Tom Jobim e Vinicius de Moraes compuseram A Felicidade, especialmente para a trilha sonora de Orfeu Negro, filme do diretor francês Marcel Camus lançado em 1959, premiado com a Palma de Ouro em Cannes e com o Oscar de melhor filme estrangeiro. Segundo Ruy Castro em Chega de Saudade, seu livro sobre a história da bossa nova, a canção foi composta contra a vontade de Tom, que não via a necessidade de criar uma nova trilha para o filme, já que este se baseava na peça Orfeu da Conceição, escrita por Vinicius de Moraes, com música do próprio Tom e que teve sua estreia em 1956, marcando o início de uma das mais celebradas parcerias em toda a história da música popular brasileira.

Para se ter uma ideia do impacto deste encontro, entre as canções compostas para Orfeu da Conceição está um dos maiores clássicos de nossa canção popular: Se Todos Fossem Iguais a Você. Ainda assim, o produtor de Orfeu Negro, Sacha Gordine, encomendou uma nova trilha para o filme. Mesmo contrariado, Tom compôs com Vinicius além de A Felicidade, outras duas canções: Frevo e O Nosso Amor. Ruy Castro também conta em seu livro, que João Gilberto teria se candidatado a dublar os números musicais do ator Breno Mello, intérprete de Orfeu no filme, já que este não era um cantor – Castro diz que nem mesmo ator ele era, e sim um aspirante do time de futebol do Fluminense, sugerido para o papel por Ronaldo Bôscoli por ser “negro, bonito e atlético”, mas João foi preterido por Agostinho dos Santos, que interpretou a trilha do filme ao lado de Elizete Cardoso, escolhida por Vinicius para fazer a voz da personagem Eurídice. João Gilberto acabou gravando A Felicidade em um compacto de 78 rotações no mesmo ano de lançamento do filme em 1959, ano seguinte ao lançamento de um outro compacto que mudaria para sempre os rumos da música brasileira, por conter sua histórica gravação de Chega de Saudade, a canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes lançada originalmente por Elizete Cardoso em Canção do Amor Demais, disco considerado um dos marcos originais da bossa nova por apresentar pela primeira vez a famosa batida no violão criada por João Gilberto.
Procurarei, a partir desta gravação de A Felicidade por João Gilberto, cotejá-la à outras duas versões, que ao meu ver, mais do que reiterar suas conquistas, se desdobram em novos caminhos, e continuam a reverberar a revolução provocada por ele na música popular brasileira. São elas: a gravação de Milton Nascimento presente no álbum Milton de 1970 e a de Tom Zé, no seu disco Estudando o Samba lançado em 1976.
A Felicidade
(Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar
A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
E tudo se acabar na quarta-feira
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
A felicidade é como a gota
De orvalho numa pétala de flor
Brilha tranquila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor
A minha felicidade está sonhando
Nos olhos da minha namorada
É como esta noite
Passando, passando
Em busca da madrugada
Falem baixo, por favor
Pra que ela acorde alegre como o dia
Oferecendo beijos de amor
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
Não pretendo aqui me estender sobre o gênio de João Gilberto e sua grande descoberta. A fortuna crítica em torno de sua obra é merecidamente extensa e constituída por autores com muito mais recursos que os meus para realizar tarefa tão complexa quanto importante. No entanto, enxergo na sua versão de A Felicidade um exemplo dos mais elucidativos para se compreender um dos muitos aspectos de sua inovação, o que se refere especificamente à transformação que operou ao ritmo do samba. A gravação de João Gilberto se inicia com uma batucada carregada, pesada, em tudo diversa à inovação elaborada por ele, que talvez por este motivo se ausente deste momento. João não toca e nem canta nesta parte do arranjo, todo ele construído sem instrumentos harmônicos, formado apenas por um trombone ruidoso – fazendo contracantos à melodia principal e um naipe de percussão próprio do samba, composto por surdo, tamborim, cuíca, pandeiro, entre outros instrumentos. É um arranjo efusivo, pra cima, estranhamente escolhido para embalar os versos desiludidos do conhecido refrão: “tristeza não tem fim, felicidade sim”. Ele é cantado – o mais correto seria dizer gritado, por um coro eufórico, alheio à tristeza descrita na letra, o que não deixa de ser um procedimento muito comum ao gênero – quem já esteve em uma roda de samba sabe a que estou me referindo. Ligado ao resto da canção de modo abrupto, quase como uma ruptura, o refrão soa como um enxerto descolado do arranjo. Com a entrada em cena de João Gilberto, toda a batucada é interrompida, reduzindo-se o acompanhamento rítmico a apenas o que parece ser uma caixa tocada com uma baqueta vassourinha (mais à frente na mixagem) e um tamborim (bem atrás), que mantêm a pulsação do samba por sobre a qual João desfilará sua invenção.
