por Marina Suassuna.
Falar de segregação social por meio da sexualidade foi a bandeira levantada pela Textículos de Mary e a Banda das Cachorra, extinto grupo pernambucano de punk rock, enquanto esteve em atividade, de 1998 a 2004. Tão irreverente quanto o conteúdo das músicas eram as roupas e a performance dos integrantes, que uniam crítica e escracho numa atmosfera sórdida, típica do submundo – artifício usado para falar da violência e intolerância com as minorias. Travestidos de mulheres, Chupeta (Fábio Mafra), Lolypop (Henrique Durand) e Cilene Lapadinha (Tony), nomes fictícios dos três vocalistas, abusaram do politicamente incorreto até dizer basta. No palco, insinuações sexuais, calcinhas, pênis de borracha e acessórios sadomasoquistas causaram desconforto em muita gente. Também fizeram parte da banda Loira Negra (Linaldo Batista), Bambi (Adriano Salhab) e Friuílli (Karin Schmalz). Após 11 anos do fim da banda, Fábio Mafra, o principal compositor do grupo, em entrevista para a Outros Críticos, acredita que a diversidade ainda está longe de ser reconhecida. “É engraçado um veado ser espancado na rua ou suicidar-se por não ser reconhecido como ser humano?”, costumava replicar diante dos comentários que enquadravam o grupo numa “banda engraçada”. Muito mais que piada, a Textículos de Mary abriu caminhos para o reconhecimento da pluralidade sexual, embora tenham sido mal compreendidos.
ENTREVISTA
Se olharmos para a história do Brasil, veremos que a criação artística nunca esteve imune da vigilância dos corpos. Mesmo com o fim da censura ditatorial, ainda sofremos com a censura da mídia e, de uns tempos pra cá, com a censura das redes sociais e até das plataformas de música, que têm repreendido capas de discos com seus filtros de moralidade. Recentemente, uma fábrica de discos se recusou a imprimir as capas do músico Jonas Sá por conter o quadril de uma mulata. Assim como o Itunes censurou a capa do disco de Juçara Marçal, que traz o desenho de uma mulher com os seios à mostra. Como podemos reagir a essa vigilância? Como indivíduo, creio que não posso fazer nada, a não ser lamentar. Como pensador e produtor de conhecimento (professor universitário), creio que minha responsabilidade é discutir esses temas e trazê-los para a realidade dos alunos. Como artista, creio que fiz, ou pelo menos acho que fiz, a minha parte. A Textículos de Mary sempre teve a intenção de ser um vírus informacional, que se propagaria pelos meios disponíveis. Quando vejo alguns jovens me adicionando no Facebook e se declarando fãs da banda 10 anos depois do ocorrido, percebo que o vírus ainda está contaminando mentes e computadores. O resto, só os processos histórico-sociais podem nos responder. Não nos cabe, aqui, prever futuros.
A Textículos de Mary ainda vivenciou o tempo das gravadoras, fechando contrato com a DeckDisc. Ao mesmo tempo que isso trouxe uma projeção maior pra banda, com espaço na MTV e outros programas de TV, a banda teve que se render às imposições do mercado formal. Como lidaram com a pressão da gravadora para mudar algumas letras do primeiro disco e enquadrar o grupo numa postura mais contida, sobretudo na produção dos videoclipes? Eu tive que assinar um termo de responsabilidade pelo teor das letras, retirando a responsabilidade da gravadora sobre as mesmas e a postura cênica da banda. Creio que esse tenha sido o decreto de morte da banda. Apesar das atenções voltadas para nós, não éramos muito comercializáveis. E a DeckDisc não sabia o que fazer com este tipo de material. Na verdade, muita gente gostava da banda, mas ninguém queria assumir o agenciamento da mesma. Nem a gravadora em questão. Talvez pensassem que éramos travestis mutantes 24 horas por dia. Contudo, caso não tivéssemos assinado este contrato e gravado o primeiro disco, talvez tivéssemos sido levados pelo rolo compressor da história. Ou ainda, caso não tivéssemos cortado a cena do vídeoclipe de “Todinha Sua”, ele não mais passasse nos meios de comunicação. Foi um mal necessário.
A tentativa da DeckDisc de tornar a banda mais aceitável comercialmente implicava em abandonar o teor crítico do trabalho, transformando-o numa espécie de piada, não foi? Em algum momento, você sentiu que a plateia absorveu essa imagem da banda? Esta é uma situação delicada. Porque os símbolos trabalhados e a postura cênica assumida tendiam ao cômico, em muitas situações. Mas era um tipo de piada que se faz sobre si mesmo, sobre suas desgraças. Um tipo de humor ácido, que atua mais como mecanismo de defesa do que como stand up (uma coisinha sem graça mesmo!). Em muitas situações, ouvi comentários que nos enquadravam numa “banda engraçada”. A esses comentários eu costumava replicar: “Sim, é muito engraçado um veado ser espancado na rua ou suicidar-se por não ser reconhecido como ser humano!”. Talvez tenha sido exigência demais, de minha parte, para com o público. Mas eu ficava muito decepcionado nessas horas.

