadeira. No Continuum, por exemplo, a galera foi sentando e quem chegou depois não conseguiu entrar porque não tinha espaço. Se as pessoas tivessem em pé, talvez desse mais gente. A escuta é feita sentado, como no Solar da Marquesa. Os shows no teatro promovem isso também. Mas é uma questão de como a música se comporta, o que ela reverbera e desdobra. A preocupação no primeiro disco era essa. Existia a procura pelo silêncio, o lugar vazio, o deserto; Sísifo solitário com a rocha nas costas subindo.
“[…] com o primeiro disco, tinha uma sensação um pouco formal, uma normatização da música, como se a gente estivesse executando a música, perseguindo a sua forma, a origem. Isso deixava a performance um pouco quadrada.”
Lembro que em um show você disse em uma música que ela era pra dançar. Te incomoda o fato do público ser homogêneo, nesse sentido, de todos se sentarem? Não me incomoda porque isso faz parte do comportamento famigerado, como as pessoas escutam. Vão existir vários comportamentos. Isso não me incomoda. É um ponto de reflexão. A escuta é corporal, não é do ouvido, necessariamente. Ouvir: ouvido; escutar: ultrapassa. do absurdo tem isso, por ser um disco muito técnico – a gente escreveu partitura, tudo escrito; no limbo já não tem tanto. Eu dizia à galera que a gente no palco, com o primeiro disco, tinha uma sensação um pouco formal, uma normatização da música, como se a gente estivesse executando a música, perseguindo a sua forma, a origem. Isso deixava a performance um pouco quadrada. A gente tocava a música como um ritual da forma. A sensação vinha a reboque. Então, a gente foi se abrindo pro improviso. Tem a ver com o limbo. do absurdo a gente passa da construção formal e escuta atenta, do silêncio, para o lugar do movimento e do afeto. Falar em “afeto” parece meio clichê, mas acho que do absurdo ao limbo tem esse caminho de abrir o show, por exemplo, pro ritual, da sensação, levar ao máximo essa sensação de Steve Reich da repetição como uma profanação da forma, e aí liberar pro lugar do movimento sensorial, do improviso. Por isso as músicas começaram a ficar mais longas, como “Febril”, a primeira música do segundo disco. Elas ficam mais longas e mais “lombras”, como um ritual. Acho que naturalmente a escuta também vai se modificando, porque no limbo a gente tem a preocupação com o movimento. Bruno Giorgi (guitarra e efeitos) fala que não é mais uma música que se desenvolve no tempo, mas que constrói espaços. Pensa no espaço criado, nos lugares. É uma mixagem que a gente passou o carnaval inteiro lombrando pra chegar no conceito do que íamos explorar nela. A gente chegou à ideia do corpo; não uma banda espalhada em palco, mas como um corpo. A gente buscou a sensação em movimento.
“Puta que o pariu, vocês tocando ‘Febril’ e eu me movendo por dentro, e olhava pras pessoas paradas, escutando, e tive vontade de levantar e ficar dançando” – João Marcelo Ferraz (Ex-Exus)
João Marcelo Ferraz (Ex-exus), que é um cara que eu escuto mesmo, disse: “Puta que o pariu, vocês tocando ‘Febril’ e eu me movendo por dentro, e olhava pras pessoas paradas, escutando, e tive vontade de levantar e ficar dançando”. Eu disse: “Por que não fez?”. E ele: “Na próxima eu vou fazer”. É isso. Já começa a abertura, a cair o véu e começar a ser possível. Então, isso de dizer que “essa é pra dançar” é como um estímulo. Não é dançar dentro de um quadrado, mas a partir do movimento que a música promove. Mais do comover-se ou mover-se do que da forma. O limbo é mais ir para o lugar da sensação, da explosão e implosão. Pensar as sensações como um movimento. Por isso, acho que a escuta pode mudar, então não me incomoda, é só um ponto de reflexão, que também ajuda a música da gente. O público está na nossa música, em forma de som, por exemplo, ou de caminhos sonoros e de discurso.

A necessidade de produzir o livro “Rasgo no escuro: impressões sobre o limbo” (2014) foi para ter um diálogo maior com o público do que com a crítica? Porque são impressões… A crítica foi ultrapassada nesse livro. Acho que já é uma coisa que acontece há muito tempo em rede social. O poder do crítico como uma… Eu não sei. Não entendo muito também… É uma necessidade de registrar a escuta, de certa forma? Completamente. A recepção, mesmo a do público, da imprensa, que recebe o disco num dia com um release e no outro tem que publicar sobre o trabalho. Não será uma recepção real, mas de mercado. Ele vai escrever sobre o disco, mas sem ter tempo de perceber suas sutilezas, como João Marcelo percebeu, por exemplo, que talvez num próximo show outra pessoa também perceba etc. Então, eu queria entender se, de certa forma, “Rasgo no escuro” foi uma necessidade de registrar a escuta em tempos diferentes. Sim. Como eu disse, isso é uma forma de inventar um lugar para a Rua, de inventar, sobretudo, de perceber a nossa música, onde ela está, como é atravessada. Essas impressões são uma forma mesmo de ver e escutar a gente mesmo. A recepção do limbo tem um caráter de afirmação, e a escuta talvez leve para um lugar de movimento. João Marcelo me fala: “Esse disco é bom pra lavar prato”, sabe? E eu não acho que isso seja banal. Nem me incomoda. Fazer parte do movimento talvez seja isso.