Desde muito cedo, quando ainda concedia entrevistas, João Gilberto dizia que tudo que ele fazia era samba. Mas aqui, com esses dois momentos bem distintos dentro do arranjo, é como se quisesse, de modo quase didático, demonstrar que a partir de então passava a existir o “samba de antes” e o “samba de agora”, inventado por ele. Nesta gravação, talvez como em nenhuma outra, é possível notar mais claramente o que Walter Garcia em seu notável estudo sobre sua obra: Bim Bom – A Contradição Sem Conflitos de João Gilberto, identificou como uma “redução da batucada do samba”, destrinchada por ele em um outro artigo escrito especialmente para a Folha de São Paulo, intitulado O Claro Enigma de João Gilberto:
“Sabe-se que João Gilberto criou a sua batida de violão estilizando a batida do samba. Resumindo ao extremo as coisas, o polegar de sua mão direita esfria uma virtual marcação do surdo. O polegar bate tal qual um metrônomo. Talvez seja herança da marcação de contrabaixo que já se ouvia no samba-canção. Talvez seja herança do walking bass do jazz, mas com só uma nota por tempo. Seja como for, enquanto o polegar toca o bordão, os dedos indicador, médio e anelar percutem o acorde. E percutem variando uma figura rítmica: João simplificou o ritmo do tamborim, fixando-lhe três ataques, e criou a base do seu próprio ritmo. Mas ao variar esta base, o seu violão reencontra o ritmo do tamborim. A sua batida parte do samba para voltar ao samba. É samba e não é.”
Outra característica identificada por Walter Garcia na descoberta de João Gilberto e que ele enxerga como um “esfriamento do samba”, é também facilmente percebida nessa gravação. Além do já citado esvaziamento da batucada, que reduz o naipe de percussão a dois instrumentos apenas – instrumentos estes, de timbres mais próximos às frequências média e aguda, retirando do arranjo as frequências graves e portanto diminuindo o peso da batucada, também a crueza do trombone e seu embate travado com a percussão massiva do refrão, é substituída pelos ataques delicados produzidos por um arranjo de cordas e uma flauta, que criam contracantos em sintonia com a interpretação contida de João Gilberto. Imagine um bloco de carnaval marchando e cantando desordenadamente pelas ruas e que, de repente, são obrigados a deter o passo, impedidos de dançar e cantar ao mesmo tempo. No mesmo artigo, Walter Garcia descreve melhor a imagem que tento construir aqui:
“Olhando para a escolha de João Gilberto, pode se constatar que, ao optar pelo baixo homogêneo, é ao convite à dança que ele renuncia. Há, portanto, neste elemento formal tão específico cuja importância, nada irrelevante, é funcionar como baliza para toda a estrutura rítmica, uma primeira causa do esfriamento do samba produzido pelo baiano.”
