
Se a costumeira cobertura midiática nos inclina a classificar todo trabalho construído sob uma assinatura de solo – aqui falamos do disco Encarnado (2014), de Juçara Marçal –, a escuta das 12 faixas nos revela uma sonoridade coesa e estilisticamente possível a par de uma intimidade que só o entrosamento de uma banda pode nos dar.
O cerne da sonoridade de Encarnado está no encontro de Juçara Marçal (voz), Kiko Dinucci (guitarra) e Rodrigo Campos (guitarra/cavaquinho). Neles, há uma vida inteira de possibilidades de amadurecimento artístico, sobretudo nas experiências repartidas em Metá Metá, para a voz-canto irrepreensível de Juçara e os experimentos na guitarra de Dinucci em Metal Metal, e no quarteto Passo Torto, mais profundamente em Passo Elétrico, em quando se dá a tradução do rock pela língua do samba desfigurado, no encontro das guitarras percussivas de Dinucci com os dedilhados cíclicos de Campos. São dessas experiências encarnadas na poética “Juçara Marçal”, que cada escolha, arranjo ou maneira de cantar, começa a se tornar mais compreensível se conhecemos de perto a voz guia de todas essas novas canções, autorais e inéditas de uma outra forma, mesmo as regravações, porque reconstruídas pela voz e poética alcançada pelos músicos. Ao interpretar de modo tão singular essas canções, os músicos de Encarnado tornam-se também autores, compositores involuntários das recriações que tomam para si. Poder, aliás, que também faz parte dos grandes intérpretes da canção.
Tendo a morte como mote, tema que cerca as letras, poemas, narrativas, lendas e contações de estórias que conduzem o ouvinte pelas faixas do disco, os timbres e ruídos do duo de guitarras são como corpos se debatendo antes da morte. As cordas da rabeca etérea de Thomas Rohrer e o sopro do sax de Thiago França são como um assombro, a voz do ente Morte se aproximando. O canto de Juçara é a memória da vida, ligação do que é terreno com o sobrenatural. De tal modo, “Velho Amarelo”, “Damião”, “Queimando a língua”, “Ciranda do Aborto” e “Presente de Casamento” são as canções que melhor definem a imagem poética que o álbum preconiza, delas, imagens como “Quero morrer num dia breve”, “E agradece a bondade e o cuidado/ De quem te matou”, “Não enxergo o final, interrompo o tempo aqui”, “Pra você descansar no meu braço/ No meu braço/ Aos pedaços”, “No meio do incêndio/ Queimando em silêncio”, são breves recortes que aliados à sonoridade provocam uma tensão no lirismo condicionado das canções carregadas de imagens idealizadas, tão comuns nos dials da maioria, das também condicionadas, rádios brasileiras.
As presenças de Siba, Gui Amabis, Tom Zé e Itamar Assumpção, além dos parceiros mais habituais de Juçara, como Douglas Germano, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, entre outros, no corpo de compositores do disco, dão um fôlego aos rodeios dentro do tema “morte da canção”, retirado da famosa entrevista de Chico Buarque que dava como morto o formato canção, tendo atingido seu período de êxito durante o século XX. Entretanto, a audição das composições apenas desse grupo que colabora com Juçara em seu disco, revela o quanto a canção pôde se reinventar depois do “fim”.
Ouvir Juçara Marçal encarar a morte arrancando da voz muito mais que a expressão de uma técnica, em que gritos, silêncios e grunhidos também são elementos constituintes da canção, nos dá outra alegria ao nos depararmos com uma música, não aquela habitual do “que bonito, que melodia, que voz doce”, mas daquela que estranhamente diz “que feio, torto, amargo e incrível”. Tudo isso é canção. É o que nos faz enxergar vida, mesmo diante da dor ou da morte. Com isso, a aparição de Encarnado se torna peça fundamental para entendermos a morte/vida da canção brasileira no início do século XXI. Estamos diante dos corpos, estamos morrendo na América do Sul.
Publicado originalmente em março de 2014, na 2ª edição da revista Outros Críticos.
SERVIÇO
Juçara Marçal apresenta o álbum “Encarnado” no Festival Rec-Beat, na terça-feira de Carnaval (dia 17), às 21h.
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