
por Caio Lima.
(Ao fantasma do Beethoven velho)
“Música é sons, sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora das salas de concerto”. É assim que John Cage (1912 – 1992) define Música em carta a Murray Schafer (1933). Aquele que por acaso frequentou um Conservatório, intuirá que tal definição deve perturbar um bocadinho a cabeça tanto dos mestres quanto dos alunos da instituição. Por exemplo, ainda não é o busto de Cage que enfeita a entrada do Conservatório Pernambucano de Música.
Eu li em algum lugar, cujo agora não o consigo encontrar, que a partir daquela definição é absolutamente possível compreender a moral sobre a história dos 4’33’’(1952) de pausas. Giorgio Agamben, a fim de apontar o caminho ao contemporâneo, se utiliza da neurofisiologia da visão para afirmar que até mesmo o escuro do que vemos ao fechar dos olhos é uma “iluminação” das células desinibidas da retina.
“Ora, o silêncio nunca aconteceu”. É o que diz, como rosto tomado pela serenidade da expressão, o mais cético dentre os meus amigos compositores. Nesse dia, ao ouvir o rumor desta brisa em forma de indiferença, tremi de frio. Escutei ao longe uma gravidade ribombando no peito, sobre as correntezas do rio vermelho, o coro vociferante da multidão. E à medida que me empalidecia uma nuvem de grilos entornava o firmamento. A antiguidade ousou me imaginar no apocalipse: O sol explodiria na cidade! Desesperei. Lembro muito bem, pequenas catedrais móveis me atravessavam de um lado a outro entoando réquiems iluministas. Foi quando o modo dórico me soprou quem estava sonhando, na caverna. Os pés, como o roçar do vento na areia, bradavam gravemente a uma consciência esguia: Os pés são deuses do escuro! Era semelhante a um hino de guerra cantado em uníssono por 100 milhões de guerreiros montados em elefantes na base de uma imensa colina. Isto me revigorou os pulmões de forma que pude nomear onde me encontrava. Olhei para fora, respirei profundo e segui Andante.
Mais tarde escrevi, em letra de forma, no caderno de música: “Eu, João Lima, fui assistir aos 4’33’’ de Cage num festival de música do século XXI que acontecia no Teatro de Santa Isabel. Há muito que deixara a poltrona de numero D08 e caminhava pela Rua da Aurora quando me perdi. O mais provável é que eu tenha apagado quando a imaginação me perturbou o pensamento enquanto esperava o sinal de trânsito fechar. O sol soava tão alto, mas tão alto, que surgia uma luz que esquentava toda a terra que tem outro sol dentro. Essa terra se movimentava, como uma melodia, tecendo com outras terras toda a paisagem. Assim, a vida escorria incessantemente, indo e vindo. Pequenos pássaros sob o farfalhar das folhas rememoram uma canção imemorial. Automóveis aos clusters evidenciam a contemporaneidade. Foi assim que pude escutar a música que me escondia na cidade, no movimento incessante que era feito silêncio do meu corpo. Prontamente, ao chegar em casa, quebrei ao meio a flauta doce.”
No dia seguinte, os meus olhos ainda brilhavam quando pedi licença ao professor para ler em sala de aula este relato tosco. Ele não quis me escutar. Até hoje não sei se é porque ele estava coberto com a razão. Afinal, tudo poderia não passar de um delírio. Delírio meu e dele, claro! Desse curioso caso, o rumor ainda me pede para deixar um espaço à dúvida. Pois, refletindo agora mesmo, talvez eu não estivesse querendo esclarecer, como um crente, os ouvidos da turma lendo em voz alta o meu testemunho. Acho que tenho a impressão que durante aquela visão ninguém estava surdo. Estávamos todos dançando. Como se fizéssemos música.
Publicada originalmente na 3ª edição da revista Outros Críticos.
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