Este esfriamento a que se refere Walter pode ser notado na interpretação de João Gilberto. Quando no arranjo chega sua vez de cantar, a voz histriônica do coro dá lugar a sua conhecida emissão precisa e delicada. Sua voz está a serviço da canção, nunca acima dela, por isso despida de quaisquer adereços estranhos ao seu texto. Lorenzo Mammi em um artigo também escrito para a Folha de São Paulo, intitulado João e Miles – No mesmo lugar, muito à frente, define de forma brilhante esse comportamento:
“Quando João Gilberto canta, em nenhum momento sentimos que está buscando um contato conosco. O sujeito já desapareceu, só ficou a canção”
Esse desaparecimento está na recusa de João Gilberto aos malabarismos vocais; no seu desejo de retirar de sua interpretação qualquer sentimento que não seja o da própria canção; e na sua busca por um canto, em suas palavras: “ainda mais descontraído e mais impessoal”, aproximando-se assim, o máximo possível, da fala comum.
Declaradamente influenciado pela bossa nova, Milton Nascimento, nem se quisesse – dado a dimensão e ao gigantismo de sua voz, seria capaz de reproduzir o estilo cool do canto bossanovista. Talvez por este motivo sua gravação de A Felicidade presente no disco Milton, lançado em 1970, tenha um andamento tão mais lento que a gravação de João Gilberto. Como se apenas assim fosse possível segurar o volume de sua voz, diminuir sua emissão. A escolha por esse andamento mais lento deixa sua interpretação mais arrastada, o que a torna curiosamente próxima das interpretações mais recentes de João Gilberto, que numa adaptação para a sua voz mais velha, de tessitura mais baixa, se desaceleraram bastante se comparadas às do início de sua carreira. A diferença é que seu violão também acompanhou essa desaceleração, mantendo sua simbiose perfeita entre voz e instrumento. Na sua gravação, Milton é acompanhado somente por um violão que ele mesmo toca, mas que diferentemente de João, parece desconectado de sua voz. Ainda que muito devedor da batida criada por João Gilberto, seu violão não tem a mesma movimentação constante que faz flutuar a harmonia o tempo todo, entre retardos e acelerações, às vezes se encaixando e às vezes tensionando a melodia cantada – outro dos achados de João Gilberto. Milton segue à risca a mudança dos acordes, dividindo-os regularmente dentro do tempo arrastado de sua versão. O que flutua aqui é a sua voz. Milton derrete a canção, estira a melodia até o limite de seu desenho. Sua interpretação parece não caber dentro desse andamento lentíssimo, transborda, atropelando a harmonia retesada de seu violão. Às vezes, o estiramento da melodia é tanto, que exige que o violão acelere, saindo fora de seu andamento regular, obrigando-o a correr para se ajustar à interpretação alongada de Milton, o que o faz assumir uma dicção mais próxima do jazz.
Uma coincidência com a gravação de João Gilberto chama a atenção: Milton também não canta o refrão. É ainda mais radical, retira-o por completo de sua versão, que não é cantado nem mesmo por um coro, como fez João Gilberto. Além de transformar consideravelmente o significado da letra escrita por Vinícius, por retirar os versos-síntese da canção, ao não cantar o refrão, provoca um estranhamento em nossa audição já tão acostumada à ele. É como se a canção já estivesse começado antes mesmo de a colocarmos pra tocar. Além do refrão, Milton ignora também todo o trecho final da letra, termina a canção onde bem entende, no caso, no verso “cai como uma lágrima”, não sem antes repeti-lo cinco vezes. Mesmo diminuindo bastante a forma da canção, parece não querer perdê-la, tenta conduzi-la pelo maior tempo que for capaz, antes que ela se dissolva em lágrimas, até que reste uma última “lágrima de amor”.
Em uma resenha publicada pela Folha de São Paulo a propósito do lançamento da coletânea João Gilberto – O Mito em 1988, Luiz Tatit escreveu o seguinte:
“Dentro da elaboração harmônica de João Gilberto, os acordes dissonantes funcionam como dispositivos de engate e desengate melódico. Mesmo quando já conhecemos o trajeto de uma melodia, somos constantemente surpreendidos por impressões diferentes do mesmo trajeto sugeridas pelo encadeamento harmônico. Atraindo a atenção do ouvinte para a linha da voz, o cantor faz oscilar, com extrema perícia, momentos de balanço, destacando o ataque rítmico das consoantes e momentos de emoção lírica, prolongando a duração das vogais. Tudo isso num registro em que a voz parece ser, ao mesmo tempo, canto e fala.”
