Guia prático para a crítica cultural: borderô

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Show de lançamento da coletânea “no mínimo era isso”. Foto: Ostra Monstra

Dos últimos cinco shows que você assistiu, quantos deles cobravam ingresso? A depender do local onde você mora e se houve alguma data festiva no período, o resultado pode variar. Para o contexto cultural em que estou inserido, comparecendo a shows em Recife e Olinda, não poderia afirmar com segurança que o número de shows gratuitos é bem maior que os com bilheteria. Não possuo essa estatística. Mas respondendo à pergunta que abre essa coluna, chego ao resultado de 3 a 2, com “vitória” dos shows gratuitos. Eis a minha lista:

1. Wassab + Rua (gratuito – Torre Malakoff – Recife)

2. Domenico + Trio Eterno (gratuito – Torre Malakoff – Recife)

3. Coletânea “no mínimo era isso”, vários artistas (R$ 15,00. Incluso livro gratuito. Teatro Arraial – Recife)

4. Coletânea ONI, vários artistas (gratuito – A Casa do Cachorro Preto – Olinda)

5. Rua (R$ 10,00. Caixa Cultural Recife)

Pensando nesse assunto como público comum, ou seja, aquele que não é produtor, músico ou jornalista, e que a depender da ocasião, entrará na cota de convidado dos shows, constato que a presença de público nas apresentações musicais gratuitas é muito superior àquelas que têm a cobrança de ingresso. Natural que assim fosse, já que a gratuidade do que quer que seja, tem a força de atrair todo o tipo de gente, interessadas ou não, nesse caso, nas bandas e músicos no palco. Não me preocupa a multidão nos shows gratuitos, mas o baixo público nos shows com cobrança de ingresso. Há alguma relação de causa e efeito entre ambos os casos?

Há muito tempo se tem questionado a política (isso se tornou verdadeiramente uma política?) do Estado e prefeituras em promoverem shows e festivais de música de forma gratuita. O perigo, a meu ver, está no excesso e na aposta irrestrita e desequilibrada desse modelo, pois cria no público o hábito de não pagarem pelos shows, que em longo prazo sufocará os produtores culturais, ou artistas que produzem os shows de forma independente.

Um exemplo da dificuldade em produzir shows com bilheteria ocorreu durante o Festival de Inverno de Garanhuns – que é patrocinado pelo Estado de Pernambuco e reúne atrações de todo o país –; poucos produtores se arriscaram a trazer atrações do festival para se apresentarem fora da cidade de Garanhuns. Sintoma, a meu ver, da baixa frequência de público nos shows com bilheteria.

Os dois primeiros shows que apresentei na lista acima faziam parte de um edital de circulação, patrocinado pelo Estado, um em Pernambuco e outro no Rio de Janeiro, respectivamente. Os shows das coletâneas musicais apresentaram músicos e bandas dos mais diversos estilos, como Isaar, Caçapa, Walter Areia e Rua, de “no mínimo era isso”, e Dunas do Barato, Ex-exus e Matheus Mota, de “ONI – Objeto Não Identificado”, só para ficarmos em alguns nomes. A primeira coletânea, que o Outros Críticos produziu, adotou a estratégia de associar um produto (o livro) ao ingresso do show; mesmo assim, apesar do bom público, não foi capaz de lotar o Teatro Arraial, que tem capacidade para 94 lugares. Num dado momento do show, um dos músicos falou, em tom de brincadeira: “Vocês compraram o livro e ganharam o show”. Arrancando risos da plateia. No fim das contas, a lógica permaneceu a mesma.

O show de lançamento da ONI teve acesso gratuito, mas apostou na venda de discos da coletânea e de outros músicos participantes. A ONI 2 estava sendo programada para o Arsenal 227, com venda de ingressos, mas o local acaba de fechar suas portas. Outro sintoma? Já o show da Rua, fez parte do festival Contemporâneos, com diversas bandas, num total de 10 shows. Esse mesmo festival havia passado pelo CCBB do Rio de Janeiro. Vi três shows do festival, todos com bom público, mas pelo valor do ingresso (ainda com possibilidade de meia-entrada), e pela qualidade das bandas, esperava por lotação máxima em todos as apresentações.

O que todos esses shows têm em comum é a presença da música contemporânea de Pernambuco tentando consolidar e ampliar os seus espaços de acesso, mas para que isso ocorra de modo constante, numa cena ampla e auto-sustentável, o público e os diversos setores de cultura do Estado devem encarar o acesso gratuito como exceção, não como regra. De tal modo, chegaremos ao dia em que o borderô pagará por todos os custos da produção de um show?

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Júlio Rennó Escrito por:

Heterônimo. Assinou a coluna "guia prático para a crítica cultural" na revista e site Outros Críticos. Não era um guia.

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