entrevista: Spok

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Foto: Igor Marques

por Bruno Nogueira.

Se o frevo fosse uma pintura e a apresentação do Maestro Spok fosse colocada lado a lado de uma de, por exemplo, Maestro Duda, as diferenças seriam gritantes. “Isso que você faz não é frevo” é uma frase que Inaldo Cavalcante de Albuquerque, nascido em Igarassu, ainda escuta. Da primeira vez que vestiu sua orquestra de terno e retirou os passistas e que, mais uma vez, deverá ouvir quando seu terceiro disco de estúdio for lançado exclusivamente com sanfoneiros tocando frevo na base do improviso. Sempre preocupado em pontuar suas afirmações com humildade em expressões como “esse é só meu ponto de vista” ou “sei que é assim comigo”, ele tenta demonstrar mais respeito que receio pelo ponto de vista dos mestres. Cantarola um frevo de Duda para explicar a dinâmica de compassos e fala que, para ele, mexer com esse formato não prejudica o patrimônio. Apesar de ter ganhado o apelido de um personagem da ficção científica conhecido pela avaliação fria e calculista de todas as situações, para o Maestro Spok falar de frevo é quase uma abordagem mística similar à fé. A música vira essência, verdade e espírito da cultura pernambucana.

O Frevo vive de controvérsias. É um dos ritmos musicais que mais marca o estado de Pernambuco, mas ainda parece limitado à escuta do carnaval. Que avaliação você tem do momento que o Frevo vive hoje? Eu acho que está num momento bom e eu sou a experiência viva disso. Eu vivi um frevo exclusivamente dentro do carnaval e hoje eu vivo um momento do frevo fora do carnaval. Consigo ir para a Califórnia, nos Estados Unidos, para ministrar oficina e workshops de frevo. Recebo composições das pessoas que participam dessa oficina. De músicos que fizeram sua carreira com o jazz. Isso é algo inédito. Vivo um momento de estar viajando o ano inteiro com o frevo, para vários lugares do Brasil e do mundo. Hoje em dia, eu toco frevo o ano inteiro. Claro que não é com a mesma pressão do carnaval, com a mesma quantidade e força por se tratar de uma festa específica. Mas eu posso dizer que trabalho o ano inteiro como nunca trabalhei na minha vida. Todo mês tem algum projeto de frevo sendo realizado que estou participando. Isso é só comigo. Imagine com outras pessoas que também trabalham com frevo o quanto essa música não está andando. Temos mais recentemente, esse momento que aconteceu com Wynton Marsalis, no Lincoln Center Jazz Big Band. Sempre que encontro com alguém na rua que assistiu a esse evento, vem dizer que nunca tinha imaginado que o frevo poderia estar vivendo este momento com esta Big Band. Imagine o que é ele escrever uma nota em seu diário sobre o frevo, falando da admiração que tem com o frevo. Então, eu acho que o frevo vive sim um bom momento; guardada as proporções, um ótimo momento. Mas ele ainda tem muita coisa para viver de melhor. Tem sido incrível. Hoje vemos vários artistas pernambucanos que não necessariamente tinham os olhos voltados para o frevo como tem hoje, tanto artista fazendo frevo e acreditando nessa manifestação superforte e poderosa e própria. Me refiro a pessoas que nasceram aqui, como a Orquestra Contemporânea de Olinda, a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério com o Maestro Forró, China e Monica Feijó fazendo trabalho com o frevo. Sem falar de todos os outros que sempre viveram uma vida intensa no carnaval, de minha geração, como André Rio, Marrom Brasileiro, Almir Rouche, Nena Queiroga, Gustavo Travassos, Nonô Germano, Edy Carlos… são tantos! Gente que sempre trabalhava exclusivamente com o cenário junino e agora está trabalhando com o frevo, como Alcymar Monteiro e Maciel Melo. Então, internamente ele vive um momento de bom para ótimo e, de fora do Brasil também. É muito especial ver o frevo no Rock in Rio. Vamos pela primeira para Las Vegas com a orquestra completa e vai ser a primeira vez que o frevo aparece no evento.