Se a interpretação derramada de Milton, com suas vogais líquidas, reforçam o lirismo da canção, Tom Zé, em sua gravação de A Felicidade, vai priorizar os “momentos de balanço” apontados por Tatit. É claro que em se tratando de Tom Zé e sua reconhecida inquietação, será um balanço muito distinto do de João Gilberto.
Seminal na discografia de Tom Zé, o álbum Estudando o Samba lançado em 1976, como bem explicita seu título, se propunha um mergulho profundo dentro do gênero. Sua gravação de A Felicidade presente no disco, assim como a de João Gilberto, também se inicia como uma batucada, ainda que bastante desidratada se comparada àquela, por não ser formada por instrumentos característicos do samba, mas por não-instrumentos escolhidos entre objetos de uso cotidiano, como latas, panelas e uma moringa cheia de água – instrumento criado por Téo da cuíca, creditado no disco como tambor d’água. Instrumentos de percussão um tanto anêmicos, conduzidos por um apito cansado, que se desmilingue num último assopro. Sua batucada me parece antes, um comentário irônico sobre o gênero, do que uma nova alternativa encontrada para o tradicional naipe de percussão do samba, ainda que não o deixe de ser. Este início bastante incomum dá o tom da faixa. Também no refrão inicial, um piano fora do tom e uma fanfarra militar fora do tempo, perfuram o arranjo abafando a voz de Tom Zé (quem sabe uma alusão à ditadura ainda em curso na época).
Bernardo Oliveira, em seu ensaio sobre Estudando o Samba, que faz parte da série O Livro do Disco da editora Cobogó, comenta que A Felicidade foi interpretada pela primeira vez por Tom Zé a pedido de um programa de televisão, e que sua versão feita especialmente para essa apresentação teria despertado nele o interesse em “estudar o samba” mais detidamente. O próprio Bernardo explica a transformação causada por Tom Zé:
“Tom Zé então apresenta uma versão da canção com a harmonia totalmente modificada e revertida para o compasso 6/8. Salvo engano, a primeira notícia que se tem de um samba convertido em compasso de valsa. Por definição, o samba é um ritmo constituído pelo compasso em 2/4, noção que pode ser ilustrada pela contagem das batidas do surdo. Mas Tom Zé concebeu uma nova estrutura para a harmonia, redistribuindo os acordes sobre o compasso em 6/8, o que possibilitou outras articulações silábicas e fraseados imprevistos.”
Mais do que transformar o andamento da canção, Tom Zé constrói uma base polirrítmica constituída pelo compasso em 6/8 conduzido pelo violão; pela acentuação do compasso 2/4 feita por algum objeto de lata – que substitui a função tradicionalmente atribuída ao surdo; e pela melodia da voz, cantada por Tom Zé em um compasso 4/4 (vale ressaltar que consultei alguns amigos músicos até escolher essa configuração descrita aqui, ainda que não tenha conseguido chegar a um consenso, tamanha a complexidade proposta por Tom Zé). Esses muitos tempos dentro do arranjo, conferem uma sensação de vertigem à canção, que balança sobre um andamento manco, meio bêbado. Na versão de Tom Zé, o sujeito da canção já não se apressa para terminar sua fantasia, ele já está em plena folia, cambaleando solto pelas ruas.