Vocês tiveram que lidar com a censura e com reações moralistas durante toda a carreira devido à postura assumidamente homossexual de maneira escrachada e pelas simulações de sexo no palco. O que parece é que esse mesmo público conservador, que se recusava a aceitar o trabalho da banda, era também responsável por alimentar a essência transgressora do grupo. Sendo assim, esse tipo de público era importante para sustentar o conceito da banda? Sem esse público, faria sentido existir a Textículos de Mary? Como a própria pergunta já responde, este era nosso público- alvo. Causar mal-estar era o conceito estético da banda. Logo, constranger os conservadores – e os não conservadores também – era nosso objetivo. Algo que poderíamos chamar de “estética choquiforme”. Mas, cabe ressaltar que os poucos lugares em que recebemos censura, foram ambientes gays, como boates, e ambientes intelectuais. Pasmem!
“Causar mal-estar era o conceito estético da banda. Logo, constranger os conservadores – e os não conservadores também – era nosso objetivo.” – Fábio Mafra
Por outro lado, você acredita que a censura pode ser uma faca de dois gumes no sentido de quanto mais uma coisa é proibida, mais ela atrai e atiça a curiosidade das pessoas? Isso se aplica a Textículos de Mary? Esta era a minha ideia de divulgação para a banda. A antipropaganda, a propaganda negativa. Quanto pior, melhor. Por exemplo, não passamos pela entrevista-teste para o programa de Jô Soares. Para mim, isto deveria estar estampado na capa dos discos, nos jornais: a banda que foi censurada no Programa do Jô. Todos iam querer escutar uma coisa assim. Mesmo que para meter o cacete depois. Mas a DeckDisc se recusou a agir dessa forma e abordar nossa divulgação pelo sentido inverso. Sabe-se lá por quais motivos. Sabe-se lá por qual jabá.
Uma vez, Cilene Lapadinha disse que trazer a sexualidade para as letras e para as performances era uma espécie de “neurose” da banda. Podemos dizer que havia um compromisso com essa temática? O compromisso da Textículos de Mary era com todas as minorias sociais. Não apenas as legalmente reconhecidas, mas, principalmente, as menos visíveis. Ou mesmo aquelas as quais se pretendia evitar. Queríamos atuar como um microscópio, aumentando mais de 100 vezes aqueles espaços da sociedade que geralmente são varridos para debaixo dos tapetes ou deixamos escorrer pelas sarjetas. E, como a sexualidade permeia todos esses processos de exclusão social (existe uma bibliografia enorme sobre o tema em Psicologia, História, Sociologia, entre outras…), não é de se estranhar que seja uma temática central. O policiamento da sexualidade é a melhor ferramenta de dominação sociopolítica. Para mudar algum contexto cultural, social ou político, precisamos modificar essas estruturas simbólicas sedimentadas. E a “higiene sexual” ou “etiqueta sexual” é uma das ferramentas mais significativas e determinantes. É como eu sempre digo: “O único movimento político que me interessa é o pélvico!”.

Tanto quanto o discurso verbal, o cenário e o figurino foram ferramentas essenciais para dar conta da mensagem que a TM queria passar. O visual e a performance se tornaram o principal cartão de visita da banda. Havia uma consciência do corpo enquanto lugar de fala? Hoje, ao olhar para a trajetória da banda, que entendimento você tem do corpo naquela experiência? Apesar do anacronismo desse conceito, que não era moda ainda nos meios acadêmicos brasileiros, nosso interesse era a fusão da música com as artes cênicas, partindo do princípio de que um espetáculo também deve ter apelo visual, mesmo um show de rock. Se houve alguma motivação acadêmica na criação e desenvolvimento da Textículos de Mary, creio que estávamos mais no contexto de discutir a gentrificação do Recife Antigo – que se consolida hoje com o “Ocupe Estelita” – do que num contexto de discurso de gênero ou corpo, como instrumento político. Para mim, esses são pontos pacíficos – gênero e corpo – que se perderam na esquizofrenia pós-moderna, ou bipolaridade – para ficar up to date – que criou esse mundo dicotômico que estamos vivendo. Esses são discursos atuais.
