MOENDA
Os dois homens se olham, o coração dos dois acelerados. São corações irmãos, de dor e de sangue. O som ao redor é feito de um silêncio atravessado de ruídos. O velho demora um pouco a entender. Talvez sua inteligência, que sempre foi matreira e perversa, tenha se tornado mais lenta.
O olhar oscila entre um e outro dos homens jovens sentados à sua frente. Mas é o preço de um instante apenas que a memória cobra; e, de repente, sob seus olhos passa um clarão de entendimento. Nesse exato momento desperta a inteligência dos que se colocam no mundo para preservar coisas que eles acham que devem ser preservadas a todo custo. Há um silêncio sem fim, um instante suspenso em que ele, o velho, deve visualizar a imagem do pai deles, morto a seu mando, os furos de bala assinando sua autoridade.
Os três parecem esperar que o instante insuportável desfaça o nó que sustenta a vida deles até agora. O velho vê toda a força de seu poder passar através das imagens da vida que ele guiou rigidamente, ao toque da pistola, da cana e do suor. Sente o cheiro doce da cana moendo como se fosse o cheiro da sua urina sobre a memória. Os dois jovens homens lembram outras coisas. Campos verdes, passarinhos, estilingue, codornas, galos de campina, preás, a mão grossa do pai no ombro de cada um, a pescaria juntos, a roça dura como herança. Mas a lavoura inclui o sangue e a vingança, eles sabem.
De frente para o velho, para a sua soberba de senhor, eles não pensam em voltar atrás. Aquela cidade toda ao redor não existe, não é nada. Entre os três só o cheiro do bagaço da cana, o cheiro doce ao extremo que sugere algo morto nos corredores do tempo. A cidade e esse tempo não se pertencem. É como se a cidade fosse a casca de algum fruta dura, feita só de caroço. Os ruídos que ocultam um silêncio pontiagudo, cortante e mortal, que mói e come muitas gerações.
Tudo se passa muito rapidamente, levantam-se os três, ao mesmo tempo, abruptamente. Um redemoinho, mãos se movem para decidir quem vive e quem morre. A cidade assiste impassível, fechada no seu casulo de noite. A cidade dorme, os três são um prelúdio. O pipoco, e a cidade ainda dorme. Num lance de agilidade inesperada o velho puxa a pistola da cintura e alveja o mais baixo, com cara quadrada, o que trazia a arma, porque era mais habilidoso segundo a decisão dos irmãos. O moreno, mais alto, de cavanhaque, recua tomado pela surpresa. O velho, com a cara de que a agilidade lhe custara uma outra vida, um cansaço de senhor e de escravo, consegue ainda apontar a arma para o irmão sobrevivente. Diz seu nome – “Clodoaldo!”, e ri o riso apagado dos que escapam das emboscadas. Faz um gesto para que ele se afaste, cuida em deixar a arma do irmão morto fora do alcance do sobrevivente.
“Anda Clodoaldo…”, ordena. Já arquiteta a maneira como vai se livrar dos dois corpos. Passou a vida resolvendo questões desse tipo. Está cansado, mas está vivo. A cidade é que dorme, porque ele está vivo. Sua perversidade e sua autoridade. Ele silencia um homem – já silenciou vários – e, além disso, uma cidade inteira, sonâmbula e refém. Mas o outro tiro ninguém escuta. A sala do cinema já está vazia.
por Kleber Mendonça Filho* e Fábio Andrade
Kleber Mendonça Filho é a vítima desse mês, emprestando a cena final de seu filme O som ao redor, para o roubo descarado. Aclamado por público e crítica como um dos melhores filmes brasileiros recentes, o filme me impressionou muito pela sua capacidade narrativa magistralmente desenvolvida, a força com que a trama foi desenvolvida ao amarrar as trajetórias dos vários personagens. Kleber é responsável ainda por produções muito instigantes, como Vinil verde e Recife frio.
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