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Foto: Igor Marques

Mas é um momento que é muito seu. Digo isso pensando nas orquestras de frevo menores que ainda têm dificuldade muito grande de sair desse calendário do carnaval. Você tem essa percepção também? Do desafio menor do artista menor? Certa vez, um maestro de orquestra de frevo me fez uma comparação do frevo com o axé. De como o axé só cresceu na Bahia graças a um verdadeiro suporte do poder público, que conseguiu transformar a música num mercado de uma forma que o Governo de Pernambuco não se interessa em fazer com o frevo. Um mercado que dure o ano inteiro, que não seja só no período do carnaval. Você concorda com essa perspectiva? Você acha que uma possível transformação do frevo num mercado maior seria algo positivo ou negativo? Você sente necessidade disso? Essa é uma pergunta muito difícil de responder. Acho que nada atrapalha quando o artista busca sua verdade. Sentimos a vontade de buscar o elemento do jazz pelo improviso dentro de nosso trabalho, para que isso sim pudesse abrir janelas fora desse circuito exclusivo do carnaval, pois já fomos uma orquestra que tocava exclusivamente no carnaval. Tivemos a sorte de tocar com Nóbrega, que já tinha viajado o mundo inteiro e, com ele, aprendemos muito. Aprendemos ao ponto de enxergar que era possível colocar dentro do frevo, que era uma música instrumental, elementos de liberdade de expressão por improviso. Isso abriu portas para levar nossa música para lugares mais distantes e isso vem acontecendo até hoje.

No caso do Governo, acho que é um processo lento, de longo prazo. Mas acho que o frevo pernambucano está num momento muito mais ativo do que esteve em décadas atrás. Ele está andando cada vez mais saudável, em lugares cada vez mais distantes, essa coisa de ficar uma música popular conhecida no Brasil, acho que o buraco é um pouco mais embaixo. Lógico, o Governo pode trabalhar cada vez melhor para isso. Lógico que os artistas podem trabalhar cada vez melhor. Mas muita coisa vem acontecendo. Por exemplo, o Paço do Frevo é uma conquista incrível. A gente, hoje, tem um lugar onde se trabalha, vive, vê e se fala sobre o frevo todos os dias. Um lugar digno, sério, limpo, seguro, que é tudo que um nativo e o turista querem encontrar. É uma escola de música, uma escola de dança, um centro de exposição, um museu, então, essa é uma conquista muito grande. Não sei se em todo lugar do Brasil existe um espaço como o Paço do Frevo, dedicado à sua música.

Sobre essa comparação com o axé, eu acredito que o frevo possa se tornar, guardada as devidas proporções, algo parecido. Eu só sonho que isso seja apresentado na escola. Por professores e por uma organização de forma muito séria. Com profissionais capacitados para isso, para levar para os alunos a força do espírito e da alma do frevo. A nossa orquestra, por exemplo, passa por um momento muito difícil, pois ninguém teve essa escola pura. Coube a cada um buscar mais intensidade ou menos, então a gente vive um momento antes do Paço do Frevo e depois do Paço do Frevo, onde é mostrado o puro, a verdade. Mas existe uma necessidade que isso seja muito maior, que vá para as escolas, mas de forma digna.

Você falou algo que é de certo impacto. Você acha então que dá para colocar o frevo numa linha do tempo de antes e pós Paço do Frevo? Ele é um divisor? O Paço do Frevo é um divisor, sim. Não estou aqui com nenhuma arrogância, mas fico feliz em ter participado da primeira reunião do Paço do Frevo. Eu, Nenéu Liberalquino, Zé da Flauta, Wellington Lima e Gilberto Pontes, junto com a administração, ainda da prefeitura de João Paulo. Nós nos reunimos com Ada Siqueira, Ligia Falcão e Peixe, secretário de Cultura na época. Ali eu lembro que a gente começou as primeiras conversas sobre o Paço do Frevo. Para entrar numa possível pauta com a Fundação Roberto Marinho. Eu sei das críticas que fazem ao Paço e é claro que sempre vai ter o que melhorar. Cabe às pessoas chegarem junto para poderem ajudar a melhorar e eu pretendo ajudar da melhor forma. Mas mesmo com esses problemas é um lugar lindo, bem cuidado. Existem outras histórias que merecem ser contadas? Sim! Mas isso é uma coisa que a gente vai melhorando com o tempo. É um orgulho muito grande poder ter um lugar que fala exclusivamente de frevo, um dos nossos principais cartões-postais. Poder ter um lugar para levar gente de fora e apresentar o frevo a ela e essa história ser contada da melhor forma possível. Para uma pessoa que mora aqui e diz que quer estudar sobre o frevo: tá lá a escola. Quer estudar dança? Tem lá a escola de dança. Quer gravar frevo? Tem lá o estúdio. Quer só visitar? Tá lá o museu. É algo incrível. A mesma coisa que acontece com o Cais do Sertão, o museu de Luiz Gonzaga.

