Para escrever sobre Língua é preciso expandir a escuta para outros sentidos, outras partes do corpo. É preciso escutar a pele, os olhos, o pelo. Sentir onde o corpo vibrar. Investigar o que escapa ao primeiro, segundo e terceiro contatos com essa escuta. Os objetos musicais, visuais e as relações que se estabelecem entre eles vão se desdobrando em várias camadas de sentido que o nosso tempo ordinário parece querer obscurecer. O tempo de uma canção pode ser um tempo poderoso, potente, mesmo que fragmentado, exposto ao ocaso da vida.

A cantora, compositora e percussionista Alessandra Leão vem desde 2014 lançando uma séries de EPs/discos que, segundo ela, se dividem como “eixos/capítulos: Pedra de Sal – alma e ossos, Aço – carne e pele e Língua – língua”. Essa trilogia de EPs nos deu a chance de tornar o tempo de escuta de cada disco também um tempo mais poderoso, mais singular. Com eles, pudemos ver revelados os resquícios dos processos de criação da artista. A cada etapa, novos mergulhos, escritas, concepções visuais, grafismos, performances, sonoridades, parceiros, músicos, compositores, cantos. Com produção musical de Caçapa, a dupla arregimentou diferentes vozes para compor esse intrincado projeto artístico, no qual Alessandra Leão é a sua voz-guia.
Entre os mergulhos que se intrincam como tensões, nas canções “Mergulho”[1], de Alessandra e Caçapa e “Foi no porão”[2], de Odete de Pilar, que encerram o disco anterior, Aço, um respiro, um fôlego pode ser sutilmente ouvido na abertura da canção que abre Língua, o disco que encerra a trilogia. “Pássaros, Mulheres e Peixes”, de Alessandra, escrita a partir de texto de Xico Sá, emerge ainda reverberando a sonoridade mais tensa do EP anterior. Mas ao encontrar uma outra voz, a de Ná Ozzetti, os timbres intensos que se cruzam por sobre um baixo que se repete, como que conduzindo toda a ambiência para mais próximo da terra, do chão, tornam as vozes de Ná e Alessandra um novo espaço para a criação artística. Aos poucos, as vozes vão se distanciando das texturas mais reconhecíveis e criando outros climas, incorporando novas nuances, explorando outras possibilidades.
“Joguei Minha Palavra n’Água” tem uma condução extremamente rica nos arranjos e andamento rítmico das guitarras de Caçapa e Rafa Barreto. Ainda que aquela vibração mais tensa ainda esteja muito presente, a partir da “dança” dos sintetizadores, com sua rítmica própria, uma outra dança, própria desse diálogo entre Caçapa e Rafa, começa a se impor, e a permanecer, a partir dali, encontrando na voz de Alessandra e seu lamento-chamado ecoado na letra da canção, mais uma possibilidade de criação coletiva. A música “Língua” é quando essa criação em grupo já está num outro estágio de desenvolvimento. Há nela uma sensualidade que se faz tanto na musicalidade, na letra e no modo como o canto se debruça sobre cada palavra. Cantar os versos não parece suficiente, é preciso seduzir a melodia, “lamber”, “morder”, “ferir” seu verbo, como voz que fricciona cada palavra. “Na minha boca”, uma parceria de Alessandra com Kiko Dinucci, permanece no mesmo campo semântico da faixa anterior, o da sedução como linguagem. Mas nas guitarras de Rafa Barreto e Kiko Dinucci há uma dureza, uma aspereza que se reflete no “bicho”, no “demônio”, na “fera”, no “animal” que o canto de Alessandra entroniza, por sua capacidade de manter a dubiedade da canção. Nada é dado com facilidade. Os bichos somos nós mesmos.
Língua encerra a trilogia com as músicas “Doutrina de Oxum”, uma toada tradicional do Tambor de Mina do Maranhão, e “Caudaloso”, uma música de Alessandra com letra de Wilson Freire, que se complementam numa única faixa. O coro de vozes formado por Ná Ozzetti, Juçara Marçal, Luisa Maita, Renata Amaral e Rafa Ella Nepomucemo repete a toada sob a condução rítmica da percussão de Mestre Nico e da bateria de Guilherme Kastrup, músicos esses que estiveram presentes em grande parte do disco. Com eles, a guitarra e os arranjos de Caçapa se firmam como uma das principais forças para a sonoridade do disco. Nessa música, formam com a base rítmica e o coro feminino uma rica comunhão de vozes artísticas. Com os solos pontuados por Caçapa no fim da toada, uma vibração ainda se mantém acesa, por onde a voz de Alessandra se calça para falar-cantar a letra-poema de Wilson Freire, como numa espécie de revelação de sua voz-artista:
Não sou caudaloso
Nem sou tão perene
Eu sou temporário
E o meu vau
Mais profundo
Dá pé, a qualquer pé
Descalço
A vibração se esvai, o canto acompanha o derradeiro da canção. Resta a voz-fôlego, insistente, tropeçando na respiração que ainda se ouve – quase no que resta de silêncio – e que anuncia para quem escuta, escutou essa travessia de alma e ossos, carne e pele e língua, que sim, há vida.
[1] “Num mergulho vai/ Um tremor que sai/ Da garganta corre o ar/ Chega a me arranhar/ Volto a respirar”.
[2] “Se eu mergulhei/ Foi no porão/ Mergulhei, saí de lá/ Atravessei o mar soturno/ Mergulhei foi porão/ Mergulhei foi no porão/ Depressa corri de lá/ Eu dei um pulo e mergulhei/ Depressa caí por lá”.
Publicado originalmente na ed. 12 da revista Outros Críticos.
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