
por Jeder Janotti Jr.
Jean Nicholas é um explorador de estilhaços e suas canções ora funcionam a partir de um certo ranço, ora de uma ojeriza contra a mesmice e o esnobismo pop laureado que repete em onda a última nova moda do mundinho musical cult.
Como todo bom corsário, Jean Nicholas e a Bueiragem (2014) não se furtam a pilhar misturando origens sem ecletismos fáceis. No álbum marcado por vertigens produzidas pelo flerte com gêneros musicais distintos (funk, reggae, synthpop) há um porto seguro: rock ancorado por referências iconoclastas como Iggy Pop, Lou Reed e Marcelo Nova . Não se trata de um disco saudosista. Jean Nicholas e a Bueiragem é um álbum rock’n’roll, com atitude 2013 ponto zero.
Talvez a chave para se penetrar nesse caleidoscópio musical seja a faixa título “Bueiragem”. Uma canção que agencia elementos diversos, mas coesos como a crônica rock, a dicção repente seixeana, sonoridades peso-sertão e texturas da black music. Tudo isso amarrado por um forte refrão tipo prescrição punk: “Pois eu ainda vou querer jogar/ Tenho muito filme pra queimar/ E muita ficha pra apostar/ Mas não vai ser nesse seu jogo que você quer me empurrar”.
Na coleção de gêneros musicais que atravessam o álbum, ao contrário dos anos 90, não são os tambores locais, e sim a percussão da diáspora que forja caminhos: do Bronx à Jamaica sem passar pelos arrecifes antigos. Sua vizinhança não tem imaginários sonoros dos tubarões ou caranguejos e sim dos patuás de outros abrigos: globalidade rock diante da penúria existencial periférica.
Se um dos novelos mais fortes do disco é o acionamento da black music dos anos 70, há músicas que evocam pedras solitárias que talvez não funcionariam de modo profundo fora da força da escuta conjunta do álbum. Caso das canções “O amor é porta de entrada pra outras drogas pesadas” e “Ressaca imoral”. A primeira, um synthpop que é um coquetel atualizado de Joy Division com Legião fora das amarras epifânicas do último Renato Russo. Já “Ressaca imoral” é um jogo memorial afetivo com psicodelia sertaneja: na música são acionados Ave Sangria, Zé Ramalho, Lula Côrtes e talvez aquela que seja a única das produções rotuladas mangue que instiga a tal Cena Beto: Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Todos Inúteis. Para quem acha que isso é viagem de crítico enrabichado, basta passar para a próxima faixa: “Dois Mil e Crazy”, um eletro-rap-baião que continua a ser, antes de tudo, punk rock.
Se no mundo da música atual, inchado de hypes, identidade parece algo fatiado, quase enfastiante, Jean Nicholas não tem medo de construir sua identidade sonora através de dilaceramentos musicais, acionando o punk-funk-rock como um antídoto contra descolamentos pop pueris e regionalidades engessadas, afinal como ele mesmo brada no peso groove que fecha o disco: “À frente o terço imenso mar de merda/ Atrás a velha paisagem deserta/Não à direita, nem pela esquerda/ Só abrindo ao meio a saída é certa”.
Eis, então, um trabalho que se afirma não só como um disco, mas como álbum, já que juntas as canções de Nicholas ganham o corpo de uma obra densa o suficiente para mostrar que ainda há espaço para afrontar o papo pop água desses tempos em que muitas das novidades são habitantes fugazes do sucesso hypado dos festivais e editais para pop-cult- descolados.
* Publicada originalmente na 1ª edição da revista Outros Críticos.
seja o primeiro a comentar