ou a surpresa da paixão e espontaneidade que escondem os títulos mais extensos de “A misteriosa morte de Pérola” a “Prometo um dia deixar essa cidade”, deixando para trás filmes supostamente impecáveis como “Turistas” e “A gangue”
por Rodrigo S. Pereira
Uma praia. Pérola dorme. Há um charme especial na imagem de VHS que permeia a narrativa de A Misteriosa Morte de Pérola (Guto Parente e Ticiana Augusto Lima, 2014). Os vídeos que têm, segundo Guto Parente, o caráter de passado e lembrança mesmo no instante em que são capturados, compõem o alicerce do desenrolar deste curioso filme. A personagem de título muda-se sozinha para a França, para estudar, e sua solidão é invadida por lembranças de seu namorado e seus amigos e, rapidamente, também por um terror incompreensível. Guto e Ticiana alcançam a proeza de manter amedrontadora uma ameaça corporificada, ponto em que falhou o conceitualmente semelhante sucesso A Entidade (Sinister, dir: Scott Derrickson, 2012). Filmes muito próximos em sua gênese, não poderiam ser mais diferentes na execução. Poucos recursos, um mistério e imagens de baixa definição – uma fórmula de sucesso desde A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, dir: Daniel Myrick e Eduardo Sanchez, 1999).
O maior temor do ser humano é o desconhecido, sendo o desconhecido absoluto a própria Morte, e as imagens de baixa definição incitam esse medo pela insegurança. É como se, por uma percepção prejudicada da imagem, pudéssemos perder um sinal de ameaça e, assim, corrêssemos sério risco. Enquanto Sinister perde a força ao explicar em demasia seu antagonista, torná-lo compreensível (e assim, mais fantasioso e distante, conferindo uma segurança ao espectador), A Misteriosa Morte de Pérola trilha o caminho inverso: torna-se mais e mais enigmático, a cada sequência adicionando uma espessa camada de dúvidas e questionamentos que se somam, sufocando o espectador, torturando-o.
“Coerente com o cinema de Guto Parente, há em “Pérola” uma irreverência técnica e estética que pode surpreender o espectador desavisado.”
Coerente com o cinema de Guto Parente, há em “Pérola” uma irreverência técnica e estética que pode surpreender o espectador desavisado. Beirando o que poderia se chamar de amadorismo em diversas sequências, Guto e Ticiana demonstram com louvor que a força narrativa do cinema não reside na técnica ou na qualidade do equipamento. A Misteriosa Morte de Pérola conquista com paixão e charme. Um filme pessoal, feito com parcos recursos e muita força de vontade, e que exala seu vigor de heroísmo cinematográfico. Tornando seus recursos escassos em discurso e estética, tornando o ridículo perturbador, o filme vibra já triunfante apenas pela exibição em meio a obras suntuosas como Alien – O 8º Passageiro (Alien, dir: Ridley Scott, 1979) e Paris, Texas (dir: Wim Wenders, 1984), e pretensiosamente pomposas como seu concorrente The Fool (Durak, dir: Yuriy Bykov, 2014). Turistas (Force Majeure, dir: Ruben Östlund, 2014) e sua montagem sofisticada ou a mise-en-scéne matemática de A Gangue (Plemya, dir: Miroslav Slaboshpitsky, 2014), outros grandiosos concorrentes seus na mostra competitiva do VII Janela Internacional de Cinema do Recife, parecem ficar para trás nos corações cinéfilos.