Naquela época, eu me preocupava com os segmentos sociais que viviam tradicionalmente no Recife Antigo, um bairro portuário secular. Foram essas as vítimas de um processo de reocupação da área pela classe média e alta, que teve como pontapé inicial o próprio Movimento Manguebeat. Os primeiros shows dessa galera ocorreram em puteiros tradicionais, Frank’s Drinks, Bar do Grego, entre outros. Era chique ser submundo. Logo, os personagens desses espaços se tornaram incômodos para a nova clientela: as putas, os travestis, os alcoólatras, os viciados, os menores abandonados, em suma, a fauna marginal noturna do Recife Antigo. Patrícias e Maurícios não combinam com cadelas no cio e escórias sociais. Como consequência, tivemos um processo de limpeza étnica ou social – como queiram – que culminou na reconfiguração desse espaço urbano em cartão postal e/ou cenário artificial para a recepção de turistas do mundo todo. Isto com um discurso de preservação patrimonial que escondia um sanitarismo social típico do século 19. Na lendária HQ perdida do Textículos de Mary, era esta a discussão que trazíamos à tona.
A TM surgiu como uma reação ao movimento Manguebeat. Certa vez, numa entrevista, você disse que o que incomodava os integrantes da banda não era a “música mangue” em si, mas a ditadura que se instaurou da estética do movimento. Acredita que a Textículos de Mary conseguiu chamar atenção das pessoas para o rock’n’roll e o punk, numa época em que todos ainda respiravam manguebeat? Na época do final da banda, eu diria que não tínhamos conseguido esse objetivo. Os tambores ressoavam durante nosso cortejo fúnebre e a cena cultural só admitia e produzia mediante um “resgate cultural” (?!). Mas, em retrospectiva, vejo que fomos reconhecidos como uma banda póstuma. Algo como uma “sessão espírita”. As gerações mais novas, devido à internet, hoje têm acesso a coisas que, nem nós, como banda, tínhamos na época. Por outro lado, apesar de reconhecer a “ditadura” estética/estática manguebeat e armorial, então vigente, não coloco, em cima desse reducionismo conceitual, a culpa pelo final da banda. Se observarmos a história cultural pernambucana, podemos constatar que sua vanguarda cultural – sim, Recife, foi vanguarda em várias situações da produção cultural mundial – naufraga e sempre morre, na beira da praia. Ou nos manguezais… Vide o cinema, na década de 1920. Poderíamos seguir arrolando (Chupeta diria enrolando) vários exemplos aqui. A grande questão não é tentar explicar esta vanguarda cultural pernambucana. Mas, sim, o porquê de sua morte prematura em vários contextos históricos diferentes.
Podemos considerar a Textículos de Mary uma banda de vanguarda? Creio que toda a cena mangue era vanguarda. Nós fomos o canto do cisne (risos). Tudo que fizemos havia sido feito nos anos 1970. Se vanguarda for olhar para trás… Falo vanguarda em relação à tentativa de trazer grupos sexuais marginalizados para um lugar de protagonismo. No contexto brasileiro, pode ser. Mas eu sou só um fã de Lou Reed e Jean Genet.

Como você enxerga o papel da música na afirmação de identidades e gêneros dissidentes? Na época da banda, esses movimentos sociais começavam a ganhar evidência política. O discurso de reconhecimento das minorias sociais e sexuais levava à criação de “guetos auto impostos”, que soavam mais como um segregacionismo do que como o reconhecimento e integração social da diversidade. A grande crítica que eu pretendia fazer era exatamente esta: a delimitação de espaços de convivência entre iguais, travestidos de multiplicidade e diversidade. Cresci em lugares diversos. Os bares onde eu ia quando mais novo tinham de tudo um pouco. Uma realidade que não víamos nos anos de1990 e atualmente. Hoje, cada um deve ficar com os seus iguais. Tenho medo disso, sempre tive! Guetos sempre são alvos fáceis. E quando as próprias pessoas só conseguem lidar com seus pares (sociais, políticos, sexuais, ideológicos etc.), a situação se torna muito perigosa. O mundo em que vivemos hoje, mesmo com as bichas podendo se casar nos EUA, está longe de reconhecer a diversidade. Criar espaços segregacionistas não é aceitação, não é nem tolerância. É medo! E medo só gera violência e incompreensão, os pais do preconceito… Enquanto discutimos isso, o Congresso Evangélico Nacional consolida-se. Só digo isso!
O que ganhamos ao jogar luz em artistas transgressores? A curto prazo, pedras, garrafas e outras coisas que voam da plateia. A longo prazo, talvez inspiração. Uma luz no final do túnel!
Publicado originalmente na revista Outros Críticos #8 – versão da revista on-line | versão da revista impressa
Arte de capa: Shiko
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