Ao estudar o samba a partir de A Felicidade – canção já era um estudo sobre o samba, sua versão acaba se referindo ainda mais à de João Gilberto. Chama a atenção o violão na gravação de Tom Zé (como na ficha técnica do disco os créditos dos músicos são feitos de maneira geral e não faixa a faixa e como há mais de um violonista no disco, não é possível saber quem tocou violão nesta faixa). Como já dito, ele conduz o andamento em 6/8, o que fez Bernardo Oliveira associá-lo à valsa. Mas aqui, em nada lembra a doçura e suavidade despertada por este ritmo. Tocado de maneira mecânica, quase monótona, sem nenhuma articulação entre os dedos – chega a lembrar um sequencer, ele empurra a canção para a frente de um jeito agulhado, incômodo. Na gravação de Tom Zé, é como se ele desmembrasse a batida de João Gilberto. Não se ouve as notas graves tocadas pelo polegar, salvo engano, parece nem mesmo usá-lo, só ouvimos a ponta mais aguda do acorde tocado nas cordas de baixo, as mais altas do violão. Esse violão monocórdico vai influenciar sua interpretação, que também pouco se articula. Cantando em staccato, sua pronúncia ganha um acento meio robótico. Mais do que cantar, Tom Zé recita a letra, destacando sílaba por sílaba: a-fe-li-ci-da-de-é-co-mo-a-plu-ma-que-o-ven-to-vai le-van-do-pe-lo-ar. Um jeito de cantar que faz lembrar um pouco Mário Reis e sua divisão nítida, só que ainda mais radical. Pensando em Tatit, não é que aqui o canto se aproxima da fala, é que nem mesmo parece haver canto, apenas a fala.
Mais à frente, são adicionados um baixo elétrico de timbre magro, metálico e um violão de aço com um acento jazzy, que funcionam mais como adereços que pouco ou nada interferem na base instável da canção, que segue em sua pulsação incômoda até o final, quando são adicionados ao arranjo um tamborim e um chocalho. Se num primeiro momento, estes dois novos instrumentos desestabilizam ainda mais o arranjo, quando restam sozinhos na sua condução, acabam por explicitar o ritmo do samba até então camuflado sob a base polirrítmica. Tom Zé inverte o procedimento de João Gilberto, parte da invenção para chegar ao cânone. A batucada escolhida por Tom Zé como parâmetro para seu estudo, também difere da escolhida por João Gilberto, que parece ter optado pelo lado mais festivo do gênero, talvez por acentuar ainda mais o contraste em relação à sua descoberta. Tom Zé e sua batucada mínima, se aproximam do lado menos luminoso do samba, imprimindo um ar melancólico à sua versão. Mas ao dividir ao meio os versos do refrão final, decidindo cantar somente sua primeira metade, Tom Zé parece querer ainda encontrar uma saída para essa melancolia, se recusando a acreditar em sua sentença fatalista. Seguimos com ele em compasso de espera rumo à quarta-feira de cinzas, cantando o verso escolhido para encerrar a canção: “tristeza não tem fim”.
A letra de A Felicidade tem um caráter demasiado pessimista se compararmos às letras mais otimistas da bossa nova, sobretudo em seu início, época em que a canção foi composta. Um dos motivos para isso, talvez seja o fato de ter sido escrita pensando no enredo de Orfeu Negro, a serviço da dramaturgia do filme. Mais que isso, o diretor Marcel Camus, preocupado mais com seu roteiro do que com a criação de Vinicius, sugeriu algumas mudanças, chegando mesmo a vetar trechos inteiros da letra, o que causou muito constrangimento para Tom e Vinicius, a ponto deles quase romperem com a produção. Um dos trechos vetados por Camus e que foi resgatado posteriormente por alguns intérpretes, inclusive por João Gilberto, tinha um aspecto bem mais otimista se compararmos à versão final escolhida para o filme: “a felicidade é uma coisa louca / e tão delicada também / tem flores e amores / de todas as cores / tem ninhos de passarinhos / tudo de bom ela tem / e é por ela ser assim tão delicada / que eu trato sempre dela muito bem”.
É curioso notar o modo como cada um vai lidar com esse pessimismo. Tanto João Gilberto que opta por não cantá-lo, legando a tarefa a um coro, quanto Milton que simplesmente o exclui de sua versão ou ainda Tom Zé que parece se recusar a aceitar seu vaticínio, todos buscam uma maneira de escapar à angústia gerada pelo destino sem esperança de seu refrão, mote definidor de A Felicidade. Talvez prefiram acreditar, que antes de ser uma ilusão, a felicidade é sim, a grande invenção do carnaval.
Imagem de capa: Frame do filme Orfeu negro.
Rômulo, obrigado pela profunda incursão pela Felicidade. Viagem necessária! Viva!