Você se juntou, recentemente, a DJ Dolores para gravar o projeto Frevotron. Achei interessante por Dolores se tratar de um artista que vive do remix, de mexer, bulir, catucar o que já está feito. Isso me parece algo que é muito distante do que se faz com o frevo, principalmente por ter sido transformado em patrimônio. Eu tenho a sensação de que quando algo vira patrimônio, fica intocável. Essa introdução é para perguntar: o que você acha do frevo virar patrimônio? Isso é algo que contribui ou que complica os diálogos que você procura fazer com o frevo? Eu enxergo da seguinte forma: transformar em patrimônio é transformar a alma. Não é só o frevo de Capiba, de Zumba e Nelson Ferreira, que eu bebo até hoje dessa fonte. Mas bebo da fonte da alma. Isso para mim é importante, algo muito único. Não acho que atrapalha em nada um músico como DJ Dolores ter a liberdade de mexer e cutucar. Não acho que perde nada. Ele é uma pessoa que se criou aqui. Ele é sergipano, mas se criou aqui. Então, ele conhece o universo das manifestações que aqui nascem, entre elas, o frevo. Eu nasci e me criei aqui. Eu nasci e me criei com o frevo e faço parte do Frevotron. Então, qualquer sopro que eu dou nesse projeto vem da música de Nelson Ferreira, vem da música de Capiba, da música de Zumba, dos meus mestres. Não tenho nada contra, nem acho que abala o patrimônio, pois o patrimônio é a alma. Acho que a gente tem liberdade sim de catucar o patrimônio, o que a gente não pode é ser mentiroso e desonesto com ele. Eu acho que sim. China, Orquestra Contemporânea e as orquestras da Universidade Federal também são artistas que não têm desonestidade no que se propõem a fazer; e o patrimônio não é prejudicado.

E quando você está gravando, vendo esse processo do mexer e cutucar que a gente falou, tem um pouco de frio da barriga e medo de uma geração mais velha que vai ouvir isso? Pensar no que eles vão achar? Tenho não. Minha vida foi ouvir e encarar isso. Hoje encaro muito menos, mas os próprios mestres já chegam para mim e dizem “o que você faz não é frevo”. Eu escuto com o maior respeito e entendo completamente o posicionamento deles. É como se nesse posicionamento o patrimônio fosse aquilo ali e não pudesse sair daquilo. Eu enxergo de forma diferente, enxergo algo maior. Para eles o honesto talvez seja isso, de não fugir dos 32 compassos. Os 16 compassos da primeira vez, os 16 compassos da segunda vez e dos 4 compassos que às vezes fazem a ponte da primeira para a segunda. Para mim pode ser muito mais. Pode ser 64 compassos e não deixa de ser frevo. Para mim pode ser só 8 e não deixa de ser frevo, desde que seja honesto. Da forma que a gente falou aqui, parece que o patrimônio são esses 16/16. Para mim, não. Você pode estar cuidando bem do patrimônio em 64 compassos, com dignidade no que é de verdade. É como o passista: só pode usar a sombrinha colorida, pois esse é o patrimônio. Não! Você pode usar um guarda-chuva. Para mim não mexe no patrimônio. Não pode é mexer no coração.

Quais mestres falam que você não faz frevo? A gente fez um longa, o Sete Corações, que mostra os mestres do frevo. Eles não falam diretamente, mas tem uma cena de uma passista, Flaira Ferro, sou muito fã dela desde criança e ela lançou um espetáculo solo onde ela mostra o frevo do olhar dela. Nós levamos um desses mestres para assistir esse espetáculo e ele disse: “Isso né frevo, não”; “eu não concebo o frevo sem o estandarte, sem o passista. Para mim, não é frevo”. Para mim é honesto ter orquestra de frevo sem passista ou ter passista sem a orquestra, se está coberto com a verdade.