O livro é lido por quem ainda não ouviu o disco ainda? Acha que há também uma curiosidade do público em ler a impressão do outro? Eu acho que ele não vai ser lido agora. É lido pelos mais próximos. Pelas pessoas que se interessam mesmo pela banda. Tem gente que diz que a Rua a salvou de depressões. Essas pessoas leem. Mas é muito recente. Como o primeiro disco, muita gente está conhecendo agora. Ouvindo “Bolas de gude” agora, mas não vamos mais tocar essa música. Não tenho essa preocupação temporal. Essa ideia de inventar o próprio espaço de escuta e de propor para o público uma impressão sobre o disco e transformá-lo em livro, é, de alguma forma, uma posição política que não se restringe somente à banda? Eu acho que isso vem da reflexão, por isso acho do caralho a função dos Outros Críticos, a proposição. A MI também. Acho que Ricardo Maia Jr., quando nos entrevistou para a revista MI, deu uma instigada quanto ao reconhecimento do nosso isolamento enquanto grupo. Qual o problema? Tem uma coisa sinistra que acontece na universidade, no curso de Música, pelo menos no meu tempo. É que lá não se fazia música. A gente se conhece como músico fora. Por exemplo, Saracotia, Marcelo Campello e Rafa, do Mombojó, que era um pouco antes, mas estivemos juntos num curso, tinha uma galera. Os grupos não eram formados lá, tocando lá. Isso, de certa forma, provoca um isolamento. Como a Rua é uma das bandas que surge nesse contexto, a gente tem esse encontro, mas somos isolados. Como Jeder Janotti Jr. fala, não participamos de uma cena. Nem música tem na universidade. É muito louco pensar nisso. E respondendo a Ricardo, eu disse que a gente tinha que ver uma forma de se organizar, se reunir, mas eu não sabia como. Esses encontros partem de uma necessidade, de se construir um lugar, e criar esses canais de comunicação que levam para um lugar da estética e política mesmo, questionando: Para que isso? Para que música? Pra que mais palavras num tempo de saturação? Pra que mais textos etc? Para que continuar falando (na entrevista)? Esses encontros são formas de sair do isolamento, de ampliar os lugares, e a partir disso continuar uma reflexão.
“[…] existe a cultura do release, uma coisa que a gente já conversa há bastante tempo, da pressão do mercado e dessa escuta passageira.”
Então, essas criações de espaço são também posições políticas? Isso é um desdobramento da criação de lugares de encontro. Mas em fazer a parceria com a Livrinho de Papel Finíssimo, acho o trabalho dos caras foda, por isso, eles inventaram lugares, viabilizam. Mas existe a cultura do release, uma coisa que a gente já conversa há bastante tempo, da pressão do mercado e dessa escuta passageira. Ou só na anunciação da escuta, ou melhor, na enunciação de um produto, na limitação na estante, que eu acho até bom também. Essa coisa da banda ser o lugar da comunicação, eu acho cada vez mais importante. Já é difícil dizer o que queremos, encontrar a forma. Um dos caminhos interessantes é a banda assumir um lugar como meio de comunicação com o público, direto, horizontal. A Cia. Etc., por exemplo, não sabe se é uma companhia de dança, tem músico, uma galera que trabalha com vídeo. Esses limites são constrangidos o tempo todo porque a atuação é distinta. O fotógrafo Breno César, que trabalha conosco, o Finisterrae no Cinema São Luiz foi ideia dele. A banda tem esses 4, 5 ou 6 integrantes, mas é permeável, tem muito mais gente. Então, eu acho importante que a banda fale. Fazer os próprios vídeos, entrevistas, falando sobre o próprio processo criativo. E ninguém sabe realmente quantos membros têm a banda. Uma hora tem quatro, outra cinco. Isso é provocado. Mas Yuri fica querendo demarcar. São quatro, são cinco. E meu papo é para ampliar isso. Esse jogo da identidade que a gente discute. É uma reflexão. O técnico de som (Diogo Guedes) não é só técnico da banda, é músico também.
Eu acho ruim essa relação binária da crítica. Você lançou um disco e vou conversar com você sobre ele, um show e a mesma coisa. Mas eu posso querer conversar sobre música, de uma forma geral, processo criativo, ou outra coisa que me interesse naquele momento muito mais do que algo que foi lançado. Depende do que você está buscando. Mas é isso, essa pesquisa é uma forma de encontro, de conversa, de contaminação também. Da escrita, música. Isso passa, não é guardado, contamina, modifica. Essa fronteira tende a encostar-se a outras fronteiras e fazer música.
Foto de capa do site: Flora Pimentel.
Publicado originalmente na 6ª edição da revista Outros Críticos.
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