
por Thiago Pininga.
Não basta dizer que a arte existe porque a vida não basta: uma frase escrita assim solta, como um Ferreira Gullar, sem dar créditos ao Fernando Pessoa, parece querer ser lida sem concluir nada, e, no entanto, a arte existe porque a vida existe. E basta. O poema longo Caçador de Mariposas (2013), do pernambucano Wellington de Melo, por exemplo, comprova que arte e vida caminham juntas. Depois de alguém perguntar se o filho era “doidinho”, encontra-se na resposta do pai: “Aleph é autista”, o leitmotiv de toda esta obra.
Não vou dizer que o poema é uma solução encontrada pelo poeta para tirar o filho do silêncio, não se trata de dar uma voz, uma cidadania grega – um logos – como poderia parecer. Toda voz lírica só pode ser a do próprio poeta. Porém, é um exercício de escuta. Enquanto poeta, seu daimon corresponde à escuta de seu filho, como nestes versos: “(meu nome admeorce/ em teu nome/ pai/ mas sou sem ti/ o msemo dia/ prouqemues dais/ sloares/ sem ti/ têm a msema cor/ pai/ prouqe sou esse msemo/ soirriso/ a dseeipto do vaizo/ que és em mim)”.
O desarranjo das letras provoca estranhamento. Contudo, não se trata apenas de estranhamento: acompanha a própria dinâmica da fala do filho, mimetizada ao nível poético. Digo isso porque ainda que o leitor vá inevitavelmente traduzindo as palavras, resta o intraduzível sentimento do poetae do pai. Não é incomum na poesia brasileira uma temática desse tipo. Ferreira Gullar, citado no começo, também escreveu um poema onde descreve a vivência entre ele e seu filho diagnosticado de esquizofrenia. No poema Internação (1999), escreve: “Ele entrava em surto/ E o pai o levava de/ carro para/ a clínica/ ali no Humaitá numa/ tarde atravessada/ de brisas e falou/ (depois de meses/ trancado no/ fundo escuro de/ sua alma)/ pai,/ o vento no rosto/ é sonho, sabia?”
A arte existe porque a vida existe. Os vazios da vida não são preenchidos com a arte, pela arte, sendo ela incapaz de alienar a própria vida (a menos em nível de entretenimento – mas isto não é arte). Pelo contrário, revela que a vida mesma é incompleta. Agora, vejamos a citação original, de Fernando Pessoa: “A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta. Talhar a obra literária sobre as próprias formas do que não basta é ser impotente para substituir a vida.”
Ainda que utilizando um recurso formal por desarranjo das letras bastasse para representar a fala do autismo, mesmo em toda a poesia que envolve um dizer, ainda assim o poeta tem consciência de que não pode abarcar aquela vida (que também é sua) por completo: “à tua sombra/ permaneço/ eu também/ príncipe coxo/ teu servo na tarde de minha insônia/ emoldurando/ inutilmente/ as mariposas/ que continuam/ girando/ girando/ em tua memória”.
Ao escutar seu daimon, encontrando-o no próprio filho e “em tua memória”, acredito ser este um dos melhores poemas de Wellington de Melo, acima das obras anteriores que tive oportunidade de ler: O diálogo das coisas (2007), [desvirtual provisório] (2008) e O peso do medo: 30 poemas em fúria (2010).
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