Dias atrás, causou-me espasmos, diria letargia pré-concebida de piada pronta, uma reportagem da revista de bordo da Gol, com a singela titulação: “O Mangue Não Para”. A revista, para quem não sabe, é aquela do tudo lindo, tudo azul, ops, tudo laranja pra você voar em paz. Um cartão postal pra quem tem cagaço de voar ou medo de ler algo com alguma profundidade. Afinal, todo mundo sabe que um livro legal pesa muito em mãos incautas. O prensado da Gol é um refastelo para quem pede café descafeinado, cerveja sem álcool (aliás, deveriam usar outro nome pra esse chá de cevada!).
O texto era sobre a sinergia, o valor extasiante do álbum auto-cover Mundo Livre S.A. vs Nação Zumbi (2013). Disco em que cada uma das bandas mangues escolhe e interpreta algumas dos antigos sucessos do outro. Segundo a panfletagem aérea-letárgica da revista Gol: “Todas (as canções) continuam fundamentais, mas a surpresa é que também parecem novas em folha”.
Nação Zumbi – “O Velho James Browse Já Dizia” by trabalhosujo
Com a jogada da paródia de si mesmo, as gravadoras elevaram à terceira potência a covernation, jogando tranquilamente com os ferrinhos das zonas de conforto, sem riscos. Não precisa nem distribuir lubrificante. Cover de si mesmo é o máximo do masturba-se tendo como objeto de desejo o próprio eu. Vaselina narcísica. Fico pensando o quão fofas serão essas canções “novas em folhas” cantadas com os pulmões em êxtase pelos pop-cult-descolados, nostálgicos dos chapeuzinhos de palha, patrulheiros da “boa música”.
Mas até aí, tudo lindo em céu de brigadeiro, principalmente para quem paga R$ 20,00 reais a mais para sentar nas cadeiras um pouco menos apertadas da GOL. Afinal, depois dos “desafortunados culturais” terem invadido as aeronaves, era preciso garantias de habitar o mesmo espaço, mas de formas distintas. Mas, para aumentar a sensação de um pouso suave, um box ao lado do anúncio mangue brada: “Filhotes de Caranguejo – líderes das duas bandas indicam os herdeiros do manguebeat”.
Em terra de caranguejos, sobrevivem os que se refastelam na lama do mais do mesmo, dos tempos em que havia mangue. Eu sei, há muita lama nos arrecifes. Ouvi dizer por aí que tem uns surdos culturais chafurdando nos entornos dos editais do novo Recife Antigo. Mas o que desabitou-me diante da turbulência foi ler no box ao lado da reportagem os herdeiros apontados pelos “líderes mangues”. É, isso mesmo, herança cultural, mora? Aquela coisa aristocrática que garante a passagem das clientelas (de pais para filhos), dos postos públicos (de tio para sobrinhos), dos descolamentos bregas-chiques (de mães para filhas).
Fred Zero Quatro, o antigo mago da ponte área Samba Rock Mangue, parece sincero quando diz: “Não tenho mais aquela energia pra acompanhar tudo”. Mesmo porque quem já ouviu seus ditos sobre os malefícios dos contatos música & Internet deve imaginar como deve ser foda perceber outros sons e outras chinfras sem se permitir downloadear vez ou outra.
Rabugices à parte, o mago diz ser fã de “Eddie, da segunda geração manguebeat” e “entre os mais recentes, destacaria Academia da Berlinda, Catarina Dee Jah e Orquestra Contemporânea de Olinda”.
Apois, será que não houve confusão, isso não é a listagem do catálogo local da gravadora Putumayo? World Music, ecletismo que é tudo e nada ao mesmo tempo? Displays de patrimônios culturais como Pelourinho e Olinda? Ou será a lista de aprovados em algum edital de apoio à cultura de algum estado periférico de um país periférico imaginário?
Mas, o dissenso, a ruptura com o pop, a ideia de que popular é de qualquer um, do ser qualquer, vem de Jorge Du Peixe, que conseguiu evocar linhagem nobre, dos títulos de sangue que garante a permanência dos reisados. “Precisa colocar essa meninada pra se coçar, como tenho feito com meu filho (Ramon Lira) e minha nora (Louise Taynã, filha de Chico Science) no Afrobombas. Tudo influencia tudo, basta abrir os ouvidos”.
Afrobombas – Do Sal & Sol Eu Sou (From ‘Daora’: Underground Sounds of Urban Brasil) by Mais Um Discos
Ahhh, Tim Maia, tudo é tudo, nada é nada! Então tá, a novidade veio dar na praia em forma de uma banda que une reis, príncipes e princesas. Mas devo estar surdo, fruto de minhas escutas metal. Será que Afrobombas é aquele pastiche “havia mangue” que ouvi no Festival de Garanhuns? Não, deveras! Acho que como outro nome mangue que andou por lá, bebi demais, esqueci o que disse, o que ouvi e fiz.
Só me resta evocar meus pequenos orixás, meus protetores menores. Já disse Jomard Muniz de Britto nos anos setenta. É preciso desaristocratizar a cultura pernambucana. Mas Oxóssi que me leve, me segure e guie. Parece que uns meninos fizeram a revolução praieira, destronaram a nobreza, para instituir Napoleões. Mas quem sou eu para emitir algum juízo? Como ando ouvindo nos becos da manguetown esfrangalhada, eu nem eu sou daqui. Não posso querer ser nada. Não sou nada. À parte isso, trago em mim uma imensa vontade de provar outras iguarias, não diversas, mas diferentes do já tradicional caderno de receitas dos caranguejos.
por Jeder Janotti Jr.
Foto de capa do site: Louise Taynã por Vitor Salemo.
Caro Jeder,
Um dos melhores textos que tive o prazer de ler nos últimos tempos.
Obrigado.
Giba Carvalho
Valeu Giba,
pela leitura e pelos comentários, afinal um texto só toma corpo quando permanece circulando
abs