Force Majeure converte-se lentamente, e com muito requinte, de drama naturalista a comédia de absurdos. Apostando fortemente em seu elenco, o filme narra as conturbadas férias de uma família numa luxuosa estação de esqui, em companhia de um casal de amigos. Fundamentado em texto e atuação, Force Majeure tem sabor de “filme de roteiro”, o que lhe rende a ingrata posição de ser criticado principalmente por “mas… aquele final, cara”, pois seus outros méritos artísticos e técnicos se fazem invisíveis. Com A Gangue a situação é a inversa: sua trama revisita as histórias de delinquência juvenil com colheradas extras de violência, portanto, nada surpreendente, mas é visual e sonoramente que o filme se faz valer. Narrando a trajetória de seu protagonista em uma escola especializada para surdos-mudos, o filme que não legenda os ágeis diálogos em libras se apresenta como uma experiência estética sensorial, de ver os corpos dispostos no quadro, de ouvir os sinais não verbais do mundo diegético que os próprios personagens não podem perceber, conferindo ao espectador uma perspectiva voyeurista, e assim, se vale disso com sexo e violência.
Seus extensos planos-sequência são muitas vezes mascarados pelo intenso dinamismo de sua encenação, não só pelos complexos movimentos das mãos dos personagens e a impressionante expressividade de seus rostos, mas por uma inquietação própria dos personagens jovens, fazendo com que cada plano transite entre ambientes – eles estão sempre se movimentando, sempre buscando alguma coisa com que se divertir (“distraírem-se da própria existência”), seja roubando, agredindo, destruindo ou fodendo. É principalmente quando se vale do sexo que o filme vacila, entravando o movimento dos corpos para esconder seus órgãos sexuais, tentando se manter no limiar do explícito. Vê-se dois corpos que transam, mas não há qualquer comprovação visual disso (por mais que estas também possam ser simuladas, como o fez Gaspard Noé em Irreversível), e por mais que o filme por inteiro se apresente coerente com seus planos médios (o afastamento também contribui para o vouyeurismo), ele termina por não oferecer nada que elimine indiscutivelmente o fedor de mera simulação, e a simples ideia de falsidade basta para prejudicar a experimentação das cenas mais viscerais, entre agressões, assassinatos e um aborto arrasador.

“Pérola”, assim, ganha pontos puramente por sua honestidade, e surpreendentemente não está só. Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade (dir: Daniel Aragão, 2014) demonstra claramente a intenção de embalar o espectador no surto de sua protagonista Joli (Bianca Joy Porte), desencadeando uma anarquia estética furiosa. Numa confusão de cores e luzes, “Prometo” tenta comentar a realidade social de Recife e retratar a sujeira sob o tapete de sua esfera política, acompanhando em sua trama a corrida pela eleição na prefeitura da cidade dentro do partido fictício “PSTB” (vermelho, importante apontar). Ao mesmo tempo, Joli tenta conquistar a confiança do pai e manter-se longe do crack, droga cujo vício a levou ao internamento numa clínica.
Com uma narrativa mais direta que o primeiro longa-metragem de Daniel Aragão, Boa Sorte, Meu Amor, este filme cria enfim o segundo ponto para que, traçando uma linha entre os dois, se delineie as pretensões artísticas do cineasta. Boa Sorte, Meu Amor era lacônico, subdividido em partes e finalizado em preto e branco, de quadros meticulosamente compostos e de beleza escandalosa. Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade apresenta praticamente o completo oposto destes atributos, e assim se esclarece que o cinema proposto por Aragão não está preso a técnicas e trejeitos estéticos específicos, mas está mais fundamentado em roteiros ambiciosos que entrelaçam os problemas de um núcleo familiar com os de seu entorno, sociopoliticamente falando. Está mais preocupado em vibrar e brilhar: é um cinema jovem que se mantém dinâmico, saltando de um ponto a outro e tentando destruir tudo o que vê pela frente. Um cinema imaturo que parece não saber exatamente para onde ir ou como prosseguir, mas prossegue.
Uma viagem intensa, Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade parece querer envolver coisas demais para as delgadas pernas de sua protagonista, e não é nenhuma surpresa que muitos pontos de sua narrativa jazam no caminho, talvez ofuscados pela nudez pouco justificada a que Bianca Joy Porte é submetida vez ou outra, talvez simplesmente esquecidos por sua brevidade ou pela pouca propriedade com que são abordados.
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