É um conflito delicado, já que é uma geração mais antiga que ainda está presente, com visões que são diferentes, mas são corretas? É sim. Mas é algo que vivemos sempre. Muitas vezes no ensaio temos um mestre do frevo que chega para a orquestra e diz: “Gosto muito de Spok, mas o que ele faz não é frevo, gente”. Dizem que é outra coisa. Imagine que isso é dito hoje, com um trabalho que já deu algum caldo, que muita gente conhece. Imagine quando eu estava começando? Todo mundo de paletó e gravata e sem passista? Uma vez o passista foi convidado a sair de nosso show. Num festival de jazz, num momento de improviso, um passista foi convidado a sair pelo próprio público. A música estava se mostrando mais forte. Foi difícil para nós, mas foi superimportante.

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Foto: Igor Marques

Você está terminando de gravar o terceiro disco de estúdio da Spok Frevo Orquestra. É um disco que chega então com o impacto de tudo que você colheu na carreira, de ter circulado pelos festivais, de estar num Rock in Rio. Isso para você tem algum impacto? Você precisa começar a pensar numa produção mais internacionalizada? Nosso trabalho é de música instrumental. Sempre com abertura para o improviso, então desde nosso primeiro disco, isso já é algo presente. Antes havia um interesse em levar esse frevo para fora a partir desses festivais. Talvez essa possibilidade não tenha sido mostrada, antigamente, para os outros produtores. Mas era algo que eu queria. Não acho que o frevo não tenha ido para fora por falta de algo, mas a intenção de levar é importante. O nosso trabalho já tem portas abertas em festivais do mundo. Quando a gente faz o disco, é uma coisa que as pessoas precisam conhecer. No caso desse novo, são compositores e arranjadores que não são necessariamente de Pernambuco. É um disco gravado totalmente com sanfoneiros que tocam frevo e que nunca tinham gravado dessa forma, com tanta liberdade. Dominguinhos já gravou frevo, com improviso, mas de uma forma menor. Xico Bizerra, Sivuca, vários gravaram, mas não sei se todos tiveram tanta liberdade, de fazer um disco inteiro e de ter sempre o elemento do improviso. No Frevotron tem se mexido mais: Otto e Jorge Du Peixe botaram letra. Estamos atrás de outros parceiros. Algo criado por um artista daqui, com o espírito do frevo, junto com Yuri Queiroga, que é um grande músico, um grande produtor, bem antenado com as realidades do mundo. Ele é meu filho. Nasceu e se criou comigo e ainda assim consegue colocar elementos que eu não percebo, por não escutar tudo o que ele escuta. Isso é bom, pois um foge do que o outro costuma fazer.

Você tem essa perspectiva bem otimista do momento do frevo, um pouco do reflexo de sua carreira. Mas o que precisa ser trabalhado hoje ou estar em pauta, no foco, para essa música poder crescer? As escolas. Tem que ter a matéria escolar da música de Pernambuco, incluindo o frevo. Essa é a meta maior. Estamos lançando filmes sobre a orquestra de 200 músicos que encerra o carnaval do Recife. Um registro que nunca foi feito, para salvaguardar a história de nossa música. Para poder formar a verdade. Não necessariamente as crianças têm acesso hoje ao que forma seu povo. Porque os seus pais, de hoje, não foram apresentados à sua própria essência cultural. Muito possivelmente as crianças de hoje já ouviram falar muito mais de um artista de axé do que em Jacinto Silva. Os pais dessas crianças ouviram falar em Luiz Caldas, mas não conhecem Luiz Gonzaga. Pode ser uma vontade um tanto bairrista, mas eu queria que a criança optasse por dançar o rebolation, mas fizesse isso sabendo as manifestações que fazem parte de seu povo. As escolas não são apenas para formar público, mas para que a criança possa saber de uma pessoa que ajudou a manter algo nosso, como Luiz Gonzaga. Que aqui existiram os maestros de frevo, como Zumba, Nelson Ferreira, Capiba. O Mestre Camarão morreu agora e eu tenho certeza que a maioria das crianças nunca ouviu falar dele. A gente não pode deixar que o trabalho da mídia tradicional invada a verdade de um lugar. Se a gente não tivesse nada, tudo bem, mas a gente tem tanto. Precisamos apresentar isso.

Publicado originalmente na revista Outros Críticos #7 – versão da revista on-line | versão da revista impressa

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Bruno Nogueira Escrito por:

Jornalista, Doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, atualmente desenvolvendo pesquisa de Pós-Doutorado na UFPE.

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