
por Jeder Janotti Jr.
Esta escrivinhação surge de uma estranheza atávica e vulgar: o acionamento por parte de músicos, produtores, curtidores – enfim, da animada fauna pop-cult-descolada – da música brega como um monstro devorador, responsável por parte de nosso desterro, resquício da dominação do tempo das grandes gravadoras e das rádios massivas. Dizem a boca miúda que uma das possíveis origens do brega seria uma velha placa de uma antiga casa da zona do meretrício, cuja a alcunha de esfrega, virou esbrega, e com a ferrugem e a decadência do lugar, o “es” esmaeceu, restando o brega.
O que acho mais estranho em tudo isso é que brega, nesse caso, é um termo guarda-chuva, pode ser desde o brega recifense, até a tal música que toca no rádio. Desde os padres cantores-galãs, bem como uma suposta música de mal gosto. Em lugares diferentes, tenho escutado polemizadores insistindo na necessidade de levar música e bons sons aos que teriam sido privados desse paraíso melodioso: a boa música, a música de valor. Como se isso fosse algo já dado, sem maiores discussões ou conflitos.
Sempre que ouço esses panfletinhos fico ruminando e tentando perceber essa amplitude da antiga música cafona, dessa suposta invasão ou violência disparada pelas sonoridades bregas. Para minha surpresa, só com muito esforço comecei a perceber que no fundo – lá nos cantinhos sujos de alguns rastros dos lugares que passo – é que percebo a presença do brega. Pelo menos do brega recifense.
“Por que cargas d’água tenho escutado insistentemente o mote, quase como um ritornelo, de que ‘temos que variar o cardápio musical’, ‘temos que ocupar a paisagem sonora’, ‘temos que ter outras músicas no rádio’!!!”
Inquieto, comecei a procurar em minhas entranhas essa breguice que supostamente estaria colada em minhas vísceras, agora recifenses. Só com muito esforço percebi ao passar sexta à noite em uma das transversais da Avenida Conde da Boa Vista, ou em alguns morte lentas do centro a presença do som brega. Confesso, tirando o nome de algumas estrelas desse afamado gênero musical, como MC Sheldon ou Michele Melo, conheço quase nada desses sons. Então, por que cargas d’água tenho escutado insistentemente o mote, quase como um ritornelo, de que “temos que variar o cardápio musical”, “temos que ocupar a paisagem sonora”, “temos que ter outras músicas no rádio”!!!
Que rádio? Que espaço? Que paisagem? Será que que a turma que faz música hoje, seja a nova música popular pernambucana (MPP), a Cena Beto ou as bandas da comunidades sem cenas têm algum propósito de materializar sua música em casas como 100% Brasil, Clube Internacional? Alguém acha que seu espaço musical está sendo vilipendiado pela turma periférica-central dos arrecifes? Será que são as rádios ou as praças em que o brega circula o alvo da galera pop-cult-descolada? A turma do brega nem está no famigerado Funcultura, nem é exportado como “autêntica música de Pernambuco para o mundo” e muito menos no calendário dos festivais que assolam a maior menor paróquia multicultural do mundo.
“Por que essa construção de um outro como um fantasma de nós mesmos? Por que afirmar identidades projetando um vazio denominado brega?”
Então, por que essa necessidade de criar essa polarização dual? Por que essa construção de um outro como um fantasma de nós mesmos? Por que afirmar identidades projetando um vazio denominado brega? Por que esse agenciamento da boa música versus a música ruim? Parece-me que na falta de casa de shows, e na incapacidade de fazer circular a boa produção musical do Recife atual, melhor é evitar cair na praia (mesmo na maré baixa), pois por lá rondam tubarões. Monstros de nós mesmos, é bem verdade.
Ao final de minha busca por esse avatar dos desgostos, deparei-me com o mais do mesmo: o brega é o inferno. E o inferno são os outros! Parece necessidade de nos esfregarmos em um monstro imaginário que nada pode contra nós. Francamente, esse som não invade minha janela enquanto escrevo, ele não está no ônibus que irei pegar para descer em mais uma sexta-feira cujos caminhos atravessam a Conde da Boa Vista. Essa necessidade de arquitetar um Leviatã cheira mais a uma saudade doída do tempo em que as grandes gravadoras eram o Tiranossauro Rex da música. Da época jurássica em que músico fazia música e não tinha de ser também empreendedor, gestor de site, webdesign e quiçá, músico.
A criação desse Gulão, de um Papa Figo que responde sobre a alcunha de brega, parece coisa de quem precisa de um outro para se materializar, sem perceber as contradições e estilhaços desse outro, que são lascas de nós mesmos. Afinal, esse brega não é familiar, apesar de muitas vezes ser tachado de abjeto. Nem sempre é pouco enunciar o que já sabemos: o brega somos nós!
Tenho escutado, insistentemente, Odair José. O que dele tem disponível no Spotify. E tá difícil largar. Porque o cara saca muito de amor. E mais ainda de sofrimento. E mais ainda de fazer disso belas canções. Só dá vontade de beber.